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"O foco é revolução, e não meu flow": reflexões sobre música e política em Eduardo Taddeo/Facção Central

Noah Brandsch

"O foco é revolução, e não meu flow": reflexões sobre música e política em Eduardo Taddeo/Facção Central

Noah Brandsch

É comum que a grande parte das pessoas que se consideram de esquerda ou críticas ao sistema, e que gostam de rap, conheçam e tenham como forte referência política e ativista o cantor (e nas palavras do próprio, “cantor que já escreveu um livro”) Eduardo Taddeo, ex integrante do grupo Facção Central. Neste artigo pretendemos elencar alguns pontos centrais do porque o Facção Central e o Eduardo são considerados por muitos um dos mais radicais contra o sistema dentro do movimento rap, e também algumas contradições políticas na saída que apresentam para a superação de toda a miséria capitalista que é denunciada em suas músicas.

Isso Aqui é uma Guerra

Desde o primeiro álbum que participou, Juventude de Atitude (Facção Central), de 1995, já colocava como tema central a denúncia das condições de vida nas favelas do Brasil, e mais especificamente, de São Paulo, local onde a banda foi criada e onde nasceu Eduardo (em um cortiço no Glicério, bairro do centro da capital).

Naquele momento, anos 90, o Brasil passava pelo processo de implementação e aprofundamento do neoliberalismo, durante o governo FHC. As derrotas da luta de classes para a classe operária nos anos 80 e a “redemocratização” que deixou impune toda a burguesia e os militares, assentou as bases para a privatização em massa, o sucateamento dos serviços públicos, a precarização da vida e a favelização. É nesse contexto que surge o Facção Central e seu primeiro álbum.

A denúncia central das músicas é de sempre contrapor a narrativa que a burguesia, através dos grandes conglomerados de comunicação (diga-se, que apoiaram tanto a ditadura como todo o processo de neoliberalização, com a Globo manipulando diretamente as eleições em que Collor foi eleito, por exemplo), coloca para justificar sua repressão nas favelas. A chamada “guerra às drogas”, a criminalização da pobreza e o discurso moralista de que as pessoas moram na favela por conta do tráfico e da criminalidade é a tentativa da burguesia em justificar a violência policial e o seu sistema que deixa milhões na miséria. As letras do Facção se contrapõe duramente a isso: denunciam as condições de vida, os responsáveis por deixar as favelas nessas condições, a ida da juventude à criminalidade (como fruto dessas condições), a violência de Estado e a contradição do discurso dos grandes meios de comunicação burgueses; e, ao mesmo tempo, dialogam buscando apresentar uma alternativa, da qual vamos aprofundar mais adiante.

Esses elementos são abordados em todos os álbuns do Facção lançados nos anos seguintes: Estamos de Luto (1998), Versos Sangrentos (1999), A Marcha Fúnebre Prossegue (2001), Direto do Campo de Extermínio(2003) e O Espetáculo do Circo dos Horrores (2006). Isso é colocado de uma maneira crua nas longas letras cheias de conteúdo e informação (um elemento bastante característico das músicas do FC e Eduardo); e das mais diversas perspectivas e mais variados aspectos: desde um ponto de vista da infância, das relações familiares, de presidiários, de jovens que entraram no crime etc. Ligado à denúncia, o Facção Central se coloca como porta-voz dos diversos setores explorados e oprimidos pela burguesia brasileira (como na clássica Minha Voz Está no Ar), denunciando o racismo e a desigualdade estrutural do país dominado por uma elite herdeira da escravidão. Muitas vezes, também, chama a uma revolução contra os ricos, os políticos corruptos, a polícia e a mídia, como em Discurso ou Revólver e outras.

Tanto nos álbuns do Facção Central, quanto nos solo do Eduardo (A Fantástica Fábrica de Cadáveres, de 2013, e O Necrotério dos Vivos, 2019), o caráter de classe perpassa por todas as denúncias feitas: a desigualdade, a alienação, a violência policial, o fomento ao crime, o racismo e todos esses elementos existem no sistema pois são úteis para a burguesia e seus representantes. A partir daí, fica nítida em cada letra que o seu conteúdo expressa em arte a luta de classes, e que existe uma “guerra” travada pela burguesia contra o povo pobre e a classe trabalhadora. Isso se expressa em uma de suas principais músicas, cujo nome é justamente Isso Aqui é uma Guerra (1999).

Trazemos essa música pois ela foi um marco para o grupo e para o rap nacional. Fazendo parte do álbum Versos Sangrentos (1999) e contendo um videoclipe, ela chegou a passar na MTV e logo depois foi censurada na justiça por “apologia ao crime”. Sim, uma música que denuncia as condições de miséria e desigualdade que faz com que as pessoas entrem no crime foi considerada pela justiça como “apologia ao crime”.
Darei apenas dois exemplos de estrofes que demarcam isso, como o Facção expõe a dura realidade, e como as condições de desigualdade levam à criminalidade:

Aí não tem gambé pra negociar
Liberta a vítima, vamo’ conversar
Vai se ferrar, é hora de me vingar
A fome virou ódio e alguém tem que chorar
(...)
É lei da natureza, quem tem fome (pow, pow, mata)
Na selva é o animal, na rua é empresário inconsequente
Insano, doente (doente)
O Brasil me estimula a atirar no gerente

Isso é mais uma prova de como a denúncia nas letras se chocava com o status quo da dominação burguesa e de seu discurso. Nessa mesma situação, ao serem entrevistados no programa de Sônia Abraão na MTV sobre a censura do clipe, vemos a ridícula e emblemática cena de dois policiais cantando rap “da polícia” para Eduardo, Dum-Dum e DJ Erick 12, tentando contrapor o rap do “cidadão de bem” ao dos “bandidos”, novamente mostrando esse choque do Facção com o discurso da burguesia. O neoliberalismo que se assentava necessitava da censura da arte que expunha as suas mais profundas contradições

Uma arte militante

A proposta de Eduardo, como ele mesmo já disse em diversas entrevistas, ou até mesmo em músicas como em Não Vou Me Omitir, onde canta “A meta não é ser musical desculpa jhow; O foco é revolução e não meu flow”, o foco é a transformação da realidade, e a utilização da música para isso. Da mesma forma, seu livro publicado A guerra não declarada na visão de um favelado cumpre também esse papel. Esse caráter de suas músicas, que buscam uma transformação da realidade através da conscientização e da cultura, se opondo às condições materiais de miséria e precarização do capitalismo brasileiro, é o aspecto mais subversivo de sua arte. Ainda que, como abordaremos mais à frente, essa saída política é contraditória e se insere em uma ofensiva burguesa e neoliberal não apenas no campo material, mas também ideológico, que impactou inclusive diversas organizações e partidos de esquerda.

Essa subversão vai além de apenas uma simples denúncia da sociedade, mas sim nessa denúncia que se choca brutalmente com a burguesia brasileira em um momento de expansão do neoliberalismo: ainda que tentassem censurar, perseguir e até ameaçar o Facção e o Eduardo, suas músicas seguem declarando guerra ao sistema, como a resposta à censura com a música “A Guerra Não Vai Acabar”, no álbum A Marcha Fúnebre Prossegue (2001), em que a primeira frase é a clássica “Ae, promotor, o pesadelo voltou. Censurou o clipe, mas a guerra não acabou”.

Além disso, coloca em suas letras conceitos como luta de classes, feminismo, anti racismo e imperialismo, cita abertamente diversos revolucionários e militantes, desde Zumbi dos Palmares, Malcolm X, Steve Biko até Marx, Che Guevara e Bakunin. Em palestras e em seu livro, denuncia diretamente que o capitalismo é o problema que engendra a opressão e exploração.

Em suma, contesta os aspectos estruturais da dominação burguesa desde a sua formação. Nesse sentido, pode se dizer que suas músicas, expressando sua visão política e o desejo de transformar a realidade, tem um aspecto anticapitalista e que questiona as questões democráticas que a débil burguesia brasileira foi incapaz de cumprir.

Pode interessar: O desenvolvimento desigual e combinado de Trótski: interpretações do Brasil e revolução permanente (Parte 1) https://www.esquerdadiario.com.br/O-desenvolvimento-desigual-e-combinado-de-Trotski-interpretacoes-do-Brasil-e-revolucao-permanente

A alternativa política e a institucionalidade

É inegável que Eduardo e o Facção Central fazem parte do setor mais radical e contra o sistema no hip-hop, tanto em suas músicas quanto em sua atividade militante. Entretanto, também não está isento de contradições, que por sua vez são pressões da própria realidade, e suscetíveis a mudanças.

Se é verdade que o hip-hop surge nos anos 80 como um movimento nas periferias do Brasil que contesta a ordem e o sistema, também é verdade que ao longo dos anos, foi fortemente cooptado e institucionalizado pelo Estado e por grandes empresas. Por um lado, a burguesia criminaliza e oprime a cultura da população pobre e negra (um exemplo é a própria censura do Isso Aqui é uma Guerra), e por outro, busca cooptá-la. Isso ocorreu com a capoeira, o samba, o rap, o funk e diversas expressões culturais. O avanço do neoliberalismo (fruto das derrotas da luta de classes dos anos 70/80, da restauração burguesa nos Estados operários, como URSS, China e o Leste Europeu e da necessidade a burguesia acumular mais capitais) também expressa essa posição dúbia: é responsável pela situação de miséria e precarização da ampla maioria, ao mesmo tempo em que fomenta uma ideologia individualista e de consumo.

No Brasil, isso se mesclou com os governos petistas no início dos anos 2000. A ideia do consumo de bens através do crédito e ascensão através da educação, em um momento de boom das commodities que permitiu à burguesia uma maior concessão à classe trabalhadora, fez parte dos governos petistas, e constituíram a subjetividade das massas trabalhadoras, e pressionaram a vanguarda e os movimentos sociais nesse sentido. Unido à isso, a forte institucionalização dos sindicatos, do movimento operário, estudantil e social [1], como forma de conter a precarização imposta pelo neoliberalismo de seus governos (durante os governos do PT, a terceirização triplicou, bem como o encarceramento em massa e a violência policial aumentaram), foi parte constitutiva para uma certa estabilização social conjuntural, mas longe de resolver os problemas estruturais do país.

Junto à essa noção de “consumo”, "ascensão" e à forte institucionalização, e como consequência disso, se fortalece a ideia, para setores da vanguarda e até de massas, de que a transformação da realidade se daria através da educação, de ocupar espaços etc. E não da contestação e luta profunda contra o sistema que engendra toda a exploração e opressão: o sistema capitalista e suas intituições.

Para saber mais:[CURSO GRATUITO] Uma visão marxista do Brasil - Política e luta de classes: 1964-2022. AULA 6 - O “projeto de país” do lulismo e sua crise

A realidade, entretanto, é mais dialética ainda. Ao mesmo tempo que a burguesia e o avanço do neoliberalismo (o que chamamos de "restauração burguesa") fomenta uma ideologia individualista e consumista, institucionaliza e coopta as organizações operárias, movimentos sociais, e as expressões culturais; ela também é incapaz de fazê-lo até o final, justamente por suas tão profundas contradições, ainda mais em um país com traços semi-coloniais como o Brasil. Essa realidade pressiona com sua ideologia ao mesmo tempo que é pressionada pela contestação. Ao mesmo tempo em que as políticas de conciliação dos governos petistas trouxeram uma estabilidade ao capitalismo brasileiro, suas contradições transbordaram e engendraram as revoltas e mobilizações que se iniciaram em Junho de 2013, abrindo espaço para fortes greves operárias (como as Greves do PAC e dos garis no RJ), e posteriormente as ocupações secundaristas; e que se expressaram no campo cultural também, por exemplo com as batalhas de slam ou o chamado “funk consciente”. O próprio Eduardo, neste momento, lançou seu primeiro álbum solo A Fantástica Fantástica Fábrica de Cadáver (2013), abordando temas que contestam problemas que se aprofundaram nos governos petistas, como a violência policial, nas músicas Era das Chacinas, Império dos Ossos, Banco dos Réus, Sentença Capital e várias outras, por exemplo.

É um jogo dúbio, em que a burguesia tenta cooptar o “fogo nos racistas” impulsionando uma ideologia de “pretos no topo”.

A música e a concepção política de Eduardo Taddeo expressa essa contradição. Se, por um lado, é intransigente em denunciar os problemas estruturais do país, que se aprofundaram na época em que o grupo foi criado e se mantiveram durante os governos petistas, a alternativa política e estratégica que apresenta é fortemente permeada por essa noção petista de "ascensão". É, em última instância, uma noção reformista.

Em diversas músicas, palestras e em seu próprio livro, a alternativa apresentada é de disputar os espaços nas universidades, na Justiça, no Estado, e isso por si só seria uma vitória na luta contra o sistema.

De fato, é uma conquista que os milhares de jovens que escutaram o Eduardo tenham saído do crime ou das condições miseráveis que a burguesia impõe através de conquistar um diploma em uma universidade. “O hip-hop salva vidas” e o Eduardo e o Facção Central fazem parte disso. Entretanto, a superação individual por meio de uma ascensão através da educação não muda o conjunto das relações sociais, de produção, e do Estado que continua sendo um órgão de dominação de classe da burguesia a fim de jogar milhões na miséria enquanto poucos lucram.

Se é verdade que, como o próprio Eduardo reconhece, as leis, a Justiça, os políticos burgueses, a polícia e a mídia servem aos interesses da burguesia, também é verdade que a entrada de indivíduos nesses espaços, mesmo que com boas intenções, continuam por manter as relações de produção e a dominação do Estado que é estrutural ao capitalismo. E ainda mais, se a integração do movimento operário, estudantil, movimentos sociais e culturais ao Estado e à institucionalidade foi e é parte de garantir a estabilização do capitalismo enquanto o mesmo precariza a vida da classe trabalhadora, a cooptação de indivíduos que se integram a ele se torna bem mais fácil.

Esse debate estratégico, de reformar o sistema por dentro (mesmo que se chame isso de “revolução”) ou de derrubar de forma revolucionária as relações sociais existentes, com a classe trabalhadora, produtora de tudo na sociedade, sendo o sujeito da criação de novas relações de produção mediante a derrubada do Estado burguês, é um debate fundamental e que distinguiu, nos momentos agudos da luta de classes, aqueles que se colocaram ao lado da burguesia e aqueles que batalharam por outra alternativa. E esse debate se torna mais fundamental ainda com o novo governo Lula-Alckmin, visto por grandes setores como um governo “em disputa”, abstraindo o seu caráter de classe e seu interesse em preservar todas as reformas passadas nos últimos anos por Temer e Bolsonaro.

Como parte da realidade que pressiona à essas contradições nessa relação dialética, a música e o ativismo de Eduardo desperta em diversos jovens e trabalhadores, inclusive no autor deste texto, uma semente de que é preciso e possível lutar contra toda a miséria e a estrutura que é tão fortemente denunciada em suas letras. Da mesma forma, ela segue com seu caráter extremamente subversivo, se chocando com a face mais podre da burguesia e de seu sistema; carregando consigo esse potencial de sublevação que a burguesia tenta incansavelmente cooptar.


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FOOTNOTES

[1Bem como o movimento hip-hop foi fortemente institucionalizado, chegando a dissolver as chamadas Posses, que eram centros culturais por todo o país onde a juventude negra e periférica se organizava em torno do hip-hop. Desde slam, batalhas de rap, skate, graffiti e pichação, até um movimento político que debatia anti-racismo, feminismo e marxismo. Durante os governos petistas, as Posses foram se dissolvendo por conta da institucionalização e do financiamento através do Estado, gerando disputas e tirando a autonomia do movimento. Preto Goez, um dos integrantes da banda Clan Nordestino, e Mara Onijá, militante da LER-QI, tinham grande influência nas Posses mais à esquerda. GOG, cantor de Brasília, se vinculou à UJS (juventude do PCdoB, base dos governos petistas) e à institucionalização do movimento.
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Noah Brandsch

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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