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CAPITÃES DE AREIA | Os “Capitães de Areia” Meninos/Homens de Jorge Amado

Na primeira seção desta obra de Jorge Amado – Cartas à Redação – ouvimos diversas vozes sobre de quem é a culpa pelas atividades criminosas dos Capitães de Areia. Trazendo essa reflexão para a atualidade: seria culpa da maioridade penal que impede a juventude de ser presa?

quarta-feira 24 de agosto de 2016 | Edição do dia

Um jornal noticia “sobre a atividade criminosa dos Capitães da Areia, nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe […] Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa […] O que se faz necessário é uma urgente providência da policia e do juizado de menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces criminosos, que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido, aos Institutos de reforma de crianças ou às prisões.

Não difere muito do que aparecem nos jornais e na televisão hoje em dia, no entanto está em “Capitães da Areia” livro de Jorge Amado publicado pela primeira vez em 1937. Nessa primeira seção da obra – Cartas à Redação – ouvimos diversas vozes sobre de quem é a culpa por essa situação.

Trazendo essa reflexão para a atualidade seria culpa da maioridade penal que impede a juventude de ser presa, é por isso que a mídia fala tanto nisso? É a policia que não age? Como neste artigo, neste artigo, aqui, aqui e aqui. De quem é a culpa? É através de punição e violência, que se resolve o problema? A resposta não é simples, mas sem dúvida passa pelo NÃO. A violência policial e a prisão não são respostas para os problemas dessa juventude.

Vamos adentrar mais na história desses meninos do Cais da Bahia, e conhecer suas trajetórias e a sobrevida das condições que lhes foi imposta “Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas”. Sob a Lua num Velho Trapiche Abandonado as crianças dormem, é curioso notar que comece assim essa parte do livro, para que não nos esqueçamos que se tratam de crianças.

Pedro Bala é o líder dos Capitães da Areia, ganhou o respeito do grupo e um tralho no rosto em uma mesma luta contra o antigo líder por lutar desarmado, brigaram porque “Pedro Bala era muito mais ativo, sabia planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e na voz a autoridade de chefe”. Bala, o grande líder do grupo, justo na sua justiça, protagoniza grande parte das aventuras do livro. Fica até difícil tentar reproduzir de forma resumida sua presença na história, como está feito com os outros personagens a seguir, devido sua recorrência e importância. Diante disso destaco sua inflexão de menino ladrão para para aspirante de revolucionário, “um dia iria fazer uma greve como seu pai... Lutar pelo direito... Um dia um homem assim como João de Adão poderia contar a outros meninos na porta das docas a sua história, como contavam a de seu pai”, e ao fim do livro passa a se dedicar a organizar grupos de meninos para a atividade revolucionária, “organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida”.

João Grande “o mais alto do bando, e o mais forte também”, desde cedo “se fez um dos chefes e nunca deixou de ser convidado para as reuniões que os maiorais faziam planejar os furtos”, era também um negro bom, com Bala não se cansava de dizer. Seu destino foi embarcar “como marinheiro num navio cargueiro”.

João José, o Professor, leitor voraz e também excelente desenhista, “gostava de saber coisas e era ele quem muitas noites, contava aos outras histórias de aventureiros, de homens do mar, de personagens heroicos e lendários, histórias que faziam aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade, numa ânsia de aventuras e de heroísmo. João José era o único que lia correntemente entre eles e, no entanto, só estive na escola ano e meio”. “Pedro Bala nada resolvia sem o consultar e várias vezes foi a imaginação Professor que criou os melhores planos de roubo”.

Certa vez o Professor encontrou um homem, em pleno verão, “vestido com um grosso sobretudo para tomar um refresco numa das cantinas da cidade. Parecia um estrangeiro [...] O Professor achou o homem engraçado e com cara de sujeito de dinheiro e começou a fazer um desenho dele (com o sobretudo enorme, maior que o homem, era o próprio homem o sobretudo) a giz no passeio. E ria de satisfação, porque provavelmente o homem lhe daria uma prata de dois mil-réis. O homem voltou-se na sua cadeira e olhou o desenho quase concluído. O Professor ria, achava o desenho bom, o sobretudo dominando o homem, era mais que o homem. Mas o homem não gostou da coisa, se deixou possuir por uma grande raiva, levantou-se da cadeira e deu dois pontapés no Professor […] aconteceu que no caminho para o trapiche, no deserto do areal sob o sol, encontrou novamente, minutos depois, o homem de sobretudo […] O Professor foi silenciosamente por detrás do homem quando chegou perto tomou a frente com a navalha na mão. A vista do homem tinha transformado a confusão de seus sentimentos num único sentimento: vingança. O homem o olhou aterrorizado [...] o Professor saltou em cima dele e lhe cortou a mão com a navalha. O sobretudo ficou abandonado no chão e o sangue caía da mão do homem na areia".

O professor não seguiu na vida de Capitão da Areia, aproveitou a oportunidade que surgiu e tomou rumo para o Rio de Janeiro, foi estudar para ser pintor, expressar essa marca que carrega em seu peito pelo “amor à liberdade. Marca que o faria abandonar o velho pintor que lhe ensina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta quadros que, antes de admirar, espantam todo o país”, em sua obra “todos os sentimentos bons estão sempre representados na figura de uma menina magra de cabelos loiros e faces febris. E que todos os sentimentos maus estão representados por um homem de sobretudo negro e um ar de viajante”, refletindo sua própria vivência, além da forte e estranha presença “de cenas e retratos de meninos pobres”. Professor consagrou-se grande pintor e pintou sua realidade de menino abandonado, de Capitão da Areia.

Sem Perna “era o espião do grupo, aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana, passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade. Coxo, o defeito físico valera-lhe o apelido. Mas valia-lhe também a simpatia de quanta mãe de família o via, humilde e tristonho, na sua porta pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite”. Apesar da aparência inicial de frágil ele costumava burlar a todos, “ridicularizava a tudo, era dos que mais brigavam. Tinha mesmo fama de malvado”. “O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava”, antes de entrar para o grupo “vivera na casa de um padeiro a quem chamava “meu padrinho” e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar. A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava. Ainda hoje ouve como os soldados riam”.

O destino de Sem-Perna não foi dos melhores entre os do grupo, em um audacioso plano alguns do grupo acabaram encurralados pela polícia “Pedro Bala e João Grande abalaram pela ladeira da Praça. Barandão abriu no mundo também. Mas o Sem-Pernas ficou encurralado na rua […] Sem-Pernas sabia que se corresse na rua o pegariam com certeza. Eram homens, de pernas maiores que as suas, e além do mais ele era coxo, pouco podia correr. E acima de tudo não queria que o pegassem. Lembrava-se da vez que fora à polícia. Dos sonhos das suas noites más. Não o pegariam e enquanto corre este é o único pensamento que vai com ele [...] Sem-Pernas não para. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo. A praça toda fica em suspenso por um momento. Se jogou, diz uma mulher, e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio”.

Gato “é o elegante do grupo” “Vinha do meio dos Índios Maloqueiros, crianças que vivem sob as pontes de Aracaju. Fizera a viagem na rabada de um trem. Conhecia bem a vida de um grupo de crianças abandonadas. E já tinha da mais de 13 anos”. “Gato andava pelas ruas das mulheres, o cabelo muito lustroso de brilhantina barata, uma gravata enrolada no pescoço, assoviando como se fosse um daqueles malandros da cidade”. As mulheres da rua, ou da vida, por assim dizer, “Sabiam que dali sairia um daqueles vigaristas que enchem a vida de uma mulher, que lhe tomam dinheiro, dão pancadas, mas também dão muito amor. Muitas delas gostariam de ser a primeira mulher deste malandro tão jovem. Mas eram dez horas, hora dos homens que pagavam. E o Gato andava de um lado para outro inutilmente. Foi quando viu Dalva [...] Era uma mulher de uns trinta e cinco anos, corpo forte, rosto cheio de sensualidade. O Gato a desejou imediatamente”. “O Gato voltava todas as noites. Dalva nunca lhe deu sequer um olhar. Por isso ele ainda a amava mais. Ficava numa espera dolorosa até meia hora depois de meia-noite, quando o flautista chegava e, depois de a beijar na janela, entrava pela porta mal iluminada. Então o Gato ia para o trapiche, a cabeça cheia de pensamentos: se um dia o flautista não viesse... Se o flautista morresse... [...] E uma noite o flautista não veio. Nesta noite Dalva andara pelas ruas como uma doida, voltara tarde para casa, não recebera nenhum homem e agora estava ali, postada na janela, apesar de já ter dado as doze horas há muito tempo. Aos poucos a rua foi ficando deserta. Não restaram senão o Gato na esquina e Dalva, que ainda esperava na janela. O Gato sabia que aquela era a sua noite e estava alegre. Dalva desesperava. Então o Gato começou a passear de um lado para o outro da rua até que a mulher o notou e fez um sinal. Ele veio logo, sorrindo” tendo sido solicitado a ir em busca do flautista foi desanimado, o encontrou com outra e veio dar a má notícia, para ele boa, mesmo portando a má notícia ainda ganhou os trocados que roubou na bolsa da nova amante do flautista e de quebra ainda ganhou Dalva para si. Seu destino foi viver como vigarista, explorando mulheres e enganando ricos fazendeiros.

Boa Vida era o malandro do grupo, queria mesmo era viver da Bahia “seria tão fácil viver uma boa existência de malandro, navalha na calça, violão debaixo do braço, uma morena para derrubar no areal. Era a existência que desejava ter quando se fizesse completamente homem”. Ele aos pouco se tornou um malandro completo “pouco aparece no trapiche. Tem um violão, faz sambas, está enorme, mais um malandro nas ruas da Bahia. Ninguém tem uma vida igual à dos malandros. Passa o dia conversando nas docas, no mercado, vai às festas dos morros e da Cidade de Palha à noite, ou às macumbas. Toca seu violão, come e bebe do melhor, apaixona as cabrochas bonitas com sua voz e sua música. Arma fuzuê nas festas e quando a polícia o persegue vem se esconder no trapiche entre os Capitães da Areia”.

Pirulito “era magro e muito alto, uma cara seca, meio amarelada, os olhos encovados e fundos, a boca rasgada e pouco risonha”, provavelmente o único dedicado a algum credo religioso no grupo. “Os outros, a princípio, faziam muita pilhéria quando o viam de joelhos, rezando. Porém já haviam se acostumado e ninguém mais reparava”. Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães da Areia. Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo, contavam dele que uma vez pusera o punhal na garganta de um menino que não queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando devagarinho, sem tremer, até que o sangue começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria. Mas contavam também que outra vez cortou de navalha a Chico Banha quando o mulato torturava um gato que se aventurara no trapiche atrás dos ratos. No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus, do céu, de Cristo, da bondade e da piedade, Pirulito começou a mudar. Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no trapiche. Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava o padre José Pedro. E se voltou de todo para Deus, ouvia a voz de Deus, rezava ante os quadros que o padre lhe dera. No primeiro dia começaram a mofar dele no trapiche. Ele espancou um dos menores, os outros se calaram. No outro dia o padre disse que ele fizera mal, que era preciso sofrer por Deus, e Pirulito então dera a sua navalha quase nova ao menino o que espancara. E não espancara mais nenhum, evitava as brigas e se não evitava os furtos era que aquilo era o meio de vida que eles tinham, não tinham mesmo outro. Pirulito sentia o chamado de Deus, que era intenso, e queria sofrer por Deus”, dessa forma se tornou profundamente religioso. Por fim conseguiu se fazer frade, e um dia, quem sabe, padre.

Volta Seca era um menino sertanejo, vivia em busca de saber notícias de Lampião seu “padim”, além disso era exímio imitador de animais. “Uma tarde a polícia o pegou quando o mulato despojava um negociante da sua carteira. Volta Seca tinha então dezesseis anos. Foi levado para a polícia, o surraram porque ele xingava todos, soldados e delegados com aquele imenso desprezo que o sertanejo tem pela polícia. Ele não soltou um grito enquanto apanhou. Oito dias depois o puseram na rua, e ele saiu quase alegre, porque agora tinha uma missão na vida matar soldados de polícia” acabou saindo da Bahia em direção a Sergipe, para dar um tempo de a polícia esquecer seu rosto, na viagem na rabada de um trem acabou por encontrar seu padrinho e se agregar a seu bando, onde pode externar todo seu ódio contra a polícia, contando mais de 70 traços no seu fuzil que significa as pessoas que matou, fora condenado a 30 anos de prisão por 15 assassinatos provados.

Há ainda Dora – Filha de Bexiguento – que só entra aparece do meio para o fim do livro. Ela é filha de uma lavadeira, última vítima do surto de Varíola que infestou a cidade. Acompanhada do irmão caçula, decidida a não dar trabalho aos vizinhos pobres, tomou seu rumo em busca de um emprego, de forma vã. Acabou em companhia dos Capitães da Areia, que a principio não souberam acolher uma menina no bando, no entanto depois dessa chegada conturbada acabou ser tornando a mãezinha de muitos deles, irmã/mana para alguns e para Pedro Bala um par romântico, uma amada, como também para o Professor.

Diante do contexto de vida criminosa desses meninos e do ódio que é alimentado pelos abastados, o que fazer se prendê-los? Em uma situação em que foram encurralados Pedro Bala, que garantiu a fuga dos companheiros, sabe bem o que sofreu no reformatório, e no cafua – um vão pequeno e escuro onde não se pode ficar de pé, muito menos deitado, passando fome e sede – imagine para quem conhece a liberdade plena como um Capitão da Areia. Os dias trancados foram de profunda tortura para Bala, ainda mais angustiado pelo destino de Dora também presa. Que subitamente adoeceu no orfanato, mesmo depois de recuperarem a liberdade Bala ficou marcado pela experiência, ficou marcado ainda mais pelo morte de Dora em seus braços.

Há também personagens, que poderíamos chamar de apoio, visto que são adultos utilizados como pontas para certas tramas no livro. Se destacam o Querido-de-Deus era um capoeira e pescador, amigo do grupo, por vezes desenrolava algum “trabalho” para eles. A Don’Aninha, a mãe de Santo do terreiro da Cruz, amiga de todos os negros e todos os pobres da Bahia. O João de Adão era “um estivador negro e fortíssimo, antigo grevista, temido e amado em toda a estiva”. Raimundo, Loiro, Pai de Pedro Bala, morreu em uma greve no passado, servindo em vários momentos de digressão sobre a greve como festa do povo. E o Padre José Pedro que através de certo esforço conseguiu se fazer amigo e ganhar a confiança dos Capitães da Areia.

Muitas tramas e histórias profundamente interessantes ao longo do livro, destaco duas que exemplificam de maneira profunda a vida deses meninos/homens. Uma delas destacando a dimensão de menino presente em cada um deles, em outra a dimensão homem, por assim dizer.

Sobre o grande Carrossel “- É uma beleza - disse Pedro Bala olhando o velho carrossel armado. E João Grande abria os olhos para ver melhor. Penduradas estavam as lâmpadas azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas [...] É velho e desbotado o carrossel de Nhozinho França. Mas tem a sua beleza. Talvez esteja nas lâmpadas, ou na música da pianola (velhas valsas de perdido tempo), ou talvez nos ginetes de pau. Entre eles tem um pato que é para sentar dentro os mais pequenos. Tem a sua beleza, sim, porque a opinião unânime dos Capitães da Areia é que ele é maravilhoso. Que importa que seja velho, roto e de cores apagadas se agrada às crianças? Foi uma surpresa quase incrível quando naquela noite o Sem-Pernas chegou ao trapiche dizendo que ele e Volta Seca iam trabalhar uns dias num carrossel”. Combinaram que um dia, depois de fechar, todos do grupo poderiam brincar no carrossel “Pela madrugada os Capitães da Areia vieram. O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que temidos na cidade como ladrões. Esqueceram as palavras da velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. As estrelas brilhavam, brilhava a lua cheia. Mas, mais que tudo, brilhavam noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas Grande Carrossel Japonês.

Na contramão da história sobre o Carrossel há um momento do livro dedicado perturbadoramente ao que parece bem natural para aqueles meninos a “derrubada de uma negrinha no areal”, onde Pedro Bala protagoniza uma angustiante perseguição e posterior estupro de uma jovem menina. É um dos poucos momentos onde a imagem de Bala como grande herói salvador se desfaz, inclusive em sua agonia posterior, “tinha vontade de se jogar no mar para se lavar de toda aquela inquietação [...] o ódio que sentia contra a cidade rica que se estendia do outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na Graça, o desespero da sua vida de criança abandonada e perseguida, a pena que sentia pela pobre negrinha, uma criança também”.

Leon Trotsky em Literatura e Revolução diz que há uma interação dialética entre forma e conteúdo, não podendo haver forma revolucionária sem conteúdo revolucionário, e da mesma forma o inverso, já 1924 alertava para os riscos da burocratização das artes, como veio a acontecer após o Congresso de Kharkov, que propunha que o Partido Comunista Soviético deveria aderir a um único tipo de literatura o “Realismo Socialista”, essa posição se tornou oficial a partir de 1934, e se espalhou pelos Partidos Comunistas mundo afora. Sobre Literatura e Revolução de Totsky, vale pena conferir a matéria que fiz sobre o minicurso promovido pelo Esquerda Diário em Campina Grande.

Jorge Amado é o grande exemplo e referência do Realismo Socialista no Brasil. Ele e Graciliano Ramos peletizaram muito em relação ao modo de fazer literatura. Sobre Graciliano vale a pena conferir o texto: “As Vidas Secas de um povo oprimido” publicado aqui no Esquerda Diário, afim de perceber a diferença entre o profundo Realismo, quase cru, de Graciliano, e o Realismo Socialista de Amado.

Capitães de Areia em diversos momentos da leitura apresenta os claros problemas desse tipo de literatura, incorrendo nas falhas comuns a ela, ainda que de maneira mais suave que outras obras do autor, a exemplo de “O Cavaleiro da Esperança” e “Os Subterrâneos da Liberdade”. Encontramos um herói infalível – Pedro Bala – e reflexões que parecem que foram incluídas para atender a alguma demanda burocrática de divulgação do partido, espalhadas sutilmente ao longo da obra, e nitidamente colocada na última parte “Canção da Bahia – Canção da Liberdade”, como no trecho destacado a seguir. Ainda assim, mesmo diante dos problemas, Capitães de Areia é um lindo livro, com conteúdo de profunda relevância e atualidade.

A voz o chama [Pedro Bala]. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes onde vão os condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros. Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira, que vem dos golpes que o Querido-de-Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da Areia. Uma voz que vem das filhas-de-santo do candomblé de Don’Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do trapiche dos Capitães da Areia. Que vem do reformatório e do orfanato. Que vem do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar. Que vem no trem da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura. Que vem dos quadros de Professor, onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus violões, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade, de amizade: companheiros. Uma voz que convida para a festa da luta. Que é como um samba alegre de negro, como ressoar dos atabaques nas macumbas. Voz que vem da lembrança de Dora, valente lutadora. Voz que chama Pedro Bala. Como a voz de Deus chamava Pirulito, a voz do ódio o Sem-Pernas, como a voz dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampião. Voz poderosa como nenhuma outra. Porque é uma voz que chama para lutar por todos, pelo destino de todos, sem exceção. Voz poderosa como nenhuma outra. Voz que atravessa a cidade e vem de todos os lados. Voz que traz com ela uma festa, que faz o inverno acabar lá fora e ser a rimavera. A primavera da luta. Voz que chama Pedro Bala, que o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem maior do mundo, bem que é igual ao sol, mesmo maior que o sol: a liberdade. A cidade no dia de primavera é deslumbradoramente bela. Uma voz de mulher canta a canção da Bahia. Canção da beleza da Bahia. Cidade negra e velha, sinos de igreja, ruas calçadas de pedra. Canção da Bahia que uma mulher canta. Dentro de Pedro Bala uma voz o chama: voz que traz para a canção da Bahia, a canção da liberdade. Voz poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da Bahia, voz da liberdade. A revolução chama Pedro Bala”.

Sinceramente não é muito crível, nem encaixa de maneira harmônica na história dos Capitães de Areia, meninos abandonados, pobres, que roubam para viver, e vivem a sua maneira a liberdade, se tornarem uma brigada de choque de intervenção em comícios, em greves, em lutas operárias, de maneira quase automática com a luta mudando seus destinos.

Mesmo diante dos eventuais problemas é um livro que merece ser lido, especialmente para reflexão da juventude!




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