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Os liberais mergulhando no abismo

Iuri Tonelo

Os liberais mergulhando no abismo

Iuri Tonelo

Nem sempre a ausência da luta de rua indica passividade em todas as esferas da vida social. Dito de outra forma, a passividade vigente no Brasil atual está cheia de dinâmica na superestrutura, polarizações, jogos políticos, acordos e ameaças. Dos pacotes neoliberais de Paulo Guedes ao leilão do pré-sal que fracassa, das intrigas e disputas no congresso às viradas de posições do STF, da ameaça de AI-5 pelos Bolsonaro a soltura de Lula, o vai e vem de um país que é governado por um dos grandes símbolos políticos do reacionarismo hoje continua a todo vapor. E, ao nosso lado, o golpe de Estado na Bolívia de um lado, as rebeliões no Chile e Equador de outro. O relógio parece que tomou corda e faz o pêndulo caminhar de um lado ao outro num movimento constante em que as tentativas que rumam ao centro parecem fracassar a cada nova badalada.

As duas forças que aparecem como polares, Lula e Bolsonaro, mantém seu espaço nos extremos, um espaço que tem aparecido em âmbito internacional, a saber, o reformismo e a extrema-direita. Ao centro brasileiro, Ciro Gomes bate cabeça consigo mesmo sem encontrar o rumo, se defende a prisão de Lula ou se crítica Bolsonaro. E um de seus antigos parceiros de partido no PSDB e outrora uma das cabeças sagazes da política dominante, Fernando Henrique Cardoso, conclama o “liberalismo progressista” em seu artigo “A esfinge e os líderes” do Estadão, oscilando do liberalismo abertamente golpista para um de viés mais light (ou “progressista”); parece dar uns passos de lá pra cá sem modificar o sentido fundamental de seu movimento, o salto de cabeça para o abismo político. E essa orientação não é apenas do príncipe da sociologia: há pouco mais de um ano, a revista britânica The Economist soltava uma espécie de “um manifesto para renovar o liberalismo” [A manifesto for renewing liberalism, 13/09/2019], e o quadro dos avanços liberais ao longo desse ano não é muito alentador. O que indica essa impotência do centro liberal (ou no sentido que estamos trabalhando nesse texto, do liberalismo) em nível internacional?

A fenda que gerou o abismo

O que estamos vivenciando na política brasileira e internacional de crise do centro e “crise dos liberais” não é um fenômeno novo e nem que não tenha sido abordado por distintos pensadores. Tariq Ali talvez já em 2015 foi um dos que foram felizes em definir essa “crise do extremo-centro”.

O fundamento que está na base desse processo é a virada na dinâmica internacional do capitalismo a partir da crise de 2008, fortemente marcada pelo crash do banco de investimentos Lehman Brothers. Os efeitos da crise, como é sabido, foram um debilitamento (ou até bancarrota) de importantes partidos da “velha direita” ou dos “partidos socialistas”, em países como Grécia, Espanha, Portugal, Itália, chegando a fenômenos internos em partidos tradicionais como o Labour e Tories no Reino Unido, os Democratas e Republicanos nos EUA, ou a crise do PT e PSDB no Brasil.

O efeito visível de crise política ficou patente em muitos países, mas cabe chamar a atenção para quais os fatores estiveram na base disso, pensando sua dinâmica futura e não só passada. Ao nosso ver, de forma sintética, quatro grandes fenômenos podem ser destacados ao se fazer a genealogia dessa crise orgânica (para usar os termos de Antonio Gramsci) que a crise de 2008 produziu: a) em primeiro lugar, os fenômenos de luta de classes e resistência operária a partir dos planos de austeridade em 2009, tendo como grande palco de conflito a Grécia, ou fenômenos mais amplos que questionaram regimes políticos, como a Primavera Árabe, o que levou a liquidar partidos e personalidades políticas tradicionais no poder; b) em segundo lugar, a emergência da juventude em distintos conflitos a partir de 2011 com os indignados no Estado Espanhol e em outros distintos países, e as lutas contra opressões como a primavera feminista, black lives matter e um forte questionamento à repressão e perseguição sexual dos LGBT’s, movimentos potencializados pela explosão da internet com smartphones, levaram a uma mudança de grande alcance no debilitamento da hegemonia política dos partidos tradicionais, que não conseguem hegemonizar a juventude; c) com a intervenção mais agressiva imperialista no Oriente Médio a partir da primavera árabe vemos um afluxo expressivo de imigrantes, com forte peso da Síria, mas também de muitos outros países, para a Europa (sobretudo as potências), e também para os Estados Unidos, o que leva a uma transformação grande da população, com as empresas e o grande capital utilizando da força de trabalho imigrante para o acirramento da precarização e, ao mesmo tempo, a crescente xenofobia alimentada pelo capital e governos, o que também tem acirrado os ânimos e desgastado as soluções de centro; d) por fim, como fator decisivo que enlaça e potencializa os demais, está o crescimento econômico internacional estancado, e outros efeitos que derivam e se relacionam com isso, como o aumento contínuo da desigualdade, a baixa produtiva do trabalho, as baixas taxas de investimento, o aumento incomensurável da precarização, informalidade e uberização do trabalho, em suma, o conjunto das contradições econômicas que seguem também tem inclinado as populações a “soluções radicais”, distantes do discurso “moderado” de centro. A guerra comercial EUA-China que avança e retrocede aparece como expressão aguda dessas contradições.

Essas tendências têm se revelado mais estruturais que conjunturais, e se debilitaram o centro abrindo a fenda nos anos passados, parecem estar crescentemente provocando novos tremores e um vazio ainda maior no centro político.

November 2020: do vazio ao abismo?

Sem dúvida um fator de coroamento dessa “crise do centro” internacional foi a eleição de Donald Trump em 2016. O presidente eleito dos EUA expressa essa curiosa nova personalidade da ultra-direita: arqui-reacionária nos costumes, disruptiva no plano político (protecionista, anti-globalista), mas com uma orientação mais “moderada” na economia, de cães que apesar de ladrarem alto, são domesticados em Chicago. A rigor, Bolsonaro é em tudo mais polar, incluindo a sua faceta Paulo Guedes, mais neoliberal, na economia. A pergunta que se colocaria analisando a extrema-direita e o centro político é a seguinte: a era da extrema-direita, que tem desde 2016 avançado em distintos pontos do mundo, sobretudo Hungria, Itália, Reino Unido e Brasil, sofrerá um golpe decisivo nas próximas eleições americanas do ano que vem? Ou seja, a corrente liberal internacional pode voltar a se fortalecer em seu bastião e, a partir disso, recobrar uma existência política mais vigorosa?

Essa incógnita, a aposta da década, não pode ser respondida com sucesso a tanto tempo do pleito, mas algo da dinâmica da disputa democrata aparece como reveladora: a dificuldade de emplacarem Joe Biden o candidato do centro por excelência, a expressão de direita da ala liberal mainstream do partido. De um lado, a situação da economia com crescimento maior que esperado e desemprego baixo baseado em muitos postos precários tem desenvolvido um sentido comum “socialdemocrata” nos EUA, incluindo um forte simpatia da juventude pelo “socialismo”, o que fortalece as alas esquerdas dos democratas. Trump percebendo as dificuldades do centro utiliza a tática já usual da extrema-direita: polarizar com as alas esquerda do partido - sendo o foco as deputadas do chamado esquadrão, capitaneadas por Ocasio-Cortez, novo fenômeno reformista do partido democrata - ou seja, polariza contra o “socialismo” nos EUA e joga uma bomba relacionada a opinião publica contra Biden, o que levou ao desgaste daquele que seria o principal no partido contra Trump.

As pesquisas indicam crescimento da candidata Elizabeth Warren (a que ver como fica agora com a entrada de Michael Bloomberg), que embora não “socialista” como Bernie Sanders, é mais localizada no espectro de esquerda que Biden. Isso significa que não se trata de uma candidata do “centro”? Não exatamente, mas indica que ainda há um ano das eleições a incapacidade de emplacar um centro forte por ser reveladora da manutenção da crise do centro, e que não se descarta hoje uma eleição mais polarizada entre Trump e Sanders, por exemplo. De todo modo, ainda que não chegue a esse ponto, a tendência a polarização joga contra os candidatos liberais de centro, pois não resta dúvida de que a tendência a polarização nos EUA não deixará de se apresentar até o final do ano que vem...

O golpe na Bolívia: os liberais rodando em parafuso

Indo mais para o plano conjuntural, o golpe na Bolívia, embora sem nenhuma garantia de se consolidar, demonstra uma tentativa agressiva da extrema-direita de avançar em posições no tabuleiro internacional. E, em certo sentido, também da novos indícios de que a crise de hegemonia que se expressa nos distintos países tem colocado para a corrente liberal muita dificuldade de capitalizar: o plano destes na Bolívia não poderia ser mais claro e arquitetado: questionar as eleições e a “fraude” de Evo Morales, inviabilizar o processo, desgastar o presidente, impor novas eleições e, por fim, fazer uma transição “lenta, gradual e segura” para a direita liberal, com Carlos Mesa. No meio do caminho surgiu Camacho e a sua trupe arqui-reacionária, armada de bíblias e balas, e estragou a festa. A corrente do centro-liberal, vide seus grandes expoentes no Brasil como a Rede Globo, rodavam em parafuso sem saber o que apoiar: se correr o bicho pega (Camacho, extrema-direita), se ficar o bicho come (Morales, reformismo).

Espremida entre esses extremos a corrente do centro liberal delira com os sonhos de um liberalismo que atraia a base de alguns desses setores. No caso brasileiro, tentaram ser os paladinos do golpismo e disputar a base da direita e fracassaram em toda linha, com forte emergência de Bolsonaro esmagando o PSDB. Agora FHC olha para o outro lado do centro, posando de progressista ao dizer que “o centro liberal precisa ser progressista não apenas porque a igualdade de oportunidades e a garantia de um patamar de condições de vida dignas para todos são essenciais para uma democracia estável e uma sociedade civilizada, mas também porque vivemos outro momento do capitalismo, no qual as políticas públicas devem ser complementadas pela ação da sociedade civil” (Estadao, 03/11/19).

Uma tragédia: em tempos de passividade, vão disputar o terreno eleitoral com Bolsonaro a direita e Lula e a esquerda, dura disputa. Em tempos de ação, perdem a condução de processos agudos para a extrema-direita, sendo um caso emblemático o da Bolívia, entre Camacho e Jeanine Añez. Evidentemente podem correr atrás e terminar em uma eleição com um resultado favorável na superestrutura, mas os conflitos, embates, mortes na Bolívia já deixam um país sem vias fáceis de apaziguar.

Da rebelião no Chile ao Brasil: só as frentes amplas podem salvar os liberais

Segue vigente o processo de mobilizações no Chile, que promoveu algumas das maiores marchas da história do país, nessa semana a maior greve geral desde a redemocratização, um dos maiores movimentos de juventude da atualidade do mundo, em suma, uma verdadeira rebelião popular. O processo tem questionado com tudo as forças de repressão, o regime pinochetista (tornando a constituinte uma demanda amplamente popular e conhecida) e feito pó da popularidade de Piñera. Condições claramente colocadas para uma greve geral e um derrubada do governo pela luta das massas nas ruas. A direita tradicional perdendo mais uma posição, ameaçada desta vez pela juventude e trabalhadores. O centro liberal pergunta: “quem poderia nos salvar?”. Quem pode auxiliar a reconstituir a hegemonia carcomida da burguesia e o governo chilenos?

A resposta para essa pergunta não é apenas relacionada a situação chilena, já que a crise da corrente internacional liberal não é a crise apenas de uma forma de fazer política: em certo sentido, é a expressão aguda da crise de hegemonia das classes dominantes sobre o proletariado internacional e as classes médias, portanto, uma crise do sistema capitalista. A expressão dessa crise está justamente na emergência da extrema-direita, que com seus discursos ultraneoliberais no que se refere a exploração do trabalho, pró-desigualdade, contra mulheres, negros, LGBTs, indígenas, uma forma agressiva de fazer política com os trabalhadores e, portanto, instável.

Nesse marco, a possibilidade de uma esquerda que diga a que veio, que questione as desigualdades, as opressões, as formas brutais de exploração e ofereça uma alternativa anticapitalista está mais que na ordem do dia. Não é o que está acontecendo no Chile, pois o próprio presidente Piñera, quase flutuando no ar sem força e poder, propõe uma manobra constituinte e adivinhem: precisamente nesse momento o centro liberal estende as mãos e utiliza de seu aliado mais infalível na história do século XX (e do começo do século XXI), o reformismo. O que a Frente Ampla e o Partido Comunista têm feito com sua política atualmente é duplamente lastimável: apoiam a forma do governo de se preservar, com sua farsesca constituinte e, ao mesmo tempo, criam as bases para a reconstituição do regime, dando novo folego aos liberais.

A história se repete: no caso brasileiro, basta dizer que antes dos conflitos agudos da luta de classes nós que temos memória boa sabemos qual seria a postura de Lula, e nem fica tão estranho nesse sentido FHC falando em liberalismo progressista. Estamos no país em que a “esquerda”, o petismo, é paladina da conciliação. Mas o que chama atenção (se bem que já nem deveria chamar) é o presidente do PSOL no Chile comemorando a transição feita por Piñera como grande vitória, ou seja, o sinal é que tendo o incêndio, os bombeiros já estão mais que treinados para salvar os liberais.

Ainda tratando do PSOL, aquele que estaria à esquerda da conciliação petista, talvez nada mais emblemático que a imagem de Freixo e Janaina Paschoal proseando em agosto desse ano. Para quem está disposto a “conversar” com a direita doentemente golpista, por que não estará disposto as mais amplas frentes eleitorais, acordos programáticos, alianças com o “centro democrático”, com sua pitada de “desenvolvimentismo”, desse país?
As três correntes políticas dominantes no mundo hoje são a extrema-direita, os liberais (centro liberal) e os reformistas. Os liberais insistem em tentar recompor os cacos de uma democracia que se espatifou no chão e rompeu em mil pedaços. Os reformistas (e neoreformistas) parecem ser os primeiros a se prontificar a ajudar a juntar os cacos. A extrema-direita espalha e pisa em cima dos cacos dessa democracia decomposta. A única resposta é apresentarmos uma alternativa de independência dos trabalhadores, abertamente anticapitalista e socialista. A nova dinâmica da luta de classes internacional coloca novas possibilidades para isso, com rebeliões, processos revolucionários e greves gerais que indicam que a possibilidade de uma verdadeira revolução social está mais em voga, única forma de sair do eterno retorno do casamento de reformistas e liberais...


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Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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