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Coluna | Os nomes da inflação no Brasil e a farsa da Selic

Bolsonaro, Guedes, Ucrânia, Fed. São muitos os determinantes da inflação no Brasil, mas a fome sem nome cresce junto com ela e de maneira diretamente proporcional aos lucros da Faria Lima com a Selic de Campos Neto. Frente aos recordes de inflação, faz-se necessário investigar sua origem e como combatê-la.

terça-feira 17 de maio de 2022 | Edição do dia
(Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas)

Desde 2021, a inflação voltou a ser destaque no Brasil, com aumentos sistemáticos de preços de produtos básicos, em especial alimentos e combustíveis. Após fechar 2021 em 10,06%, a inflação tem se acelerado neste primeiro semestre, pressionada bastante pela Guerra da Ucrânia. Este fenômeno, na realidade, tem se apresentado internacionalmente, com a inflação acumulada em 12 meses chegando a 8,3% em abril nos Estados Unidos, a maior desde 1981.

Olhando os relatórios feitos pelos serviços de estatísticas do Brasil, dos Estados Unidos, da Zona do Euro e do Reino Unido, encontra-se um padrão. O que mais tem puxado a alta da inflação é o preço da energia, em especial do petróleo, e a alimentação. A guerra na Ucrânia tem levado a expressivos aumentos nos preços internacionais desses bens, dado que a Rússia é um importante produtor de petróleo e de gás natural, e o principal fornecedor da Europa, e tanto Rússia como Ucrânia são importantes exportadores de alimentos, especialmente trigo e óleo de girassol.

A reação contra a inflação no Brasil tem sido através de uma única via: o forte aumento da taxa básica de juros, a Selic, por parte do Banco Central. A Selic saiu de 2% em janeiro de 2021, para o nível atual de 12,75%. Com a inflação alta a nível internacional, o aumento da taxa de juros também nos Estados Unidos e com o início de um processo de quantitative tightening (QT) [1] por parte do Fed, acabou a era de dinheiro barato nos mercados financeiros internacionais, o que pressiona o Banco Central brasileiro para que faça mais aumentos na Selic. O que se pretende demonstrar, no entanto, é que esta política não é eficiente para combater a atual inflação brasileira, e serve muito mais para aumentar os lucros dos grandes banqueiros e dos detentores da dívida pública.

O aumento da taxa básica de juros pode influir na inflação pela via de dois mecanismos: o primeiro é, ao aumentar as taxas de juros de toda a economia, tornar mais caro o crédito, tanto para famílias consumirem, quanto para empresas investirem, de maneira que se diminui a demanda. Esse mecanismo faz com que o aumento dos juros tenha um efeito recessivo sobre a economia. O outro mecanismo de ação é deixar o Brasil mais atrativo para investimentos estrangeiros, atraindo capitais e valorizando o Real.

Este segundo mecanismo já pode ser sentido atualmente, com a valorização do Real em relação ao dólar que tem caracterizado o ano de 2022 até agora. Isso acontece pois o Brasil está muito à frente na curva de juros, ou seja, que começou a subir suas taxas antes do resto do mundo, e principalmente antes dos países desenvolvidos. Atualmente, o Brasil tem a maior taxa de juros reais do mundo. No Brasil, a taxa de juros real em maio é de 6,69%, enquanto a taxa de juros real nos Estados Unidos ainda é de -3,82%. Apesar disso, a indicação de que o Fed fará aumentos agressivos na taxa básica de juros e que irá iniciar um QT já fizeram o Real se depreciar. O dólar que chegou a valer R$ 4,60 em abril, já subiu para R$ 5,05, na cotação de 13 de maio.

Em relação ao primeiro mecanismo, é bem claro que não há um superaquecimento da economia e da demanda que possa estar levando ao aumento de preços. Em 2021, o Brasil chegou a entrar em recessão técnica, no 2º e 3º trimestres. O crescimento ao fim do ano, de 4,6%, mal serviu para colocar a economia no mesmo nível pré-pandemia. Caso se cumpram as previsões para 2022, se completará meia década de uma economia praticamente estagnada e ainda abaixo dos níveis de 2014, antes da recessão de 2015 e 2016. Em 2021, o consumo das famílias cresceu apenas 3,6%, e o consumo do governo cresceu 2%, o que é reflexo da falta de renda, do desemprego e do ajuste fiscal. O que garantiu esse crescimento foi o investimento e as exportações, mas, mesmo tendo crescido, a taxa de investimento ainda se encontra abaixo da de 2014.

Nesse ponto, portanto, é necessário olhar quais são os determinantes da inflação no Brasil. No relatório trimestral da inflação de março de 2022, o Banco Central realiza uma decomposição da inflação de 2021 para buscar seus determinantes. Um dado interessante desse relatório é que a inflação de preços livres, que são determinados no mercado, foi de 7,7%, enquanto a inflação de preços administrados, que são determinados pelo governo, como gasolina, conta de luz, etc., foi de 16,9%, mostrando como o governo federal é diretamente responsável pelo avanço da inflação.

Na decomposição, o BC estimou o peso de diferentes componentes no desvio da inflação em relação à meta. Tendo terminado o ano em 10,06%, e a meta sendo de 3,75%, esse desvio foi de 6,31%. O principal fator, que contribuiu com 4,38 p.p., foi a chamada inflação importada. Nesse ponto, os principais fatores foram o preço das commodities, especialmente as alimentares, em dólares (0,7 p.p.), e o preço do petróleo (2,95 p.p.). A taxa de câmbio, como um todo, teve um peso de 0,44 p.p.

O modelo do BC identifica ainda que a chamada inércia do ano anterior, especialmente por causa do aumento da inflação no último trimestre de 2020, teve um peso de 1,21 p.p. no desvio. As bandeiras tarifárias da energia elétrica, impostas pelo governo federal, como a bandeira vermelha e a bandeira de escassez hídrica, a partir de setembro, contribuíram 0,67 p.p. para o desvio. Por fim, os chamados outros fatores contribuíram 1,02 p.p. para o desvio, e o hiato do produto teve um peso negativo, de - 1,21 p.p.

Outro ponto importante do estudo do BC é identificar que os choques nos preços de produtos industrializados, causados pela escassez de semicondutores, problemas logísticos, etc. contribuíram com 1,77 p.p. para o total do IPCA de 2021.

Estes dados mostram como os preços administrados tiveram grande culpa pelo avanço da inflação. O preço do petróleo nos mercado internacionais evidentemente não é administrado pelo governo brasileiro, mas o preço dos combustíveis é. A política de paridade internacional de preços da Petrobras levou a seguidos reajustes dos combustíveis, e que seguem em 2022. Em 2021, a gasolina aumentou 47,49% e o gás de cozinha 36,99%, contribuindo com 2,33 p.p. e 0,41 p.p., respectivamente, para o IPCA. Em troca, a Petrobras anunciou que irá pagar mais de R$ 100 bilhões em dividendos referentes ao ano de 2021. No primeiro trimestre de 2022, a companhia anunciou lucros de R$ 44 bilhões.

Outro preço administrado com forte peso na inflação foi o da energia elétrica residencial, que subiu 21,21% em 2021, e contribuiu com 0,98 p.p. para o IPCA, em especial por causa da ativação de bandeiras mais altas, e pela criação de uma nova bandeira ainda mais alta, que onera os consumidores domésticos e garante lucros para as distribuidoras privatizadas.

Todos esses preços são definidos pelo governo federal ou, no caso dos combustíveis, por uma empresa estatal. Mas isso não significa, porém, que o governo federal não tenha nenhum poder perante os preços livres. No preço dos alimentos, por exemplo, o governo não possui nem sequer estoques com os quais ele possa buscar intervir nos preços, que tendem a subir junto com o dólar, pois mesmo sendo produzidos internamente, o câmbio desvalorizado torna as exportações mais atraentes.

Em abril, o IPCA, do IBGE, considerada a inflação oficial do Brasil, foi o maior desde 1996, com 1,06% no mês e 12,13% no acumulado de 12 meses. Já o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação para famílias assalariadas com renda de até 5 salários mínimos, terminou abril com um acúmulo de 12,47% em 12 meses. Demonstrando como a inflação afeta mais os setores mais pobres, um cálculo do IPEA mostrou que, em 2021, a inflação para as famílias com renda de até R$ 4500 foi mais alta que o dado nacional, chegando a 10,40%, a depender da faixa de renda.

A natureza da inflação

Tendo visto esses dados, faz-se importante olhar, brevemente, na natureza da inflação. A inflação se apresenta como um aumento generalizado e persistentes de preços, porém, mais do que apenas isso, ela é também um conflito distributivo, pois redistribui a renda da sociedade em favor daqueles que podem reajustar seus preços, em detrimento dos que não podem.

Essa competição se dá entre os diferentes ramos da burguesia, e também entre a burguesia e os trabalhadores. O que define a capacidade de cada ramo produtivo de aumentar seus preços é o nível de concentração da produção naquele ramo, onde ramos que têm menor número de firmas operando têm maior poder de reajuste de preços sem perder fatias do mercado. Existem outros determinantes da elasticidade-preço dos bens, que também influenciam nesta capacidade, mas são secundários.

Já no conflito de classes, é o poder de barganha dos trabalhadores que determina o quanto eles podem reajustar seu “preço” (o salário). Este poder de barganha é definido, fundamentalmente, pelo nível de organização dos trabalhadores em sindicatos e partidos e pelo nível de desempregados que poderiam ser contratados com menores salários para ocupar o lugar dos trabalhadores atuais.

No Brasil de hoje, é possível dizer que o poder de barganha dos trabalhadores se encontra baixo, tendo em vista o exército de reserva de mão-de-obra, constituído pelos mais de 11 milhões de desempregados, as recentes reformas que enfraqueceram sindicatos e retiraram direitos, e a burocracia sindical que se esforça para evitar lutas e reivindicações dos trabalhadores. Uma demonstração disso é que o rendimento médio real de todos os trabalhos, medido pela Pnad Contínua, foi de R$ 2548 em março de 2022, um rendimento menor do que em 2012. O mínimo da série histórica foi registrado no último trimestre de 2021. A massa de rendimentos estava 7,3% abaixo de seu ponto máximo, em 2019.

A baixa no rendimento dos trabalhadores, somado com o aumento generalizado dos preços de diversos produtos, são demonstrações que a inflação no Brasil tem agido como uma redistribuição de renda dos trabalhadores para aqueles que detém a produção no Brasil, as grandes empresas. Existem dados de outros países que também indicam isso.

O think-tank americano Economic Policy Institute estudou os aumentos de preços nos Estados Unidos desde o início da pandemia, no segundo trimestre de 2020. Eles chegaram aos resultados de que 53,9% dos aumentos de preços se devem a aumentos no mark-up, o quanto o preço final está acima dos custos de produção, ou a margem de lucro bruta. 38,3% dos aumentos se devem a aumentos nos custos, excluindo o trabalho. Esse segundo componente se explica, fundamentalmente, pelas disrupções nas cadeias produtivas, problemas com transporte, escassez de semicondutores etc.

A partir do que foi colocado, pode-se afirmar que a política de aumento brusco da taxa básica de juros terá um efeito pequeno na diminuição da inflação, e gera efeitos recessivos em uma economia que já se encontra quase em ponto morto. O próprio efeito sobre o câmbio será limitado, ou irá necessitar de aumentos ainda mais fortes na Selic. Além disso, esse aumento dos juros não se combina com medidas que poderiam segurar os preços de produtos duramente afetados por variações cambiais, como os alimentos ou o petróleo.

O aumento da Selic, no entanto, representa um forte aumento nos lucros dos bancos, em especial dos detentores da dívida pública, e torna mais atrativo um investimento seguro, em um momento onde não há mais o dinheiro barato no mercado para se especular com ações ou outros investimentos mais arriscados. Segundo cálculos do economista Gabriel Leal de Barros para o portal Poder360, caso a taxa Selic termine o ano em 13,25%, que é a atual previsão do mercado, o estoque da dívida pública iria aumentar em mais de R$ 580 bilhões. O pagamento de juros da dívida entre março de 2021 e fevereiro de 2022, que corresponde ao primeiro ano do atual ciclo de alta nos juros, foi de R$ 422,5 bilhões. Isso já é um aumento de 33,5% em relação ao que foi pago nos 12 meses anteriores. Existem setores do mercado que já pressionam, ou prevêem, que a Selic pode terminar o ano em um patamar ainda maior do que o que diz o último Boletim Focus.

Esse aumento inflacionário causado, em parte, por decisões diretas do governo de Bolsonaro, junto com os aumentos seguidos na Selic, mostram a serviço de quem está agindo o governo federal e o Banco Central, ao garantir os lucros da grande burguesia. Perante isso, o movimento de trabalhadores deve se enfrentar diretamente com esses aumentos de lucros, reivindicando reajustes salariais mensais de acordo com a inflação, para que não percam poder de compra, e um salário que seja suficiente para cobrir verdadeiramente os custos de vida, pois hoje os baixos salários são um dos principais fatores da precarização da vida que atinge os trabalhadores, os jovens e os setores populares no Brasil. Contra o desemprego que lança à fome milhões de pessoas, ao mesmo tempo que contrai os salários dos empregados, há que se lutar pela redução da jornada de trabalho sem redução de salário, e a divisão das horas entre empregados e desempregados.

Esses pontos de programa só podem ser defendidos com independência de classe, sem conciliação com nenhum setor da burguesia “anti-bolsonarista” mas que também busca aumentar seus lucros às custas dos trabalhadores. Essa é a luta que o MRT busca dar dentro do Pólo Socialista e Revolucionário, junto com outras organizações, contra os ataques de Bolsonaro e a política de conciliação de classes da chapa Lula-Alckmin.


[1O QT é o contrário do quantitative easing (QE) que vinha sendo implementado pelos Bancos Centrais na última década. Ele consiste em diminuir o tamanho dos balanços do Fed, deixando que títulos de dívida se expirem sem serem substituídos, retirando dinheiro do mercado. Segundo a The Economist, o Fed deverá diminuir seu portfólio em US$ 95 bilhões por mês.





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