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O que é comunismo para os marxistas?

Miguel Gonçalves

Camila Begiato

O que é comunismo para os marxistas?

Miguel Gonçalves

Camila Begiato

Entre um mundo e uma vida cada vez mais irracionais, com salários menores e menos direitos, que são rifados a qualquer momento, a indignação e o ódio fazem com que novamente seja colocada em discussão a única forma de superar de uma vez por todas o grande espectáculo da exploração capitalista. Um espectro ronda há séculos a civilização humana: o espectro do comunismo.

Entramos e saímos, décadas após décadas, de crises cada vez mais agudas, que reestruturam e precarizam o mundo do trabalho e aprofundam cada vez mais as opressões de gênero e de raça, junto à crescente destruição ambiental. Na sua forma mais recente, a última grande crise capitalista mostra a sua cara mais precária e exploratória - que tem rosto de mulher e pele negra - na terceirização e uberização, e as suas expressões mais radicais em guerras que se reatualizam e abrem novos espaços para crises e revoluções. Entre um mundo e uma vida cada vez mais irracionais, com salários menores e menos direitos, que são rifados a qualquer momento, a indignação e o ódio fazem com que novamente seja colocada em discussão a única forma de superar de uma vez por todas o grande espectáculo da exploração capitalista. Um espectro ronda há séculos a civilização humana: o espectro do comunismo.

Este texto é uma tentativa de dar voz ao burburinho que ainda tímido percorre as multidões e as mentes da juventude que almeja outro futuro, e sobre o qual a burguesia e os grandes capitalistas têm medo de que seja dito em voz alta. Queremos resgatar o que é o comunismo e todos os elementos que, teorizado por Karl Marx e Friedrich Engels, fazem com que ele seja possível - como se mostrou na Revolução Russa de 1917 e como é possível, e necessário, na atualidade, no Brasil e no mundo.

Das classes à luta de classes

“A história de todas sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes [...] uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito” [1]

Marx, Engels e comunistas de diversos países começam assim o Manifesto do Partido Comunista e não à toa: é justamente ela, a luta de classes, o germe que possibilitará a conquista do comunismo pelo proletariado mundial. A própria burguesia enquanto classe surge de um processo doloroso e dialético de luta de classes, que superou o sistema de produção da sociedade feudal e que a substituiu pela manufatura, pela indústria e, por fim, pelo mercado mundial. No seio da sociedade feudal, cumpre até esse momento seu papel revolucionário, de renovação dos instrumentos de produção que potencializa a capacidade mais brilhante de produção humana, mas se constitui enquanto classe a partir desse mesmo processo, como dona dos meios de produção e soberana da política do Estado representativo moderno.

A burguesia cresce e conquista novos mercados, e só o pode fazê-lo ao extrapolar os limites nacionais e invadir com suas empresas todos os países, instalando as mais brutais explorações de mulheres, negros, LGBTQIA+, indígenas e toda a população que só tem uma coisa a vender: a sua força de trabalho. É a burguesia a classe que detém todos os meios materiais que são capazes de produzir e reproduzir a vida social e humana, mas não é ela, entretanto, que garante essa tarefa: a sua existência implica na existência de outra classe, a classe trabalhadora.

Exatamente o oposto da burguesia, que detém aquilo que é incapaz de produzir, a classe trabalhadora é produtora de tudo o que há e existe, mas é oprimida e reprimida para que não possua tudo aquilo que produz. A reprodução do capital que permite os lucros mais exorbitantes para a burguesia só é possível explorando a classe trabalhadora: tudo o que precisam para sobreviver é feito de refém a serem trocados por condições precárias de trabalho, enquanto sigam seu tempo de trabalho não pago com a mais-valia. A classe que vende a sua força de trabalho só o pode fazer nos limites do capital, principalmente em momentos de crises, quando o trabalho é precarizado com salários mais baixos, aumento da jornada de trabalho, flexibilização das leis trabalhistas entre tantos outros mecanismos utilizados para desvalorizar o trabalho.

Marx e Engels se referem às crises de superprodução ao longo do Manifesto Comunista, que são inerentes ao capitalismo e que fazem crescer a inflação e o desemprego, de forma que a própria competição entre os trabalhadores permita diminuir os salários e precarizar o trabalho. Lênin, mais tarde, ainda traz à tona como elas se tornam ainda mais complexas no imperialismo, em que o mercado financeiro entra em cena e as crises se tornam ainda mais irracionais, aprofundando a competição entre os Estados nacionais e levando a guerras. A crise de 2008, por exemplo, se utiliza de mecanismos [2] como os planos de austeridade; a exploração do trabalho imigrante e a xenofobia na Europa; e o avanço da Indústria 4.0 e dos aplicativos de serviço como Uber e Ifood para reestruturar a produção e regularizar uma acumulação flexível sem os limites da legislação trabalhista.

As opressões e a podridão capitalista

Tudo o que é possível explorar, os sangue-sugas capitalistas o fazem, inclusive se precisarem fazê-lo às custas das vidas e liberdades das mulheres, da população LGBTQIA+, do povo negro e do povo indígena.

Na questão da mulher, a íntima relação entre família e propriedade privada [3] precede o capitalismo, mas toma novos contornos nesse sistema econômico pois usa da opressão à mulher como ferramenta para a reprodução da vida humana a serviço do capital. Para isso, usa da mais violenta repressão de toda e qualquer liberdade sobre o nosso próprio corpo, como diz respeito o direito ao aborto, ou a repressão da sexualidade e qualquer expressão que saia dos padrões de cis heteronormatividade que escapa às funções capitalistas da família burguesa. A opressão ao povo negro, numa outra face dessa mesma moeda, surge também com o grande potencial econômico que demonstrou durante a época da escravidão [4]. O preconceito contra o negro e o racismo surge dos porões mais podres do capitalismo, que se apropria das mais diversas formas de opressão para que continue lucrando, promovendo chacinas e o assassinato de milhares de jovens e trabalhadores negros na periferia com a “guerra às drogas” que nunca parece atingir os grandes empresários e milicianos que incontáveis vezes já apareceram envolvidos em grandes esquemas de tráfico.

A manutenção das opressões e de todo o sistema ideológico que permite a perseguição de mulheres, LGBTQIA+, negres, indígenas e das inúmeras etnias que lutam pela sua autodeterminação é extremamente lucrativo: são as mulheres negras que ocupam os postos de trabalho mais precários e recebem menos, é a população LGBTQIA+ tem menos direitos e são discriminados. Se a crise de 2008 nos ensina uma coisa, é que a xenofobia foi extremamente lucrativa para a implementação da acumulação flexível e o emprego de trabalhadores imigrantes, que recebem menos e não têm direitos trabalhistas. O racismo permitiu que sejam os jovens negros os que trabalham em aplicativos, por horas a fio, entregando comida e com fome por meio de aplicativos como o Ifood. Planos de precarização do trabalho como as medidas de terceirização atingem em cheio as mulheres negras, que precisam ocupar os postos mais precários para que consigam sobreviver, principalmente quando são mães de famílias.

As opressões não podem ser abolidas completamente se não pela abolição completa do sistema que a permite diariamente. São questões que ultrapassam o capitalismo e se perpetuam, mas são intimamente simpáticas ao caráter exploratório do capital. Por serem esses a maior parte da classe trabalhadora e os setores mais explorados, serão os primeiros a se revoltar e a levar a frente as demandas de todo o conjunto da classe trabalhadora, que só as conquistarão por meio da aliança com os setores oprimidos. A luta por direitos democráticos como o aborto legal, seguro e gratuito, por igualdade salarial entre homens e mulheres, a luta contra o feminício e contra a transfobia, escancaram cada vez mais como a burguesia é incapaz de dar solução à opressão de gênero e raça, e desperta a consciência de que apenas as mulheres, negres, indígenas e LGBTQIA+ enquanto classe podem dar uma resposta. Mesmo quando alguns direitos são conquistados, fruto da luta, a burguesia busca rifá-los na próxima crise, para oprimir ainda mais.

A classe operária e a revolução

“com o desenvolvimento da indústria, o proletariado não apenas se multiplica; comprime-se em massas cada vez maiores, sua força cresce e ele adquire maior consciência dela. Os interesses, as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais à medida que a máquina extingue toda diferença de trabalho e quase por toda parte reduz o salário a um nível igualmente baixo. [...] os salários se tornam cada vez mais estáveis; o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas torna a condição de vida do operário cada vez mais precária; os choques individuais entre o operário singular e o burguês singular tomam cada vez mais o caráter de confrontos entre duas classes. Os operários começam a formar coalisões contra os burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários; chegam a fundar associações permanentes a fim de se precaver de insurreições eventuais. Aqui e ali a luta irrompe em motim” [5].

Aqui Marx coloca em prática a chave que mobiliza toda a teoria do socialismo científico. Por um lado a classe trabalhadora é a única com o potencial verdadeiramente revolucionária capaz de superar o capitalismo porque é exatamente o oposto da burguesia: é a classe que tudo produz mas a quem nada pertence. Por outro, é a classe que a oprime, que a coloca na condição de não possuidora, justamente aquela que nada produz mas a quem tudo pertence, que cria as condições para que os operários a superem e por isso “produz, sobretudo, os seus próprios coveiros” [6].

Mas é justamente a luta contra a imposição cada vez mais repressiva de condições miseráveis de vida pela burguesia que desperta o ódio contra tudo e todos que a impõe, e que permite que no seio das indústrias e fábricas surjam os meios e espaços de organização dos trabalhadores contra essas condições: o proletariado é o produto mais autêntico das grandes indústrias, e é nelas e por meio delas, por meio de greves e mobilizações que demonstram quem realmente move as engrenagens do mundo, que ele conquistará uma sociedade livre de exploração e opressão.

A classe trabalhadora é mais atual do que nunca: é maior do que nunca foi, devido ao nível avançado de industrialização e tecnológico no mundo, e invade não só as fábricas, comércios e escolas, mas agora os aplicativos de entrega. E todos eles ainda seguem em luta: seja na França, onde os petroleiros, garis e estudantes lutam com greves e piquetes contra a reforma da previdência de Macron; no Peru onde as mulheres indígenas lutam contra o regime golpista de Dina Boluarte apoiado por Lula; ou no Brasil onde os entregadores de aplicativo realizaram o Breque dos Apps em 2020 por mais direitos.

Engana-se quem pensa que os operários são alheios a experiência: se a cada avanço do capital sob os direitos dos trabalhadores estes se levantam, mesmo que em primeiro lugar contra um burguês singular em defesa de seus salários, “o verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores”[Idem]]. É esse o movimento histórico, materialista e dialético do qual se apropria Marx em toda a sua obra: são as ferroadas constantes do capital, nas indústrias que eles mesmos fizeram crescer, que possibilitam não apenas o despertar da consciência dos trabalhadores enquanto classe, em união com todas as categorias, mas que o impulsionam para que vejam a si mesmos enquanto classe e que reconheçam na irracionalidade do capital a sua própria racionalidade. E nada mais racional que tudo pertencer a quem tudo produz.

Cabe ao proletariado a tomada do poder político e que ele se torne o dono da propriedade privada e dos meios de produção. Quando isso se tornar realidade, “o capital é transformado em propriedade comum, pertencente a todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. O que se transformou foi o caráter social da propriedade. Esta perde o seu caráter de classe” [7].

Chegamos, então, ao primeiro elemento que constitui a sociedade comunista: o fim da propriedade privada. Significa colocar nas mãos dos trabalhadores os meios de produção que, ao pertencer a grande maioria, ao se tornar propriedade comum, deixa de ser propriedade de uma classe. Esta só pode ser conquistada pela tomada do poder político pela classe proletária.

A burguesia jamais seria capaz de transformar tão radicalmente a essência da propriedade privada, justamente por ser ela a base material do seu poder e por ser ela a razão de sua própria existência. Se por um lado a tomada do poder do proletariado significa a supressão da burguesia, por outro o fim da propriedade privada extingue, portanto, a mesma enquanto classe. Essa é a grande tarefa histórica do proletariado no Brasil e no mundo: o fim da propriedade privada e de todas as classes.

As classes e o Estado

Mas, se o mundo é marcado pela dominação de uma ínfima minoria sobre uma imensa maioria, como esta dominação se concretiza? Como a ordem se mantém em um sistema onde poucos têm lucros exponenciais à custa do que produzem os trabalhadores? É impossível responder a esta pergunta sem observar o papel que o Estado cumpre no modelo capitalista de produção. Lênin ao analisar a concepção de Marx e Engels acerca do Estado em O Estado e a revolução reforça que “O Estado é o produto e a manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe. O Estado surge onde, quando e na medida em que as contradições de classe não podem objetivamente ser conciliadas. E inversamente: a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.”

No sistema capitalista, o principal choque entre as classes se dá entre a burguesia - detentora dos meios de produção - e o proletariado - que necessita vender sua força de trabalho - por isso, a existência do Estado se faz necessário para garantir a dominação da burguesia na medida em que os conflitos e contradições de classe entre esta e o proletariado são inevitáveis. Ao retomar a definição de Marx e Engels sobre o Estado, Lênin polemizava com os supostos marxistas que viam o Estado como um órgão de mediação e conciliação entre as classes sociais, o que o negava seu caráter repressivo, à serviço de garantir a dominação de uma classe sobre a outra. O que disse Marx em relação aos governos, serve para as demais instituições do Estado burguês: “O governo do Estado moderno não é mais que um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa".

Para garantir a dominação de uma classe sobre outra - no caso da burguesia sobre o proletariado - o Estado tem uma série de instituições que estão ao seu serviço: as forças repressivas como polícia e exército, o judiciário, o parlamento, etc. Para garantir sua hegemonia, a burguesia se utiliza da coerção e do consenso. Nos momentos menos incisivos da luta de classes em democracias não-degradadas, a burguesia consegue garantir sua dominação buscando elementos predominantemente de consenso, querendo evitar qualquer possibilidade de explosão social, ainda que cotidianamente se valha da repressão contra os trabalhadores negros, por exemplo. Já nos momentos em que a luta de classes entra em cena, mesmo em democracias liberais estáveis, a burguesia não tem receios em ser coercitiva através da repressão para garantir a sustentação da desigualdade e da exploração, como podemos observar com o que está se passando na França em que a juventude e a classe trabalhadora estão sendo fortemente reprimidos por lutarem contra a reforma da previdência de Macron.

Se a burguesia através do Estado e de suas próprias instituições consegue garantir a sua hegemonia, para contrapô-la, os comunistas devem construir as suas próprias organizações de maneira independente dos partidos políticos e empresários burgueses. O princípio da independência política e organizacional da classe trabalhadora foi o que permitiu as experiências mais avançadas na busca pela tomada do poder como a Comuna de Paris em 1871 e a Revolução Russa em 1917. A conciliação de classes busca submeter os interesses dos trabalhadores e dos setores oprimidos aos de um Estado que em essência os oprime. Então, se este Estado está à serviço de sustentar uma correlação de forças que explora os trabalhadores, oprime as mulheres e os LGBTQIA+, os negros e os indígenas, é tarefa dos comunistas tomar o poder através da revolução proletária e destruir o Estado burguês.

Ao fazermos um paralelo entre as concepções marxistas adquiridas através da análise científica dos processos mais avançados da luta de classes e a política atual do Brasil, a única conclusão possível é que trabalhadores, juventude e os setores oprimidos devem expressar total independência em relação ao Governo de frente ampla de Lula e Alckmin. Com um arco de alianças que envolve a velha direita, o agronegócio, empresários da FIESP que buscam preservar todo o legado das reformas anti-operárias aprovadas nos últimos anos, depositando confiança em instituições como o STF, se escancara que a definição de Marx estava correta: “O governo do Estado moderno não é mais que um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa". Além disso, a aproximação recente a setores reacionários como o Governador de São Paulo, Tarciso de Freitas, e setores ligados à milícia, como o caso da Ministra do Turismo, Daniela do Waguinho provam que a conciliação de classes não é um caminho para realmente enfrentar a extrema-direita. Se a tarefa dos comunistas revolucionários é destruir o Estado que sustenta a exploração e a opressão e que dá bases para o surgimento de fenômenos capitalistas aberrantes como é a extrema direita bolsonarista, se prova a necessidade de que as entidades dos trabalhadores e dos estudantes sejam 100% independentes do Governo.

O que devem fazer os revolucionários ao concluir-se a tarefa de destruição do Estado burguês? Não é segredo que os comunistas querem construir uma sociedade em que se possa estabelecer uma relação harmônica com a natureza, em que todos possam expressar livremente sua sexualidade, em que o trabalho deixe de ser um fardo para tornar a ser uma parte constitutiva do ser-humano, o que só é possível através da extinção das classes sociais e do Estado. Mas, em um primeiro momento, é necessário impor a Ditadura do proletariado, ou seja, um Estado Operário controlado pelos trabalhadores através da auto-organização para conseguir destruir os destroços da sociedade até então vigente - a Ditadura da burguesia - e assentar as bases para a construção do Comunismo. Trotsky analisou brilhantemente qual seriam as tarefas frente à este impasse:

“O regime da ditadura do proletariado desde o seu início, então, deixa de ser um “Estado” no sentido antigo do termo – um aparato especial, isto é, para submeter a maioria do povo. O poder material, junto com as armas, vai direta e imediatamente para as mãos das organizações dos trabalhadores como os sovietes. O Estado como um aparato burocrático passa a desaparecer a partir do primeiro dia da ditadura do proletariado.”

Em acordo com a definição de Trotsky, Lênin definira anos antes que o proletariado, de fato, necessitava de um Estado para levar à frente as tarefas imediatas após a Revolução. No entanto, este seria um meio-Estado, justamente por ser um Estado que busca apoiar as tarefas necessárias para a destruição dele próprio, para Engels, um Estado que se auto-definharia. Ou seja, na medida em que as classes sociais fossem se extinguindo e as tarefas da Revolução Socialista como a planificação da produção e a expropriação dos meios de produção da burguesia fossem se concretizando, o Estado tenderia a perder seu sentido até chegar ao estágio de seu definhamento.

Mas então, o que ocorreu na União Soviética? Por que um Estado que tenderia ao definhamento acabou fortalecendo o seu próprio aparelho burocrático? Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que o legado do Stalinismo na União Soviética representou um rompimento com as perspectivas marxistas acerca do Estado e da Revolução. Revolucionários como Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky sempre basearam o programa revolucionário a partir de um ângulo internacionalista, perspectiva esta que foi negada pelo stalinismo através da tese do socialismo num só país. Marx apontava que o socialismo - ou estágio inferior do comunismo - seria um estágio onde as forças produtivas e o grau de desenvolvimento tecnológico, científico e econômico de determinada sociedade seriam superiores em comparação à mais desenvolvida sociedade burguesa. No entanto, o isolamento da Revolução Russa, que se deu em um país de capitalismo atrasado, não permitiu que as forças produtivas na URSS se desenvolvessem a ponto de ultrapassar as do capitalismo avançado.

As políticas contra-revolucionários do Stalinismo que levaram como a destruição dos mecanismos de auto-organização da classe trabalhadora como os sovietes, a traição à processos internacionais da luta de classes como na França, Itália e Grécia e a traição ao internacionalismo proletário com a dissolução da Terceira Internacional Comunista e com a teoria do Socialismo num só país, a perseguição aos direitos democráticos que haviam sido conquistados com a Revolução de 1917 como o direito ao aborto e a descriminalização dos LGBT’s e a conciliação de classes com diversos setores do imperialismo internacional (como prova o pacto Molotov-Ribbentrop, entre outros) ajudam a entender o porquê da não-expansão da Revolução Russa e da ausência de revoluções socialistas à nível internacional que ajudariam no desenvolvimento das forças produtivas na URSS.

Essas concepções anti-marxistas do stalinismo levaram a que o poder e as riquezas do Estado Operário saíssem da administração através dos conselhos e da auto-organização dos trabalhadores para se concentrar na mão de uma burocracia. Os burocratas, se apoiando na teoria do socialismo num só país, defendiam que a URSS havia completado ou estava muito próxima da transição ao socialismo. Daí surgem duas contradições latentes que se alimentam e mostram os limites do stalinismo: se a transição ao socialismo estava completa, o que explicaria o fortalecimento do aparelho estatal que - segundo Engels - tenderia ao definhamento? Para responder a esta pergunta, os burocratas se apoiavam em exemplos de “sabotadores” da causa socialista que explicariam a vigilância e o fortalecimento do aparelho estatal. Esta falsa resposta nos coloca outras perguntas: por que o stalinismo enfraquecia os mecanismos de auto-organização - tão necessários para que as massas e o Partido Bolchevique conseguissem levar a frente a Revolução de 1917 - sendo que estes que realmente poderiam enfrentar qualquer indício de tentativa de restauração burguesa?

O revolucionário Leon Trótsky, dirigente do Exército Vermelho na Revolução de 17, que combateu as concepções contra-revolucionários do stalinismo, sintetizou de maneira brilhante a contradição que se cristalizava na União Soviética:

“O melhoramento da situação material e cultural deveria, à primeira vista, diminuir a necessidade dos privilégios, restringir o domínio do "direito burguês" e, por esse fato, minar os alicerces da burocracia, guardiã destes direitos. Mas o que se produz é exatamente o inverso: o crescimento das forças produtivas foi acompanhado até hoje por um extremo desenvolvimento de todas as formas de desigualdade e privilégios e, igualmente, da burocracia. E não sem razão.

[...] Ao lado do fator econômico que obriga, na presente fase, a recorrer aos métodos capitalistas de remuneração do trabalho, atua o factor político encarnado na própria burocracia. Pela sua natureza, esta cria e defende privilégios. Surge, logo no início, como órgão burguês da classe operária. Estabelecendo e mantendo os privilégios da minoria, atribui a si própria, naturalmente, a melhor parte: aquele que distribui os bens nunca saiu lesado. Assim, vê-se nascer das necessidades da sociedade um órgão que, ultrapassando em muito a sua função social necessária, se transforma num factor autônomo e, simultaneamente, na fonte de grandes perigos para todo o organismo social.”

A Revolução Russa nos trouxe uma série de conquistas: a tomada de poder pelos trabalhadores, em sua primeira fase a legalização do aborto e a descriminalização das populações LGBT’s, a expropriação dos meios de produção da burguesia e a planificação da economia, ou seja, permitiu aos trabalhadores e aos setores oprimidos vislumbrar um futuro comunista totalmente diferente do mundo de miséria oferecido pelo capitalismo. No entanto, o isolamento da revolução, a política contra-revolucionária do stalinismo, a formação de uma burocracia são fatores que ajudam a nos explicar a decadência da União Soviética que teve como destino final a restauração capitalista.

A luta por um futuro comunista

Para um marxista, a única conclusão possível frente a um mundo tão profundamente opressor é a luta por um futuro comunista. É apenas uma sociedade sem propriedade privada e sem classes que pode acabar de uma vez por todas com a destruição gradual do planeta, o desmatamento, o aquecimento global que se aprofundam cada vez mais em nome do lucro de alguns pequenos empresários.

A luta por uma sociedade diferente ainda lateja na mente dos operários e da juventude que, na França, invadem as ruas, constroem greves e piquetes na luta contra um futuro de exploração do trabalho, contra um futuro e uma vida dedicada à um trabalho alienado e privado de sentido, como promete a reforma da previdência aprovada autoritariamente por Macron.

Cabe a juventude e a classe trabalhadora, em aliança com os setores oprimidos, confiar apenas nas suas próprias forças, as mesmas que fazem girar as engrenagens do mundo, para tomarmos nosso futuro nas próprias mãos por uma sociedade livre de opressões, em que mulheres e homens sejam livres para expressar a própria sexualidade, concretizar a própria vontade e serem donos dos seus próprios corpos, sem se preocupar em se encaixar em todas centenas de caixinhas às quais a burguesia tenta nos restringir. A bandeira do comunismo só pode ser carregada por eles, que veem nas próprias forças a potencialidade de fazer surgir uma sociedade em que não exista opressão racial, em que o povo negro possa viver plenamente sem o medo e sem mecanismos que diariamente o fazem valer menos.

Sejamos realistas e exijamos o impossível: merecemos e conquistaremos uma sociedade onde não existam oprimidos, onde os pássaros possam cantar, onde o ser humano possa ser verdadeiramente livre e a vida plena de sentido. Como disse Trotsky [8]:

“A vida comunista não crescerá cegamente, como recifes de corais no mar, mas será construída conscientemente, testada pelo pensamento, guiada e corrigida. Quando o modo de vida deixar de ser elementar, também cessará sua estagnação. O ser humano, que aprenderá a mover rios e montanhas, a construir palácios do povo nas alturas do Mont Blanc ou no fundo do Atlântico, certamente poderá dar à sua vida não só a riqueza, brilho e intensidade, mas também o maior dinamismo. A crosta da vida cotidiana dificilmente terá tempo de se formar antes de estourar novamente sob pressão de novas invenções e conquistas técnicas e culturais. A vida no futuro não será monótona.”


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FOOTNOTES

[1Ver, de Friederich Engels e Karl Marx, Manifesto Comunista, São Paulo, Boitempo.

[2Ver, de Iuri Tonelo, No entanto, Ela se Move, São Paulo, Boitempo e Edições Iskra, 2021.

[3Ver, de Friederich Engels, A Origem da família, da propriedade e do Estado, São Paulo, Boitempo, 2019

[4Ver, de George Breitman, Quando surgiu o preconceito contra o negro, de 1954, em A Revolução e o Negro, São Paulo, Edições Iskra, 2019

[5Ver, de Friederich Engels e Karl Marx, Manifesto Comunista, São Paulo, Boitempo.

[6Idem.

[7Idem

[8Ver, de León Trotsky, Sobre a Vida Cotidiana e o Socialismo, 1924
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