Coluna sobre poesia contemporânea sendo produzida hoje, agora, todos os dias, em cada canto. Hoje: a coragem feminista de Sangria, novo livro de Luiza Romão.
Gabriela FarrabrásSão Paulo | @gabriela_eagle
quarta-feira 11 de outubro de 2017 | Edição do dia
Quando Luiza Romão lançou seu projeto intitulado "Sangria" através de crowdfunding (uma vaquinha online) ela dizia que queria "revisitar a história do Brasil sob a ótica de um útero" através de 28 poemas e 28 fotografias.
"Sangria é o segundo livro da poeta Luiza Romão. Nosso intuito é revisitar a história do Brasil sob a ótica de um útero. O que dizer de um país nominalmente fálico (“pau”-brasil)? Pra isso, misturamos os ciclos econômicos (borracha, café, ouro) com os ciclos biológicos e as fases do útero (ovulação, menstruação, concepção). Representamos o país do futuro” como uma gestação impossível (sempre interrompida por golpes de Estado ou “pílulas do dia seguinte”) e contrapomos a figura do patriarca com as “mães solteiras” e as mulheres “para lida, para farra, para fotografias oficiais”.
"Além disso, cada poema é acompanhado por uma imagem. O fotógrafo Sérgio Silva criou um ensaio fotográfico com partes do corpo de Luiza (seios, pernas, mãos, punhos, pescoço, boca, olhos, umbigo). Cada uma das 28 fotos foi impressa em tamanho 30x30 e costurada à mão pela artista. Materiais metálicos (correntes, talheres, fechaduras, pregos, espelhos) e barbante vermelho criam uma nova tessitura para as imagens em preto e branco, a fim de expressar o silenciamento e o apagamento histórico do corpo feminino."
O livro conseguiu seu financiamento porque todos querem ler Luiza e o que ela tem a dizer sobre nosso país, o que nos construiu e o que viemos a ser.
O livro foi publicado em edição bilíngue(português e espanhol), pelo Selo do Burro e tem o prefácio de Heloisa Buarque de Hollanda.
Ao querer contar a história do Brasil sob a ótica de um útero Luiza nos trás a história que foi silenciada, pois toda a história que conhecemos foi contada pelos homens que sempre ocuparam o poder, negando qualquer espaço que tenha tido as mulheres, os negros e a classe trabalhadora.
Sangria não é apenas um livro de poemas. Sangria é um projeto literário sobre a História do Brasil vista pelas entranhas de uma feminista contemporânea.
Digo projeto, porque o grito que Sangria faz ecoar não se realiza apenas nas páginas impressas deste livro escrito por uma atriz-poeta-performer. Qualquer verso aqui revela o desejo de saltar da página, pede som, pede movimento, pede imagem, pede, sobretudo, ação. Assim como a linguagem, a edição do livro também trouxe demandas de expansão. Temos intervenções, costuras, fotos e uma webnovela.
A poesia em diálogo com a performance e o livro em diálogo com outras mídias é um dos aspectos do que observei com o trabalho em Sangria no limite das linguagens e das categorias. Uma poesia que tira sua força estética de cruzamentos possíveis: a passagem destemida do lírico para a oralidade áspera, do cíclico para o mosaico, da palavra para o movimento, da palavra para a imagem. Contemporâneo. Inadiável.
“Enfim, em Sangria, a nova poesia feminista se revela como um de seus melhores momentos.
prefácio: Heloisa Buarque de Holanda”
Porque 28 poemas e fotografias? O que são esses 28 dias? São os 28 dias do ciclo menstrual porque a história de um país é metaforicamente a preparação de um útero, que pode no fim de seu ciclo vir a gestar um povo ou abortar essa possibilidade.
Genealogia
Uma árvore genealógica nos aponta todos os nossos antepassados, os genes que nos formaram com as exatas características que carregamos - para o bem e para o mal - e passaremos aos nossos filhos.
Na primeira parte de seu livro Luiza traça a árvore genealógica do Brasil; uma árvore que traz em seus galhos a cultura cristã imposta, a escravidão, um país que foi colonizado através do estupro e assassinato para ser explorado, a cultura dos coronéis, uma sociedade patriarcal desde a origem de seu nome - pau-brasil -, mas onde os registros de nascimento não carregam a filiação paterna.
“olho pra caneta e tenho certeza
não escreverei mais o nome desse país
enquanto estupro for pratica cotidiana
e o modelo de mulher
a mãe gentil
dia 1. Nome completo”
Todos esses antepassados nos formaram, é verdade; trazemos eles conosco até hoje, e até hoje temos que combatê-los, romper com eles. Mas não podemos nos esquecer que há também em nossa genealogia levantes negros, revoltas, uma classe trabalhadora insurreta; todos processos que foram abortados com pílulas do dia seguintes, afogados em sangue.
"pra cada gérmen de insurreição
uma pílula
do dia seguinte"
dia 2. Data de nascimento
Em toda essa genealogia a mulher sempre foi um objeto público, pertencente a todos os homens poderosos da nação. As índias, as negras, todas elas podiam ser tocadas por todos, deviam obedecer a todos, atender o desejo de todos menos os delas, ser como todos queriam que elas fossem, mas sob hipótese nenhuma como elas queriam ser.
DIA 5. LOCAL DE NASCIMENTO
(américa)
uma mulher não é um território
mesmo assim
lhe plantam bandeiras
uma mulher não é um souvenir
mesmo assim
lhe colam etiquetas
mais que nuvem
menos que pedra
uma mulher não é uma estrada
não lhe penetre as cavidades
com a fúria
de um minerador hispânico
o ouro que lhe brota da tez
é antes oferenda
que moeda
uma mulher descende do sol
ainda que
forçado à sombra
Descobrimento
Existe um corpo feminino com o qual convivemos nossa vida inteira, um corpo físico, social e político. Um corpo que descobrimos em nossa menstruação como um corpo feito pra gerar vida. Um corpo que descobrimos desejante através da maturbação - um desejo que ensinam como pecado, como culpa -, mas um corpo que não serve pra ser desejado se não obedecer a um padrão pré estabelecido pela sociedade patriarcal; e que mesmo não servindo para ser desejado é assediado cotidianamente, violado e estuprado.
Esse descobrimento através dos versos de Luiza é acompanhado das fotos de Sérgio Silva costuradas por linhas vermelhas de partes do corpo, partes erogenas sem a necessidade da hiperssexualizaçao como buceta, seio, bunda, barriga, orelha...
DIA 11. 1ª CULPA
quarenta de cintura
trinta de quadril
quantos suicídios
cabem numa fita métrica?
Tensão pré-menstrual
É o momento de nos chamarem loucas, mas não é isso que Luiza nos colocará aqui. Essa tensão que antecede algo que está por vir é também um desejo de que venha; é a vontade pelo grito engasgado representado nos versos de Luiza e nas fotos de Sérgio Silva - que compõem mais uma vez essa obra - em que a boca da poeta apesar dos movimentos pela voz aparece tampada por linhas vermelhas e metais.
Corte
Esse grito sufocado uma hora sai da garganta como grito ou silêncio. Em 2013 ele saiu como grito, mas sem direção ele permaneceu apenas como um grito, apesar (e aqui coloco minha opinião) de essa etapa não ter se encerrado.
De 2013 para cá a burguesia nacional se reorganizou, decidiu mudar sua liderança para aplicar de maneira mais efetiva e dura todos os ataques necessário a classe trabalhadora para a manutenção do sistema capitalista. Sofremos um golpe; sofremos mais uma vez um corte.
“mesmo com golpe
vai ter luta
pílula 2 (dia 13 de março de 2015)”
Não sofremos esse golpe de maneira passiva, fomos às ruas, à Brasília, fizemos greves gera - que, infelizmente, foram traídas pelas burocracias sindicais (mais uma vez é a minha opinião pessoal).
Esse golpe não aconteceu pelo fim da corrupção, pela família dos que votaram pelo impeachment, pela moral... esse corte aconteceu porque era preciso estancar a crise econômica fazendo com que nós trabalhadores pagássemos por uma crise que não é nossa.
PILULA 3 (dia 18 de abril de 2016)
"No dia seguinte à aprovação do
impeachment, Dilma se diz injustiçada"
(Jornal nacional)
"Temporada de 2016 da Formula1 está com
número altíssimo de ultrapassagem"
(Jornal nacional)
não pelos filhos de registro sem pai
nem pelos ais das filhas sem paz
nem pelas pás
que cedo enterraram
crianças sem-terra
vítimas de guerra
mas pela minha família
modelo triunfante
pai, mãe, filhos (e amante)
não pelo avante
das sociais melhorias
do voto da maioria
mas pelo meu eleitorado
pelas empreiteiras financiado
que transforma o público
em interesse privado
não por eldorado
pelo massacre dos ribeirinhos
por canudos ou carajás
pelo fim da violência
(sai polícia militar)
mas por deus
o branco de longas barbas
que investe dinheiro e usa farda
pela minha esposa caviar
bela, recatada e dólar
não pelo fim da miséria
qualquer proposta séria
pela série de chacinas e repressão
pelos indígenas
vidas mais dignas
não
pelas minhas insígnias
pelo meu povo
como se fossem Reis
armados de corvo
(mas não engrossamos esse molho
resistência sem medo
somos a história à contrapelo)
Ovulação
Um processo necessário para que a menstruação aconteça ou para que a gestação se inicie. Num jogo de palavras Luiza parece querer nos dizer como a esquerda foi cooptada: para onde foi a oposição quando se fazia necessária?
Menstruação
A menstruação vem, ela significa o fim e o início de um novo ciclo; esse novo ciclo é a revolução que Luiza nos mostra como iminente - não porque estamos as portas da revolução, mas porque um sistema tão injusto não pode continuar em pé.
DIA 27. SANGRIA
ventosas na coluna vertebral
para hipócrates
tudo era uma questão de humor
o fígado vertendo bile
aquilo que foi soco
que foi baixa-a-cabeça
tanque-louça-colchão
não
não quero "limpar as veias"
vá embora com seu bisturi
luvas brancas cortando o mapa
joão batista de lacerda
construindo a europa aqui
café ouro borracha
ciclos dentro e fora de mim
sanguessugas de cartola inglesa
mamando-me até o fim
sou a terra que absorve a deus
a barragem preste a eclodir
SEI SANGRAR POR MIM MESMA
meu útero é uma bomba
e não precisa de fósforo
para explodir
"Sangria" retoma nossa história, coloca as mulheres como sujeitas da linha de frente, nos bota o desejo de mudança, nos chama para a revolução.
“"se caiu palmares caiu bizancio
caiu a bastilha
porque não cairia eu
se caiu as torres gêmeas
a ditadura, o muro de Berlim
porque não haveria de cair
esse maldito sistema"
dia 28. Lutea”
Sangria é um livro militante que apresenta posições políticas que podem inclusive gerar desacordos com seus leitores - eu, por exemplo, nunca sairia em defesa de Dilma, referida como "presidenta" em um dos poemas, pois ela e o PT abriram espaço para a direita através de várias concessões visando a conciliação de classe. Luiza expõe a história, expõe sua visão da história como mulher e chama o leitor a partilhar e construir sua própria visão. É por isso que "Sangria" é um livro corajoso, um livro que rompe o espaço da literatura indo além através de suas fotografias, seus vídeos. "Sangria" é como Luiza Romão: uma poeta corajosa, que ousa ir além.
Luiza lança sua "Sangria" hoje, 11 de outubro, as 19h no Sesc Pinheiros com show da poeta, Alice Ruiz e Luz Ribeiro.