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O Cazaquistão está sendo sacudido por fortes protestos que derrubaram um governo devido a uma medida de aumento do preço do combustível que, apesar de ter sido retirada, as ondas de manifestações continuam, onde muitos participam armados.

sexta-feira 7 de janeiro de 2022 | Edição do dia

Para saber mais sobre a situação, conversamos com Ignacio Hutin, um jornalista especialista em países da Europa Oriental, Eurásia pós-soviética e Bálcãs, ele escreveu em vários meios de comunicação argentinos e internacionais cobrindo zonas de guerra e recentemente publicou dois livros sobre a guerra na Ucrânia: "Ucrânia. Crônicas da frente" e "Ucrânia / Donbass. Uma guerra fria renovada".

Em primeiro lugar, se você puder nos contar brevemente, de sua perspectiva, o que está acontecendo no Cazaquistão depois dos protestos contra o aumento dos preços dos combustíveis que vemos na mídia. Quais são as principais demandas?

Há poucos dias foi anunciada a liberação do aumento do preço do gás liquefeito, um derivado do petróleo que é usado principalmente para carros particulares no Cazaquistão, que é um país que vive de gás e petróleo, como a maioria dos países da zona . Com essa desregulamentação de preços, ele dobrou. A partir de então, houveram protestos que começaram no sudoeste perto da costa do Mar Cáspio, onde estão as reservas de gás. São as cidades onde mais hidrocarbonetos são extraídos em geral (não só gás, mas também petróleo). E, de fato, em toda essa região, muitas empresas ocidentais operam: Exxon, Shell, Chevron, existem todas as que conhecemos.

O problema é que o que começou há dois dias, por conta das manifestações sobre esses aumentos, saiu imediatamente do controle. Ontem os protestos chegaram imediatamente a Almaty, ou Alma Ata em russo, que era a antiga capital e ainda é a maior cidade onde ocorrem protestos muito importantes. Esses protestos foram reprimidos até então. E surgem as perguntas de por que o presidente, Tokayev, não reprimiu da mesma forma que fez Lukashenkona Bielorússia. Por exemplo, por que as forças de segurança não foram suficientes para impedir isso em um país muito antidemocrático e em um país altamente militarizado. Não é a Bielorrússia, em termos de falta de liberdades individuais e democráticas, mas está muito perto.

Então, é raro que, em um país tão militarizado e tão pouco democrático, não tenha tido uma forte repressão, e as manifestações foram crescendo até que, na quarta feira à mais ou menos três horas da manhã no Cazaquistão, o presidente anunciou que iria dissolver o governo, ou seja, ele iria demitir todos os membros do gabinete de ministros. Mas isso não bastou, os protestos seguiram, então, anunciou também uma série de medidas relativas ao preço dos combustíveis, alimentos e outros. Porém, isso tampouco bastou, então, deu, em uma nova conferência, uma declaração ao país que foi o mais importante, porque anunciou que ele, a partir de então, assume a chefia do Conselho de Segurança, um braço executivo que tem muito poder, mas não é eleito democraticamente. Até agora, houve apenas um secretário-geral do Conselho de Segurança do Cazaquistão, que foi o único presidente que o país teve até 2019, Nursultan Nazarbayev. Ele foi o primeiro presidente desde a independência em 1991 até deixar a presidência em 2019, mas não deixou o poder. Ele permanece com o Conselho de Segurança, que continua sendo um órgão de tomada de decisão muito importante, embora ele não ocupe mais a presidência e também permaneça com a liderança do partido governante chamado Nur Otán. Mas é tão importante que, ao renunciar à presidência, renomeou a capital que havia criado do zero, Astana foi renomeada para Nursultan Nazarbayev, é curioso.

Em relação às demandas, é difícil saber. Não há demandas concretas, isso é especialmente preocupante para Tokáyev. Porque até agora ele pensa “já dissolvi o governo, fiz renunciar o chefão, o dirigente do sucessor do KGB, que mais querem de mim?”, e não se sabe. As únicas [demandas] que circularam foram nas redes sociais e é uma lista de coisas que não têm nada a ver e não têm muita credibilidade. Portanto, Tokáyev a esta hora não sabe o que fazer com tudo isso.

Viu-se que as manifestações têm como alvo algumas famílias proprietárias de petroleiras ligadas ao poder político (principalmente Nazarbayev). Isto hoje tem alguma relação com a queda da URSS? Se você puder nos contar como o poder foi formado desde então.

O Cazaquistão tem o mesmo que quase todos os outros países da Ásia Central, até o mesmo que a Rússia e até recentemente também a Ucrânia: uma casta política e econômica conhecida como os oligarcas, que são pessoas que ganharam muito dinheiro nos primeiros anos após a queda da União Soviética, que soube estar no lugar e na hora certa e compraram todas as empresas que estavam sendo vendidas por conta das privatizações. Eles compraram muito barato e ganharam muito dinheiro, principalmente empresas ligadas, por exemplo, aos hidrocarbonetos. Alguns são bastante famosos, como Abramovich, o presidente do Chelsea. No Cazaquistão, você tem Mukhtar Ablyazov, que é uma das figuras mais importantes do país, a quem acho que deve se prestar um pouco de atenção durante esses protestos. Ablyazov é um empresário cazaque que aparentemente roubou muito dinheiro do Estado e é acusado de desviar muito dinheiro. O procuram da Ucrânia, da Rússia e do Cazaquistão, mas ele está na França. Ele fundou seu próprio partido político, que obviamente não pode participar das eleições, porque, além de ser procurado pela justiça e a França não querer extraditá-lo, hoje ele saiu com tudo para apoiar as manifestações, falar pragas do governo e outros. Ablyazov é uma figura muito importante para entender esse conflito, é preciso prestar atenção para ver o que ele fala e o que falam sobre ele.

Por outro lado, toda essa grande casta política e econômica também é uma casta familiar, porque o peso da família Nazarbayev no Cazaquistão é gigantesca. Por exemplo, a mulher, uma das mulheres mais ricas da Ásia Central, sempre está envolvida em casos de corrupção que aparecem por toda parte, tem casas na França, e um fato curioso é que ela é dona da casa de Sherlock Holmes em Londres. E, obviamente, parte dos protestos tem a ver com isso, com essa grande família, casta política e econômica que absolutamente move tudo, controla tudo no Cazaquistão.

Embora se fale dos protestos mais fortes desde 1991, desde 2020 têm havido manifestações e greves no setor petrolífero. O que você pode nos dizer sobre isso e que papel eles estão desempenhando nos protestos atuais?

Sim, houveram uma série de protestos menos relevantes em 2011, 2016 e entre 2018 e 2020. Em geral acontece um pouco como agora, que sim, a faísca dos protestos têm haver com o aumento do preço de gás, mas todos sabemos que por trás disso existem um monte de coisas O importante é que os protestos têm a ver com uma reivindicação por mais democracia, menos repressão, contra a corrupção e outras coisas que todos sabem, não há notícias de que o Cazaquistão é um dos países mais corruptos do mundo. Mas os protestos de 2018 tiveram um resultado muito interessante, pois em 2019 Nazarbayev renunciou.

A questão é que os protestos que começaram em 2018 terminaram em meados de 2020, como pode ser que protestos como este foram tão extensos, e desta vez em menos de vinte e quatro horas tudo aconteceu. Como pode ser, com isso é que fico perplexo. Não acredito que tenha acontecido tão rapidamente em um país tão militarizado e tão pouco democrático. Não acredito que simples manifestantes em menos de vinte e quatro horas tenham derrubado um governo, o chefe do país e o líder da ex-KGB, tudo em menos de vinte e quatro horas. Parece-me muito estranho, além de estar vendo vídeos de gente armada, embora não sejam muitos. Ok, eles pegaram armas do quartel-general, da polícia em Almaty, mas eles foram muito organizados. Como podem simples manifestantes pegar em armas em menos de vinte e quatro horas e derrotar um estado altamente militarizado?

Então, quando eu leio em alguns lugares, por exemplo, mais perto da Rússia ou mais perto da esquerda, em geral, eu leio que é provável que essas manifestações tenham sido orquestradas por organizações estrangeiras ou argumentos semelhantes, e não parece uma hipótese tão distante.

Que tipo de fratura interna existe no país (etnológicas, religiosas, políticas), existe algum vínculo entre essa revolta social com o regime que surgiu na era pós-soviética?

Em termos gerais, é um país bastante estável, porque cerca de 70% da população é cazaque. Os cazaques são um povo turco, são muçulmanos. Eles falam uma língua turca, que é o cazaque, ainda que escrita em cirílico, como resultado da russificação dos anos trinta da União Soviética, mas seus filhos são muçulmanos e falam essa língua. Cerca de 20% da população são russos, etnicamente russos, ou seja, são cristãos ortodoxos e falam russo. A verdade é que todos, absolutamente todos os cazaques, ou seja, todos os cidadãos do Cazaquistão, bem como todos os cidadãos de praticamente toda a ex-União Soviética, falam russo perfeitamente e, em muitos casos, é a língua mais usada, como acontece na Bielorússia.

Em termos gerais, o Cazaquistão é um país muito próximo da Rússia, tradicionalmente tem muito boas relações porque é cultural, política e economicamente próximo. Mas, ao mesmo tempo, também está perto do Ocidente, principalmente por causa de todas as empresas de hidrocarbonetos que atuam na área. E também da China, já que têm fronteiras e é um país muito importante. Lembremos que no Cazaquistão existe a Baikonur, que é a maior estação aeroespacial do mundo e da história. O satélite Sputnik, Tereshkova e Yuri Gagarin vieram de lá. Essa estação aeroespacial é de fato um enclave russo, ou seja, é um povo que depende de Moscou. Obviamente, na União Soviética não importava se ele era cazaque ou russo, mas, com a independência, importa. Curiosamente, o povo o aluga para a Rússia e depende da Rússia. Ao ser tão importante, uma das primeiras declarações nestes dias da Rússia foi dizer que nada estava acontecendo em Baikonur, claramente isso importa muito para Moscou.

Existe algum tipo de pressão internacional semelhante ao que vemos na Ucrânia de 2013-2014? Você sabe o que as pessoas pensam sobre isso?

O fator internacional é muito importante, é muito interessante, porque, a princípio, você tem que ver o que foi dito até agora e notar que a China não disse nada, a União Européia não disse quase nada e os Estados Unidos não disseram quase qualquer coisa também. Até ontem, a Rússia apenas disse algo que espera que tudo dê certo, também falou em desestabilização. Tenho a sensação de que, de modo geral, independentemente de toda a retórica boba que possam ter os diferentes países ocidentais, todos buscam o status quo. Porque o Cazaquistão é um país que vem crescendo economicamente, que atende o mundo todo, em hidrocarbonetos, em serviços, e também é um mercado muito interessante porque está próximo à China. É uma área muito importante, porque é uma área de trânsito entre a Ásia e a Europa; é um fornecedor de gás, mas é um fornecedor de gás não russo, o que também é muito importante. Portanto, é um país que hoje está como a Armênia, o Quirguistão ou o Uzbequistão, joga muito bem em duas pontas. Por um lado, com a União Europeia e com a OTAN, mas também joga muito bem com a Rússia e a China. Isso serve para todos e, desde que sirva ao que quer que seja, não importa quem governa. Se Tokayev cair, se Nazarbayev realmente deixar o poder, o importante é que ele não mude muito as políticas externamente.

Não creio que haja possibilidade de um conflito como houve na Ucrânia, já que ali existe uma sociedade absolutamente dividida. Isso é visto em todos os resultados eleitorais desde a queda do comunismo, é visto em todos os mapas demográficos, é visto em todos os mapas de religião, etnia, língua, é visto que é um país partido e que mais cedo ou mais tarde poderia chegar a acontecer o que aconteceu. Mas este não é o caso na Bielorrússia. E neste caso também, aliás, algo muito curioso é que existem protestos em diferentes cidades do país, mas a violência significativa está em uma única cidade que nem é a capital. É em Almaty, que é a maior cidade, é a antiga capital, mas em nenhum outro lugar há um nível tão alto de violência. Em nenhum outro lugar eles pegaram em armas, é raro, e isso me leva ao ponto que eu disse antes. Não sei se acabo acreditando que essas manifestações foram tão espontâneas, por que se foram tão rápidas, foram tão eficazes, foram tão violentas e o governo super militarizado não soube como apaziguar. Existe algo estranho. Mas bem, isso é tentar adivinhar, porque até agora não sabemos muito mais do que isso.

O que você pode nos dizer sobre a repressão brutal desta quinta-feira e a irrupção direta da Rússia?

Se confirmou que a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO) já despachou tropas. Todos os países membros, Armênia, Bielorússia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia e Tadjiquistão, enviarão tropas. Claro, é uma decisão quase unilateral de Moscou, além da liderança formal da organização de Pashinyan que é o primeiro-ministro da Armênia, tirando isso, é uma decisão absolutamente de Moscou . A pergunta é em troca de quê? Por que está apoiando Tokayev? Li em algum lugar que um dos preços desse apoio era reconhecer a Crimeia como parte da Rússia, mas certamente existem mais alguns preços. Também li que a Rússia ia exigir que a mudança do alfabeto não fosse implementada, que o cirílico fosse mantido.

Acho que isso foi organizado, porque era muito eficiente para ser algo imprevisto e espontâneo, pelo menos em Almaty foi organizado. Acho que não é um problema internacional. Estou lendo muitos analistas que dizem que esta não é uma Revolução colorida, que para os russos significa o Ocidente derrubando governos. O Ocidente não tem absolutamente nada a ver com isso.

Se virmos o que os Estados Unidos falam sobre isso, para eles não importa o que aconteça, assim como para a União Europeia. E todo mundo está para manter o que está lá até agora. O que não tenho dúvidas é que se trata de uma disputa interna entre as elites de Almaty e Astana (ou Nursultán, agora a capital) para se livrar de Nazarbayev, a princípio, mas isso me parece já confirmado.

Isso tem um custo, obviamente, para o Cazaquistão. Talvez tenha que ver com a gestão do comércio de gás com a China, para que a Rússia passe a administrar um pouco mais. Talvez tenha que ver questões demográficas e geopolíticas ou econômicas. Não sabemos, mas se tiver um custo, terá um custo.




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