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REALISMO SOCIALISTA | O realismo socialista revisitado – parte V (a “mitomaquia”)

sábado 27 de junho de 2015 | 13:02

A obra de três artistas do decênio de 1930 pode fundamentar a hipótese do surgimento de uma linguagem visual crítica durante o regime bonapartista soviético. Tanto Aleksandr Rodchenko, quanto Aleksandr Deineka e Sergei Eisenstein foram integrantes do grupo Outubro que, segundo o professor da Universidade de Lausanne François Albera, fora a “última associação pluridisciplinar e internacional de artistas e teóricos”[2].

Tal associação, fundada em 1928, proclamava, em seu manifesto de 1929, que “todos os modos de expressão artística devem ter seu lugar no seio da revolução cultural socialista”[3], procurando superar, portanto, o impasse entre a Frente de Esquerda das Artes (LEF) e a AKhRR sobre a perda de sentido histórico da “arte de cavalete” e de seus procedimentos artesanais (ver segundo artigo desta série). Apesar desta mediação, o grupo tinha como ideário a plataforma produtivista e mantinha-se fiel à perspectiva permanentista sobre o processo revolucionário, enfatizando a necessidade da reestruturação do modo de vida e do combate ao nacionalismo, por exemplo, que era uma peça chave do discurso oficial.

Após 1932, quando o grupo Outubro já não mais existia, os três artistas referidos continuaram a produzir artisticamente e tiveram, inclusive, o apoio estatal para isso. A posição em que se encontraram parece, portanto, ambígua. Seriam também ambíguas as obras? Seriam elas a reprodução do discurso oficial stalinista sobre os resultados da modernização e do estabelecimento do socialismo? Seriam explicitamente críticas, satíricas? Qual a natureza da linguagem visual instituída pelo bonapartismo soviético?

Aleksandr Rodchenko e a crítica do trabalho

No último ano do Primeiro Plano Quinquenal, em 1933, Rodchenko registrou a construção do Canal do Mar Branco. Tal construção foi gerida pela GPU, a polícia política do regime, e utilizou o trabalho forçado de prisioneiros, os quais foram objeto da propaganda stalinista sobre a reabilitação dos trabalhadores “não-produtivos” [4]

Rodchenko publicou seu ensaio sobre a construção do canal na revista “URSS em construção”, dentre outras revistas. Ele permaneceu por, ao menos, três meses na construção e produziu mais de dois mil negativos. O fotógrafo construiu uma narrativa sobre o projeto de modernização centrada no trabalho e na suposta importância da aquisição de uma nova rota hídrica para a URSS [5]. O ensaio terminava com retratos da vistoria das lideranças bolcheviques.

Rodchenko utilizara no ensaio procedimentos de fotomontagem, com os quais trabalhara desde o início do decênio de 1920 e cuja atualidade como arma crítica fora enfatizada no manifesto da Seção Foto, de 1931, do grupo Outubro [6]. Tal suporte aparentava ser contrário à restituição da “arte de cavalete”, posta em prática pelos artistas associados ao regime bonapartista e pelas lideranças políticas dele.

Aleksandr Rodchenko. “O ataque na terra foi feito com espadas e explosivos, ferro e fogo!”. Ensaio da construção do Canal do Mar Branco. URSS em construção (1933).

Nenhuma das fotomontagens de Rodchenko criticava explicitamente o trabalho escravo. Mas ele tampouco heroicizava o trabalho dos prisioneiros e a “reabilitação” deles. Nenhum trabalhador era maximizado e transformado em alegoria. Nenhum deles sorria ou apresentava um vigor físico. A presença das armas nas mãos dos inspetores era constante nas fotografias que compunham o ensaio.

Estaria Rodchenko, desta maneira, pondo em xeque o projeto da “URSS em construção” de persuasão do público quanto ao triunfo do socialismo na URSS (consultar segundo artigo da série)? Estaria ele recolocando o debate sobre a reestruturação do modo de vida, que fora uma das bandeiras principais da LEF, em pleno contexto bonapartista?

Aleksandr Deineka e a corporalidade comunista

A obra de Aleksandr Deineka referente ao decênio de 1930 foi centrada na representação, em pinturas a óleo, de cenas de esporte, de marinhas e do cotidiano dos kolkhozes e dos soldados do Exército Vermelho. O pintor rejeitou, desde os primórdios do seu trabalho, o uso dos materiais industriais tal como defendeu o movimento construtivista [7].

Tais pinturas parecem ter um tom triunfalista e exaltar o desenvolvimento econômico do país e, principalmente, propagandear o modo de vida soviético, supostamente coletivista e fraterno. Talvez seja possível, no entanto, analisar as obras de Deineka como a construção de um discurso profundamente irônico em relação ao discurso oficial da heroicização da revolução.

Aleksandr Deineka. “A conversa da brigada da fazenda coletiva”, 1934, óleo sobre tela, 128x176 cm

No quadro “A conversa da brigada da fazenda coletiva” (1934), realizado como um esboço para o mural do Comissariado Nacional da Agricultura, a ironia parece explícita. Em primeiro lugar, porque não existe a representação de uma conversa: todas as personagens do quadro observam, em silêncio, uma carta – seria ela uma diretriz partidária? Nenhum dos olhares se cruza e ninguém parece, tampouco, mover-se: todas as personagens estão extáticas e algumas delas sorriem diante do papel. Toda a obra foi construída tendo como eixo central a figura da personagem mais velha, que traja as vestes mais escuras e parece preocupada. Celebração do espírito coletivo dos kolkhozes ou afirmação da onipresença da burocracia e da repressão política?

A ênfase na representação da corporalidade está presente em outras obras de Deineka do período, como “O jogo de bola” (1932) e “Pausa para o almoço em Donbass” (1935). Se tais obras, por um lado, parecem celebrar o vigor dos corpos soviéticos, por outro lado, nenhuma delas os retratam como corpos de proletários radicalmente empenhados na construção do socialismo. As personagens dos quadros estão em momentos recreativos, longe de qualquer referência ao mundo do trabalho ou de signos de classe (como vestimentas), bem como da concepção de socialismo stalinista, vinculada ao incremento das forças produtivas.

Eisenstein e os processos de Moscou nas artes

Em 1935, o cineasta Sergei Eisenstein iniciou as filmagens de “O prado de Beijing”, filme que narraria a história do mártir Pavlik Morózov, uma criança de 13 anos que denunciara, em 1932, seu pai (supostamente um kulac) para a GPU. Morózov foi assassinado pela família após a realização da denúncia, e transformou-se em um símbolo da ética socialista para o regime stalinista.

Sergei Eisenstein. Fotogramas de “O prado de Beijing” (1937).

O filme de Eisenstein, no entanto, foi vetado pelo governo em 1937, sob a acusação de falhas históricas e políticas, e nunca foi finalizado. Diversos participantes do processo de filmagem foram presos e Eisenstein teve de retratar-se publicamente frente ao “fracasso da obra”. A severa repressão que o Estado soviético aplicou a Eisenstein e aos demais artistas participantes do filme inscreveu-se no quadro histórico dos Processos de Moscou, que visaram eliminar os antigos líderes bolcheviques que oferecessem alguma ameaça ao bonapartismo chefiado por Stálin [8]. O historiador Eric Schmulevitch explicitou tal processo de repressão ao afirmar que o caso do “Prado de Beijing” foi um “processo de Moscou no cinema” [9].

Quais as “falhas históricas e políticas” do filme, no entanto? Poderia a história de um suposto mártir nacional, nas mãos de Eisenstein, transformar-se em uma ameaça à burocracia partidária?

Conforme o roteiro do filme, Pavlik Morózov possuía motivações distintas para a realização da denúncia de seu pai. Ao contrário da mitologia construída pelo stalinismo, a personagem não delatava o seu pai por conta de um justo senso ético, que privilegiaria o socialismo e a construção nacional em detrimento dos laços familiares. Não: em “O Prado de Beijing”, Eisenstein atribuía a delação à raiva do menino com os frequentes casos extra-conjugais do pai. O garoto vingara-se do progenitor, então, para proteger a própria mãe. Estaria em xeque, assim, a ética socialista do stalinismo, supostamente abnegada, em favor do progresso histórico? Residiria por debaixo desta ética o favoritismo pessoal dos militantes partidários? Seria o filme de Eisenstein uma análise crítica da ideologia stalinista? Posto que o herói nacional, Pavlik Morózov, não passaria de uma criança que atuara em prol da mãe – e não da razão histórica – não estariam também os demais mitos do regime passíveis de serem desarticulados e irem terra abaixo?

Nesta hipótese, nas “falhas históricas” atribuídas por Stálin ao filme de Eisenstein encontrar-se-iam a verdade histórica do stalinismo. Nestas falhas, a posição contundente de um cineasta mitômano, que, tal como um cínico grego, lançara-se contra a mitologia em favor da dissecação crítica da cultura.

A hipótese levantada neste artigo, o último desta série sobre o realismo socialista, é elaborada aqui de modo bastante sumário. Seria preciso ainda uma pesquisa de fôlego para reconstruir esta possível crítica artística formulada durante os anos de 1930 em meio à repressão stalinista. O que tal hipótese revela, no entanto – inclusive por sua insuficiência; é a necessidade de uma retomada dos estudos históricos sobre a arte moderna e sobre o combate a ela durante o bonapartismo soviético. Num momento histórico em que, ironicamente, diversas tendências do trotskismo atuam revitalizando a estética contemplativa stalinista faz-se urgente uma tomada de posição vanguardista no terreno estético. A arte moderna de extrema-esquerda, consubstanciada principalmente no dadaísmo alemão e no construtivismo russo, desferiu ataques implacáveis aos procedimentos de heroicização e à fetichização da produção artística, posicionando-se pela abordagem materialista sobre ela.

Revisitar o realismo socialista, portanto, não deixa de ser uma forma de recuperar tais nexos históricos e de atualizar as possibilidades artísticas frente ao cenário do capitalismo avançado e da hipermodernidade.

Leia a parte IV aqui.

[1] A noção da positividade do poder foi extraída de FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
[2] ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo. Trad. Heloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 186.
[3] Apud idem, p. 190.
[4] Ver WOLF, Erika. “The visual economy of forced labor: Aleksandr Rodchenko and the White sea-Baltic canal”. In: KIVELSON, Valerie (org.). Picturing Russia: explorations in Visual Culture. New Haven: Yale University Press, 2008, p. 168-174. Todas as informações sobre o ensaio de Rodchenko presentes neste artigo foram extraídas do texto referido.
[5] O novo canal visava ligar o Mar Branco com o Mar Báltico, construindo, assim, uma via estratégica entre Leningrado e o Mar Branco.
[6]Ver ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo..., op cit.
[7] KIAER, Christina. “Was socialism realism forced labour? The case of Aleksandr Deineka in the 1930s”. In: Oxford art journal 28. Oxford University Press, 2005, p. 321-345.
[8]Para o detalhamento dos Processos de Moscou, ver BROUÉ, Pierre. Los processos de Moscú, op cit.
[9]SCHMULEVITCH, Eric. Un procès de Moscou au cinéma : Le pré de Béjine d’Eisenstein. Paris: L’Harmattan, 2008.


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