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MABE OCUPADA | Por que a luta da Mabe é tão importante?

quinta-feira 3 de março de 2016 | 23:30

Primeiramente é importante entender o que está por trás da aparente crise que levou a Mabe pedir falência. Com as alíquotas do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) reduzidas no período de 2009 até 2014, com exceção do ano de 2010, o setor de eletrodomésticos da linha branca foi amplamente favorecido, vendo suas vendas aumentarem consideravelmente. É importante supor que, com as políticas de valorização do salário mínimo vigente durante boa parte da década de 2000 as vendas do setor tenham ficado bem acima do período anterior, marcado pela recessão e desemprego. Portanto, ao longo de todo esse período, as empresas do setor tiveram que manter um forte ritmo de produção buscando atender à demanda crescente e, consequentemente, vendo seus lucros aumentarem. E é exatamente aí que está a raiz dos problemas na Mabe.

A imposição de um forte ritmo de produção exige dos trabalhadores um gasto de energia física e emocional que ultrapassa a capacidade de recomposição. Uma trabalhadora da unidade de Hortolândia descreveu algumas das atividades que eram realizadas na empresa. Multifuncional, ela exerceu funções em pelo menos dois setores, o da produção de refrigeradores e o da inspeção desses produtos.

No primeiro, chamado de pré-montagem, o trabalhador cumpre a função de montar peças tais como as vedações, a fiação, a montagem da lateral, etc. Passado esse processo, o produto passa pela espumação e depois pela montagem interna (gavetas, por exemplo). Segundo a trabalhadora, todo esse processo tinha que ser feito a uma velocidade de 70 a 80 produtos por hora (ao menos para as linhas que produziam os refrigeradores que mais vendiam), o que corresponde a, pelo menos, mais de um produto por minuto. A mesma trabalhadora também passou pelo “Carrossel” que correspondia a um setor de inspeção dos produtos, a última etapa antes de serem embalados. Aqui os trabalhadores são encarregados de verificar se as funções dos refrigeradores estão em pleno funcionamento (se as lâmpadas acendem, se os painéis funcionam, se a porta e as gavetas estão bem colocadas, etc.).

Ainda que, como relatado por ela, o Carrossel fosse um ambiente mais “tranquilo” em termos de ritmo, havia uma pressão que era exercida pela qualidade. Todo produto que entrava no Carrossel era escaneado e, portanto, isso pressupunha que ele fosse inspecionado e ficasse pronto para entrega sem apresentar qualquer tipo de problema. Porém, o controle de qualidade, que funcionava como uma extensão do “Carrossel”, ficava responsável pelo monitoramento das atividades de inspeção. Uma vez que eram escaneados, pressupondo sua inspeção e pronto funcionamento, caso o controle de qualidade verificasse alguma função com problema, logo o trabalhador do “Carrossel” era notificado. Isso jogava uma responsabilidade enorme para aqueles que trabalhavam na inspeção, transferindo a carga física da pré-montagem para a emocional do “Carrossel”.

O depoimento da trabalhadora retrata, no entanto, somente uma parte do que acontecia na empresa, uma vez que além da Linha 3, onde ela trabalhou, havia ainda outras duas linhas, além dos outros setores, os terceirizados, os fornecedores, etc. Tais atividades, submetidas a um ritmo intenso, como sugere o relato acima, cobrou seu preço. No período de 1999 a julho de 2013 levantamos 202 comunicações de acidentes de trabalho (CATs) na empresa, que foram feitas junto ao Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas e Região (SMCR). Tal levantamento corresponde somente às doenças por esforços repetitivos (LER/DORT) e as de natureza psíquica (estresse ocupacional, transtorno obsessivo compulsivo, depressão, etc.) e, portanto, não contabiliza as mutilações e outras formas de acidentes aos quais os trabalhadores foram vítimas ao longo do período.

Portanto, mais de duas centenas de trabalhadores, quase um quinto da força de trabalho da empresa (ou um turno inteiro), que chegou a ter mais de 1000 trabalhadores, foi vitimada, enquanto o setor da linha branca gozava de significativa expansão. Por força do contrato coletivo estabelecido na categoria esse contingente de trabalhadores lesionados ganhou estabilidade e com o desaquecimento do mercado nos últimos anos eles se tornaram um problema para a Mabe. Incapaz de gerir essa quantidade de trabalhadores lesionados, a empresa passa a lançar mão de subterfúgios jurídicos buscando ora desligá-los, ora fechar de vez a planta, ou as plantas, nas cidades de Hortolândia e Campinas.

A Mabe não é a primeira empresa na Região a adotar tal prática. A Singer, empresa de máquinas de costura, em meados da década de 1990, também encontrou nos lesionados que produziu uma enorme barreira para reestruturar sua produção. Ali foram cerca de 400 lesionados que, mesmo após a transferência da produção para Juazeiro do Norte-CE, permaneceram na empresa muitas vezes sem nada para fazer, submetidos a uma pressão psicológica e um exercício hercúleo de paciência, aguardando as decisões judiciais. A antiga Cobrasma e a Nardini são outros exemplos, sendo que nestas houve processo de ocupação das empresas que se recusavam a pagar as verbas rescisórias e até mesmo salários atrasados. A ocupação da Nardini, na época, foi decisiva para que os trabalhadores pudessem reaver seus direitos e isso só foi possível com o envolvimento de outros setores da sociedade, tais como igrejas, associações de moradores, familiares, políticos locais, além da presença constante dos sindicalistas que em todos esses processos tiveram papel de protagonismo.

O caso da Mabe, no entanto, se distingue qualitativamente dos demais pelo fato de que, enquanto aquelas buscavam reestruturar sua produção e se adequar à nova realidade do mercado competitivo e esbarraram nos resquícios do anterior modelo de produção que já tinha vitimado centenas de trabalhadores com mutilações, surdez ocupacional, etc., esta já apresenta uma planta moderna, com máquinas e equipamentos que reduziram a exposição dos trabalhadores a antigas doenças e acidentes de trabalho. Mas que, no entanto, encontra uma barreira intangível expressa pelas doenças dos tecidos moles e de natureza psíquica.

E este é o perfil atual de adoecimento não só da categoria dos metalúrgicos, mas da maioria das categorias em todos os setores (industrial, serviços, agroindústria, etc.). As lesões por esforços repetitivos e as doenças de natureza psíquica hoje unificam as pautas da maioria dos trabalhadores dos países industrializados. Relatório da OCDE de 2014 sobre as doenças do trabalho revelou que a Zona do Euro hoje gasta cerca de 3,5% do seu PIB com custos gerados pelo afastamento de trabalhadores com problemas relacionados ao trabalho, sobretudo as doenças de natureza psíquica. Para ficarmos só com o exemplo dos metalúrgicos de Campinas, empresas como a Bosch, Toyota, Honda, Foxconn, apresentaram no mesmo período analisado números altíssimos de trabalhadores lesionados e/ou adoecidos.

A Bosch, por exemplo, entre 1992 e 2013 recebeu 591 comunicações de acidentes de trabalho abertas somente no SMCR, sem contar as CATs que foram abertas na própria empresa, o que costuma acontecer quando o acidente exige emergência no atendimento. Portanto, estamos falando somente de comunicações abertas relativas às lesões por esforços repetitivos e às doenças de natureza psíquica. A Toyota, instalada na Região no final da década de 1990 e que chegou já com o modelo flexível de produção acabado, foi alvo de 172 comunicações de acidentes de trabalho em um período menor, que abrange praticamente o ano de 2000 em diante (até julho de 2013). Da mesma forma a Honda, que registrou quase no mesmo período que a sua conterrânea cerca de 100 queixas dos seus trabalhadores.

Tal cenário é preocupante, afinal caso o desfecho na Mabe contrarie as reivindicações dos trabalhadores isso pode desencadear um efeito cascata, encorajando e estimulando outras empresas da Região a adotarem o mesmo modus operandi para se livrar dos trabalhadores vítimas da produção predatória de doentes. Fortalecer, apoiar e se solidarizar com os trabalhadores da Mabe, portanto, é do interesse não só de toda categoria metalúrgica de Campinas e Região, mas de todas as categorias que enfrentam problemas semelhantes causados pelo forte ritmo de trabalho e a pressão psicológica que ele exerce.




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