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Crônica | Os portões que separam nós estudantes, deles trabalhadores, não são de aço

Leia a crônica de Virgínia Guitzel sobre a greve dos operários da GM e o movimento estudantil.

Virgínia GuitzelTravesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC

quarta-feira 13 de outubro de 2021 | Edição do dia

Acordo às 4:30, e meu corpo já está acostumado com o cansaço, apesar de ontem ter sido feriado e eu não ter ficado até as 23 horas na frente do computador numa aula EaD. Mas apesar de eu ter acordado no horário normal para sair aqui de Santo André e chegar antes das 7 na escola que trabalho em Campo Limpo, zona Sul, eu não iria trabalhar hoje. Minha escola como muitas outras, hoje está paralisada. Nós trabalhadores da educação estamos em luta em defesa da nossa aposentadoria que mais uma vez os governos fazem questão de atacar o nosso direito ao descanso.

Acordei cedo por um bom motivo, é hoje a nova assembleia dos operários e operárias da GM que vai decidir sobre a continuidade da greve. E eu junto com outros estudantes da UFABC, outras organizações políticas e até o sindicato estamos nos organizando para irmos na assembleia prestar nossa solidariedade e levar um panfleto que fizemos. Hoje o dia promete ser de muitas lutas.

Desço do prédio as 5:30 em ponto, quando meu amigo Lu chegou em casa para irmos juntos. Subimos a rua até chegar na casa da Thais, nossa amiga e bancária que também vai levar sua solidariedade aos operários da GM, porque ela bem sabe como tudo isso se relaciona. Me contou outro dia, de como trabalhar na Caixa Econômica tinha feito ela refletir sobre como o ensino superior no país é difícil. Para boa parte dos jovens que chegam a universidade, isso se dá pela iniciativa privada. O endividamento dessa juventude é brutal, e uma boa parte sequer vai conseguir se formar e ter condições para pagar essa dívida. Agora se fosse o dono da GM ou algum outro patrão que precisasse de uma “ajudinha” com suas contas, seriam os bancos os primeiros a ver como ajudá-los.

Chegamos na casa da nossa amiga, ela e seu companheiro foram conosco até os portões da GM. Chegamos lá, e a Assembleia estava prestes a começar. A gente ficou na calçada, do lado de fora, separados pelo primeiro e pelo segundo portão da fábrica. Entre o segundo portão, do lado de fora estava o caminhão de som do sindicato, e do lado de dentro milhares de operários uniformizados aguardando o inicio da assembleia. Nesse dia tão importante, foi interessante ver os trabalhadores abrindo faixas em defesa da Cláusula 42 do Acordo Coletivo e outra que dizia “Chega de palhaçada”.

Essa Cláusula 42 eu tinha lido já antes a respeito dela, quando vi a pauta de reivindicações dos operários em greve e não sabia sobre o que se tratava. Quando descobri que era sobre um direito elementar de estabilidade para trabalhadores acidentados, fiquei com uma raiva dentro de mim. Logo em uma montadora que mói a carne dos trabalhadores, suga toda sua energia, roubam todo seu tempo, e lhes induz a acidentes de trabalho, querem retirar a estabilidade do Acordo Coletivo para dizer que os lucros patronais valem mais do que a vida de uma pessoa. Que mesmo deixando 30, 40 anos dedicados a GM, dando milhões de lucros todos os anos, aquelas vidas não importam para a patronal.

Enfim, chegamos na Assembleia e não podíamos descer. Abrimos nossas faixas, eu e o Lu dos Estudantes da UFABC em apoio a greve, e também abrimos uma faixa do Sintufabc expressando a solidariedade de diferentes setores da nossa universidade. Ficamos acompanhando atentamente a assembleia e o discurso do sindicato para saber qual seria a decisão dos trabalhadores. Se aceitariam as propostas da GM, que depois de tentar judicializar a greve como abusiva, agora reconhecia a luta dos trabalhadores, inclusive propondo pagar os dias parados sem exigir a reposição. Ou se essa força de dizer que ninguém fica pra trás iria fazer com que os trabalhadores recusassem que este direito fosse negociado em separado.

É um pouco frustrante sair de casa tão cedo para apoiar uma luta tão importante, e o próprio sindicato não fazer questão da nossa presença. Será que eles não veem que podemos ajudar a dar mais visibilidade? Que o nosso apoio pode ser uma força maior para as negociações com a GM? Que essa força da unidade entre trabalhadores e estudantes é o que pode questionar tudo… Tudo… ah, deve ser isso! O problema de que a nossa presença e a nossa energia para cercar de solidariedade para fazer a greve vencer se enfrenta com a orientação do sindicato que é preparar a derrota para manter seus privilégios e seus demais projetos de conciliação de classe, que inevitavelmente, vão contra os interesses da classe trabalhadora.

Mas quando os operários gritaram pela continuidade da greve, e todos aqueles braços levantados mostravam uma força imparável, que me fez pensar mais profundamente o poder que temos, nós que produzimos o mundo. A energia era tão forte que ultrapassou os dois portões e quando começaram a sair da Assembleia, tivemos a chance de entregar nosso panfleto e ouvir de muitos trabalhadores um sincero agradecimento.

Então, que eu pensei: “Os portões que separam nós estudantes, deles trabalhadores, não são de aço”. Os trabalhadores saíram e estávamos ali, esperando por eles. E dissemos em alto e bom som: trabalhador, pode lutar, os estudantes estão aqui pra te apoiar. Que falta faz um sindicato comprometido com a luta dos trabalhadores. Mas também faz falta uma entidade estudantil que estivesse ali, junto com o Comitê dos estudantes, para fortalecer essa perspectiva de um movimento estudantil em aliança com os trabalhadores.

Os portões, por mais que sejam reais, na minha cabeça eles estão para além da GM. São grades que o próprio capitalismo foi auxiliando em construir para garantir a sua manutenção. Esses portões são mantido pela burocracia que dominou os sindicatos do país, tirando as decisões das mãos dos trabalhadores que eles dizem representar, e pelas entidades estudantis que sempre buscam separar as nossas reivindicações da luta dos trabalhadores. São reforçados pela falta do trabalho de base e do impulso a auto organização que permitiria que fossemos sujeitos dessas lutas, com assembleias com voz e voto para que possamos organizar de forma mais democrática possível o nosso movimento.

Mas esses portões não são de aço. E com um pequeno gesto, alguns panfletos e uma faixa de apoio conseguimos transpassar por ele. Conseguimos mostrar uma outra perspectiva, que não seja nem esperar pelas eleições em 2022, nem nos contentar com chamados à outras instituições capitalistas como STF e Congresso Nacional que atacam os nossos direitos, mas sim a confiança nas nossas próprias forças e organização.

Fico pensando, que se do portão pra lá, os trabalhadores se organizam, e do portão pra cá nós fortalecemos essa perspectiva de um movimento estudantil aliado a classe trabalhadora, podemos derrubar essa divisão artificial e mostrar toda a nossa potencialidade na luta de classes.

Agora, preciso parar de escrever. Tenho cerca de 40 minutos para tomar banho e almoçar algo para me juntar aos meus colegas de trabalho para nossa paralisação. Vamos ocupar as ruas em São Paulo para defender nossa aposentadoria. Mas que força imparável seria se os trabalhadores da GM, invés de voltarem pra casa como orienta o sindicato, pudessem aparecer num bloco com centenas de trabalhadores em greve, para unificar a sua luta com a dos servidores municipais. Que energia contagiante não seria ver os estudantes junto aos servidores e aos trabalhadores da GM num único ato, num único grito: derrubemos os portões que nos separam, e sejamos uma só classe contra o capitalismo e toda tentativa de roubar o nosso futuro.




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