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SEMANÁRIO

O que os erros do ENEM revelam sobre o absurdo processo de exclusão ao Ensino Superior?

Danilo Paris

Mauro Sala

O que os erros do ENEM revelam sobre o absurdo processo de exclusão ao Ensino Superior?

Danilo Paris

Mauro Sala

A atual crise do ENEM é reveladora de um sistema de acesso ao Ensino Superior extremamente excludente, o qual agora vem apresentando contornos de fraude.

Recentemente, o STJ, sem muita justificativa, autorizou o MEC a liberar os resultados do SISU, depois de um espetáculo de horrores protagonizado pelo ministro da educação, Abraham Weintraub, e os representantes do INEP. Erros nos gabaritos e na contagem da pontuação dos concorrentes foram então assumidos pelos responsáveis das provas. Durante alguns dias, milhões de alunos ficaram sem saber se entraram na tão sonhada universidade pública. Para alguns, a situação foi ainda mais dramática. Ao menos 171 mil pessoas se sentiram lesadas pelos erros de pontuação, relataram os problemas e até agora não tiveram nenhuma resposta oficial aos seus questionamentos. Funcionários do MEC já relatam que mesmo com os gabaritos revistos, o sistema de pontuação da prova não foi alterado porque demandaria muito tempo.

Rodrigo Maia, e grandes veículos de imprensa, que recorrentemente são agentes e árduos defensores do desmonte da educação pública, demagogicamente começaram a pedir a cabeça do ministro, iniciando um cabo de guerra no qual Bolsonaro se recusa a ceder.

A questão é que a crise aberta pelos erros do ENEM, que inclui debater o que seria justo e o que seria injusto entre os concorrentes, movimentou um terreno até então pouco debatido, inclusive nos círculos de esquerda, sobre o apartheid representado nas provas de seleção para a universidade pública: o popularmente conhecido vestibular.

Somente em 2020, mais de 1,8 milhão de pessoas se inscreveram no SISU para concorrer a 237.128 vagas. Apenas entre os inscritos (sem considerar quem prestou o ENEM e não se inscreveu no SISU), aproximadamente 90% receberão a notícia de que o Ensino Superior público lhe foi negado. Desses, uma ínfima minoria tentará a sorte novamente no próximo ano, e a ampla maioria se juntará aos que sequer prestarão a prova, ocupando as vagas de trabalho precário, as filas do desemprego, ou, no melhor dos casos, cursando uma instituição de ensino privada que irá consumir a maior parte do seu salário.

O que poucos sabem é que hoje o Brasil possui capacidade para comportar todas essas pessoas no Ensino Superior, com vagas que foram criadas com uma enxurrada de dinheiro público. No entanto, isso não ocorre em função do interesse de alguns monopólios que, se somados nos dedos, não completam nem uma mão.

Quatro grandes empresas concentram a maioria das vagas no Ensino Superior

Você já ouviu falar da Kroton, Estácio, Unip e Laureate? Somente esses três grandes monopólios do ensino privado conseguiriam comportar todos os inscritos para o SISU.

Esses 4 monopólios são detentores de 1.972.610 matrículas ou quase 32,5% do total de matrículas do Ensino Superior privado em 2016 em todo o país. Das 2.537 instituições de Ensino Superior no país, 2.238 são privadas. Em termos de matrículas, isso significa que, das 8,45 milhões de matrículas no Ensino Superior, 6,37 milhões são em instituições privadas.

Contudo, embora sejam empresas privadas, elas abocanham grandes volumes de recursos públicos. Considerando apenas os dois maiores programas de transferência de recursos públicos para essas instituições, o Prouni e o Fies, vemos cifras bilionárias.

Somente em 2016, o Prouni concedeu R$ 1,27 bilhões em isenções fiscais para as IES privadas, e o FIES consumiu R$ 18,7 bilhões do orçamento público. Isso significou que, também em 2016, mais de 1,75 milhões de matrículas nas IES privadas utilizavam algum desses programas.

Entre 2003 e 2014, o volume de recursos aportados pelo Prouni e Fies cresceram num ritmo superior ao total de gastos com educação realizado pelo governo federal, fazendo com que a participação desses programas no orçamento do MEC saltassem de 3,42% para 12,32% nesse período.

Além de consumir uma fatia crescente do orçamento estatal, essas duas políticas, impulsionadas pelos.governos petistas, impulsionaram a formação dos grandes monopólios do ensino no país. O balanço financeiro da Kroton nos mostra que a participação do FIES foi, nesse período, responsável por mais da metade de suas matrículas presenciais e mais de 25% das matrículas totais (presencial + à distância), e o Prouni lhe dá anualmente isenções milionárias, chegando a quase R$ 885 milhões em 2015. O FIES foi responsável direto pelo aumento do lucro dessas empresas, já que a mensalidade cobrada dos aderentes ao financiamento estudantil é superior à cobrada dos estudantes diretamente pagantes.

Vale ressaltar que se em um momento ascendente desses programas foi utilizado uma grande injeção de recursos públicos, hoje a realidade é que esses programas também sofreram cortes. No entanto, aqueles que são penalizados por isso são os próprios estudantes, com o governo acionando na justiça os débitos do FIES e trancando matrículas como forma de ajuste fiscal.

Esses grandes monopólios se formaram com recursos públicos, e, portanto, suas vagas deveriam ser públicas. Todos os estudantes inadimplentes, deveriam, no mínimo ter suas dívidas perdoadas, já que elas também foram subsidiadas com recursos públicos. A estatização desses grandes monopólios, passando ao controle de que estudantes e trabalhadores do ensino, é uma necessidade urgente, para estancar a drenagem dos recursos públicos e começar a dar uma resposta imediata à crise do Ensino Superior, como aqui se escancarou com a crise do ENEM.

A segregação do vestibular é muito lucrativa

Para que esses monopólios existam e continuem tendo sua fatia de mercado, os vestibulares (incluindo o ENEM e o SISU), são ferramentas fundamentalmente de exclusão, que deixam como única opção o ensino privado.

Para se ter uma ideia do absurdo dessa segregação, em 2018 o INEP divulgou que ingressaram 3,44 milhões de jovens e adultos no ensino superior, sendo que 2,84 milhões foram em instituições privadas. Nesse mesmo ano, havia cerca de 2,23 milhões de estudantes nos terceiros e quartos anos do Ensino Médio, ou seja, aptos a se formarem, dos quais quase dois milhões eram de instituições públicas. Só por esses números vemos que há um saldo de mais de um milhão e duzentas mil ingressos no Ensino Superior em relação aos potenciais formados no Ensino Médio. As vagas existem, mas a grande maioria delas está sob controle de grandes grupos financeiros, vários deles internacionais.

No quadro da naturalização da estratificação social capitalista e da introjetada lógica meritocrática, a luta pelo fim do vestibular parece tomar ares de uma política utópica. Nada mais longe da verdade. É estarrecedor a opinião da UNE, vociferada pelo seu presidente no Twitter, que defende a manutenção do ENEM e do SISU, sem questionar a função essencialmente excludente que esses mecanismos apresentam.

Basta um olhar para os países da América Latina para ver que o vestibular não é um mecanismo natural da sociedade humana, como parte da esquerda parece acreditar.

Países do capitalismo periférico, como a Argentina, não possuem vestibular. Ainda que tenham seus problemas educacionais específicos, como a precarização ocorrida em função da massificação do acesso, esse mecanismo excludente não é uma realidade.

Atravessando a cordilheira, encontramos um dos sistemas mais restritos e privatizados do cone Sul. O Chile, até então adorado por Paulo Guedes, após a ebulição social que questionou o modelo de sociedade herdeiro do Pinochet, está com várias escolas ocupadas e bloqueadas por estudantes para evitar a aplicação da Prova de Seleção Universitária (PSU), equivalente ao vestibular chileno, em uma luta para garantir ingresso irrestrito às universidades.

Um negócio bilionário e lucrativo ao imperialismo

Como dissemos, o vestibular é uma condição necessária para a expansão do mercado privado. Sem exclusão, não há como haver privatização.

Esse grande nicho de mercado é ocupado por gigantes que não possuem negócios apenas nas áreas de educação. Seus acionistas são os mesmos que engordam seus lucros com a fraudulenta, ilegítima e ilegal dívida pública brasileira.

Uma empresa como a Kroton, maior empresa de Ensino Superior do mundo, com um capital estimado de mais de R$ 20 bilhões, tem forte participação de capital imperialista entre seus principais acionistas. Uma pesquisa no BM&F Bovespa nos mostra a composição de seu capital, e entre seus principais acionistas se encontram gigantes norte americanas, como a JP Morgan. Essa mesma instituição financeira, faz parte do seleto grupo de 12 instituições que detêm o monopólio para negociar os títulos da dívida pública brasileira. Coincidência? Acreditamos que não.

A verdade é que a dívida pública todos os anos consome um volume maior que o total de gastos com a educação no país.

Em 2015, o total de gastos públicos com a educação no Brasil representou cerca de 6,2% do PIB. No caso específico do Ensino Superior, o investimento público total é de cerca de 1,3% do PIB.

Se contarmos apenas os investimentos públicos diretos, ou seja, descontando os valores despendidos pelos entes federados com aposentadorias e pensões, investimentos com bolsas de estudo, financiamento estudantil e despesas com juros, amortizações e encargos da dívida da área educacional, temos que o país investe 5,1% do PIB em educação e 0,9% no Ensino Superior. Por outro lado, os serviços da dívida têm um custo médio de 8,6% do PIB todos os anos.

O interesse de milhões deve se sobrepor a um punhado de capitalistas

Em resumo, estatizando imediatamente apenas os quatro maiores monopólios, sem qualquer indenização (afinal, essas empresas cresceram às custas do financiamento público), todos os inscritos no SISU teriam suas vagas garantidas no Ensino Superior sem pagar. Isso significaria aumentar em quase nove vezes a quantidade de vagas, atacando o vestibular e seu conteúdo excludente. Para conseguir manter essas vagas abertas, mantendo a qualidade, seria necessário que o dinheiro destinado para abater os custos da dívida pública fossem investidos na educação pública, além de revogar a devastadora emenda constitucional que congela o aumento do investimento em saúde e educação, entre outros mecanismos que garantem os interesses do capital financeiro.

É evidente que essa luta não ocorre da noite para o dia. Ela irá se enfrentar com interesses de poderosos, que incluiu o imperialismo mais forte do mundo, dos EUA. No entanto, deveria ser óbvio que o interesse de milhões deve se sobrepor a um punhado de capitalistas.

A luta pela massificação do acesso vem cada vez mais se mostrando como vital. A direita e a extrema direita utilizam recorrentemente, de forma demagógica o argumento de que a universidade pública é para uma restrita camada de privilegiados para defender sua privatização. Se a grande massa da população trabalhadora não enxergar a educação superior pública como um direito ao qual ela deveria ter acesso, esses reacionários continuarão com sua sanha privatista sobre o ensino público.

A luta para que não haja nenhuma injustiça no ENEM contra centenas de milhares é um ponto elementar e básico. Contudo, não podemos perder de vista que isso é muito menos do que o final da ponta do iceberg.


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Danilo Paris

Editor de política nacional e professor de Sociologia

Mauro Sala

Campinas
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