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ARTE SOVIÉTICA | O realismo socialista revisitado – parte II (a construção da mitologia stalinista)

Afirma-se, no último artigo, que a promulgação do realismo socialista como estética oficial permitiu ao Estado soviético formular um discurso positivo sobre o processo bonapartista. Quais as coordenadas deste discurso? De onde os líderes soviéticos e os artistas associados a eles extraíram os seus motivos?

sexta-feira 15 de maio de 2015 | 00:01

a apologia das forças produtivas
Em 1930, durante o desmanche das correntes artísticas, o escritor Maxim Gorki (1868-1936) fundou a revista “URSS em construção”, a qual deveria representar fotograficamente o desenvolvimento do Primeiro Plano Quinquenal. Segundo Gorki, a “URSS em construção” seria o correlato visual do periódico “Nossas conquistas”, que relatava os processos da industrialização e da eliminação dos kulacs (1) . Conforme o editorial do primeiro número da “URSS em construção”, traduzida do russo para o espanhol, francês, inglês e alemão, o uso da fotografia permitiria uma compreensão mais fácil e persuasiva da construção do socialismo na URSS (2).

Qual era, no entanto, a “construção do socialismo” da qual a revista procurava persuadir os leitores? O socialismo, no caso, era identificado como o avanço das forças produtivas ou, em suma, com o processo de modernização acelerada. A maior parte dos ensaios fotográficos relatava a industrialização, a mecanização do campo, as fazendas coletivas, as construções de canal etc.

Esboçava-se, aparentemente, um projeto de apologia da economia soviética. A suposta ausência, na maioria destes ensaios, de uma reflexão crítica que abarcasse as relações de trabalho e o modo de vida do proletariado soviético talvez os enquadre no procedimento que Boris Arvatov (1896-1940), teórico do produtivismo (3) e apoiador de primeira hora da Revolução de Outubro, denominara como “fetichismo do fato”; ou seja, como a celebração acrítica da economia.

Alguns artistas que foram ligados à Frente de Esquerda das Artes (LEF) – dirigida pelo célebre poeta Vladimir Maiakóvski – como Aleksandr Rodchenko (1891-1956) e sua esposa, Varvara Stepanova (1894-1958), produziram ensaios fotográficos para tal revista. Tais ensaios diferiam substancialmente desta apologia acrítica, ao que parece, o que revelava, por sua vez, as tensões e disputas inerentes aos projetos de representação da modernização (4).

A celebração do trabalho
A campanha pela eliminação dos kulacs trazia, como fenômeno conjugado, a elaboração de um discurso de positivação do trabalhador fabril, ou em termos gerais, da força de trabalho urbana. A heroicização do operariado e de seus líderes, que já constava no programa estético da AKhRR de 1922 (5), ganhava um novo fôlego com o projeto de modernização acelerada.

Inclusive membros da LEF, como o célebre cineasta Dziga Vertov (1896-1954), parecem ter contribuído para tais formulações sobre o trabalhador soviético. Vertov, por exemplo, em seu filme “O décimo primeiro ano”, de 1928, formulou uma alegoria para realizar a apologia da força de trabalho. Nela, o trabalhador era subsumido à sua atividade laboral e sua figura era maximizada. Tal operação diferia muito da abordagem realizada pelo cineasta em seu filme anterior, “A sexta parte do mundo”, de 1926, que problematizava o modo de vida dos operários e vinculava as possibilidades de avanço da revolução à reestruturação das relações sociais.

Dziga Vertov. Fotogramas de “O décimo primeiro ano” (1928).

O imperativo do aumento da produtividade industrial multiplicou os dispositivos de heroicização da força de trabalho, bem como dos dispositivos repressivos. Em 1935, durante o Segundo Plano Quinquenal, o Estado soviético decretou a fundação do movimento stakhanovista, que visava propagandear um tipo ideal de trabalhador, radicalmente comprometido com o incremento da produtividade. Segundo o oposicionista de esquerda Leon Trotsky, "O início do movimento foi marcado por maciças medidas repressivas contra o pessoal técnico, engenheiros e operários acusados de resistência e sabotagem e, em certos casos, de assassínio de stakhanovistas. A severidade destas medidas atestava a força da resistência".(6)

Realismo e fetiche

A publicação, em 1933, de uma coletânea de textos de Marx e Engels sobre arte e cultura parece ter contribuído decisivamente para a elaboração do discurso oficial. Tratava-se da primeira compilação já realizada sobre o tema, cuja organização fora feita pelos filósofos húngaros Gyorgy Lukács (1885-1971) e Mikhail Lifschitz (1905-1983), no Instituto Marx-Engels-Lênin, dirigido por David Riazanov (1870-1938).

Esta compilação marcava a “canonização” de uma estética “propriamente marxista”, isto é, de uma leitura bastante particular deste conjunto de fragmentos de Marx e Engels patrocinada pelo governo soviético (7). A estrutura da compilação não era cronológica, mas agrupada de modo temático (temos, assim, como alguns dos temas, “Concepção materialista da história da cultura”, “A arte na sociedade de classes”, “O partido da classe operária e o ethos pequeno-burguês dos literatos”, etc)(8). O primeiro tema da coletânea, “Problemas gerais da criação artística”, apresentava como primeiro subtema o assunto “Ideologia e realismo”, a partir do qual se podia deduzir, como efetivamente aconteceu, uma suposta concepção genuinamente marxista sobre o realismo nas artes.

Tal concepção partia da defesa, realizada por Engels, de uma literatura que explorasse as nuances psíquicas das personagens e as contradições do quadro histórico no qual se desenvolviam e motivavam as ações da obra. Conforme Engels, numa carta escrita à escritora Margaret Harkness (1854-1923), de 1888,
"Quanto mais dissimulados os pontos de vista do autor, melhor será para a obra artística. O realismo a que me refiro se manifesta, inclusive, independentemente dos pontos de vista do autor"(9).

Engels criticara, na carta, a suposta caricatura realizada por Harkness da classe operária no romance A city girl (1887), apresentando-a como uma “massa passiva” e uniforme. Segundo Engels, a postura da escritora era pouco realista, considerando-se o realismo como a representação de “caracteres típicos em circunstâncias igualmente típicas” (10).
A definição de realismo, realizada por Engels no século XIX, era, assim, descontextualizada e trazida à tona na URSS de 1930. O escritor A. I. Stetsky retomava tal definição para defender as representações literárias da classe trabalhadora russa feitas durante a primeira metade do decênio de 1930. Em seu discurso ao plenário do Congresso de 1934, que instituiu o realismo socialista, ele afirmou:

"Nós todos conhecemos o princípio, formulado por Engels, de que o artista deve representar caracteres típicos em circunstâncias igualmente típicas. E se nós tomarmos como exemplo os representantes dos trabalhadores, dos camponeses das fazendas coletivas e dos membros do Exército Vermelho que estiveram conosco nesta tribuna, veremos que ninguém carrega tão notavelmente a verdade deste princípio como eles o fazem. Isso porque essas pessoas foram criadas na titânica luta de classes que tem sido travada em nosso país estes anos" (11).

A intervenção de Stetsky, assim como a de diversos outros escritores e militantes comunistas, foi editada e publicada na URSS em 1935 (12). Difundia-se, assim, um conceito específico sobre o “realismo” nas artes, bastante distinto do conceito elaborado pelos teóricos produtivistas como Boris Arvatov e Nikolay Tarabukin (1889-1930) durante o decênio de 1920. Nikolay Tarabukin, por exemplo, escreveu, em “Do Cavalete à Máquina” (1923):

"O artista constitui nas formas de sua arte sua própria realidade e concebe o realismo como consciência do objeto, autônomo quanto à sua forma e quanto ao seu conteúdo"(13).

Assim, o realismo não era definido por Tarabukin como uma atividade representativa, mas como uma atividade constituinte do processo de trabalho do artista: a consciência do objeto como tal, bem como de seu processo de produção, seria a expressão do realismo; ao invés do idealismo de uma representação capaz de abarcar a totalidade, conforme os escritos de Lukács. É bastante sintomático, inclusive, que Tarabukin tenha em mente a obra de Cézanne ao realizar tal definição, enquanto Lukács tenha, posteriormente, condenado esta mesma obra como uma expressão da decadência burguesa.
Os teóricos do realismo stalinista, assim, não questionavam os esquemas estruturais de produção e circulação das obras como fundamentalmente fetichistas e individualizados, conforme questionara o movimento construtivista/produtivista anos antes; eles detinham-se, pelo contrário, na análise semântica dos textos. A realpolitik stalinista, deste modo, repunha em todos os âmbitos da sociedade soviética o fetichismo como forma de socialização primária.

(1) Ver KAWAMURA, Aya. “La création collective dans le documentaire soviétique : photographie, cinéma et ‘correspondants-ouvriers`”. Trad. François Albera. In: Revue d’histoire du cinema no. 63. França: Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, 2011.

(2) Ver Idem, p. 15.

(3) O produtivismo russo foi uma radicalização marxista do movimento artístico construtivista, ocorrida aproximadamente em 1923. Os produtivistas enfatizaram, e procuraram pôr em prática, a necessidade da produção artística estar vinculada à produção industrial – abandonando seus esquemas de produção e circulação tradicionais, como o quadro e o museu, em prol da criação de objetos do uso cotidiano que pudessem reestruturar a cultura soviética e desenvolver uma consciência crítica nos operários.

(4) Tal aspecto será tratado em artigo posterior.

(5) O pintor Pavel Radimov (1887-1967), nomeado presidente da AKhRR, em 1922 declarou que: “(...) os artistas, em nossa sociedade, devem representar com exatidão na pintura e na escultura os acontecimentos da Revolução, devem retratar os líderes e ilustrar o papel do Povo, dos trabalhadores simples, dos operários e camponeses”. Apud LODDER, Christina, El constructivismo…, op. cit, p. 184. Grifos meus. Para a AKhRR, consultar o primeiro artigo desta série.

(6) TROTSKY, Leon. A revolução traída, op cit, p. 102.

(7) Ver STRADA, Vittorio. Da ‘revolução cultural’ ao ‘realismo socialista’. In: HOBSBAWM, E. História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Vol. 9, p. 120.

(8) Baseio-me, para a análise da coletânea de Marx e Engels, na edição “Cultura, arte e literatura”, da editora Expressão Popular, que se apresenta como fiel à estrutura originalmente concebida e editada por Lukács e Lifschtz.

(9) Cf. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Cultura, arte e literatura. Trad. José Paulo Neto e Miguel Makoto. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
ENGELS, Friedrich. F. Engels a Margaret Harkness. In: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Cultura, arte e literatura, op cit, p.68.

(10) Idem, p. 67.

(11) Cf. STETSKY, A. I. Under the flag of the Soviets, Under the Flag of Socialism. Disponível em https://www.marxists.org/subject/art/lit_crit/sovietwritercongress/. 15/04/2015.

(12) Ver SCOTT, H. G. (org.). Problems of Soviet Literature: reports and speeches at the first Soviet Writers’ Congress.Londres, Martin Lawrence, 1980.

(13) TARABUKIN, Nikolay. El ultimo quadro: del caballete a la maquina. Trad. Andrei B. Nakov. Barcelona: G. Gili, 1977, p. 40.


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