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LEGALIZAÇÃO DO ABORTO JÁ! | O cruel castigo secreto do aborto clandestino para mulheres lésbicas, bissexuais e homens trans

O dia 28 de Setembro é reconhecido como um dia de luta: “Dia Latino e Caribenho pela descriminalização e legalização do aborto”. No Brasil que Bolsonaro, Damares e os fundamentalistas nos reservam é fundamental lutar pela legalização do aborto. Mas além da defesa elementar da vida de milhares de mulheres em geral, há que se denunciar com a mesma força os cruéis castigo secretos da proibição do aborto para corpos que não obedecem o sistema de genitálias que se divide arbitrariamente entre apenas homens e mulheres e também para corpos cujo as sexualidades não se domesticaram. 

Virgínia GuitzelTravesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC

quarta-feira 25 de setembro de 2019 | Edição do dia

Não se pode encarar o problema da legalização do aborto de maneira séria, sem entender o profundo casamento que existe entre o capitalismo e o patriarcado e que interfere diretamente sobre os direitos reprodutivos, a liberdade sobre construir nossos corpos e identidades e neste atrelamento ao Estado. Obviamente, o patriarcado não nasce no capitalismo e atravessou sociedades ao longo da história.

Contudo, com a consolidação do modo de produção capitalista, a opressão dá um salto ao se ligar com a perpetuação, consolidação e meio de exprimir os interesses da exploração de uma classe minoritária contra a ampla diversidade que compõem a maioria da população. Esse maligno casamento, entre a opressão e exploração é o que funda a moderna opressão às mulheres e aos LGBT, baseado na mutilação de nossas identidades e nossa sexualidade, reduzindo-as a norma reprodutiva com o objetivo de servir à manutenção da exploração e da ideia de invencível que a classe dominante se vale. 

Desde a eleição de Bolsonaro é muito mais claro que ver este sagrado casamento, abençoado pelas igrejas evangélicas que aplaudiram não apenas os discursos reacionários contra a diversidade sexual, mas também a reforma trabalhista e da previdência. Temos assistido à uma escalada do projeto ultraneoliberal do governo que necessariamente teve que incluir os LGBT como alvo prioritário a ser atacado, para passar as reformas mais pesadas ao conjunto da população e da classe trabalhadora. Um governo de extrema direita abertamente contra as mulheres, negros e LGBT e nossos direitos, é um inimigo claro da luta pelo fim das mortes e sequelas por abortos clandestinos no Brasil. 

"Menino veste azul e menina veste rosa" e a suposta Ideologia de gênero

Bolsonaro começou cumprindo suas promessas eleitorais - e os acordos com a bancada evangélica - destacando Damares para já nas primeiras semanas de governo ficar repetindo discursos de ódio, sem qualquer fundamento cientifico, apenas por uma visão conservadora do fundamentalismo religioso. Este discurso de que "se nasce homem ou mulher" é o fundamento da superioridade cisgênera contra as identidades trans, buscando torná-las "anti-naturais" como se toda identidade de gênero não fosse uma construção socio-histórica.

Como explica Tomás Mascolo, o primeiro homem trans candidato na Argentina pela Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade: "A identidade trans, como qualquer identidade auto-declarada, é construída dentro das possibilidades e limitações do modelo socioeconómico que nos rodeia. Sob o sistema capitalista foram diferentes épocas que moldaram diferentes subjetividades (...) Na atualidade, a variedade de sistemas genitais humanos “distribui” as pessoas em apenas dois grupos: homens e mulheres. Mas a realidade é que existem tantos sistemas genitais quanto humanos. Contudo, a consideração médica de um clitóris “grande demais” ou um pênis “muito pequeno” são fundamentos para praticar intervenções cirúrgicas, não por uma questão de saúde, e sim para “adequar” o corpo aos parâmetros culturais binários genéricos. “Macho ou fêmea, disse a parteira”. "

Se isso é uma verdade, as identidades trans-masculinas não podem se construir plenamente pelas condições colocadas de um sistema econômico, social e político baseado na desigualdade social, na subordinação de uma classe que não detém os meios de produção por uma classe que detém e rege o funcionamento de toda a sociedade, a partir em primeiro lugar da organização econômica da sociedade moldando a cultura, os gostos, costumes, como também os gêneros e sexualidades “socialmente aceitos que se enquadrem e sirvam para a exploração econômica. E que necessita dividir e subjulgar grupos sociais por suas diferenças para garantir a manutenção - e agora a intensificação - da exploração do trabalho, que advém da crise capitalista iniciada em 2008 e como está sendo cada vez mais exigido pelo mercado financeiro. 

Quando buscamos falar do direito ao aborto e as identidades transmasculinas, o primeiro obstáculo é a completa ausência de dados e estudos qualificados sobre este tema. Isto porque, a sociedade na qual vivemos está voltada exclusivamente ao lucro, fazendo com que a produção cientifica nas universidades, o desenvolvimento da medicina para construir livremente nossos corpos e especialmente para garantir nossas vidas sejam alheios as identidade trans. Sem dados do número de abortos clandestinos feitos por homens trans, o governo de Bolsonaro - que odeia todos os dados e fatos da realidade que comprovam seu papel destrutivo das condições de vida da população, especialmente os decorrentes da aprovação das reformas e das concessões que faz ao agronegócio - consegue enganar a si mesmo que não existem homens trans e nem abortos clandestinos.

Porém o aborto é uma realidade, não apenas brasileira, mas mundial. 

“Se praticaram 42 milhões de abortos induzidos em todo o mundo, segundo os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). A metade serão abortos inseguros e pelas suas consequências morrerão cerca de 70 mil mulheres por infecções generalizadas, lesões e hemorragias, perfurações ou rupturas uterinas” (Andrea D’Atri)

É problema estrutural no Brasil, onde 1 a cada 5 mulheres até os 40 anos já realizou aborto. De acordo com o Datasus, em 2017, foram registradas 177.464 curetagens pós-abortamento, um tipo de raspagem da parte interna do útero. Outro procedimento em casos de aborto é o esvaziamento do útero por aspiração manual intrauterina (AMIU). Em 2017, foram registradas 13.046. Juntas, foram 190.510 internações. Uma mulher a cada dois dias morre por abortos clandestinos no país.

Mulheres lésbicas e bissexuais: estupros "corretivos" e relacionamentos trans-inclusivos

Só é possível afirmar que mulheres lésbicas não podem engravidar quem desconhece a ciência e reafirma a transfobia. Relacionamentos entre mulheres cisgêneras e mulheres trans podem resultar em gravidez, assim como os métodos de inseminação.

Todavia, a triste realidade de muitas mulheres lésbicas e bissexuais é de sofrerem uma opressão brutal devido ao machismo e a lesbo-bi-fobia que atuam para inferiorizar estas mulheres, negando-as acesso a saúde sexual, a uma super sexualização e a enorme cadeia de violências, que perpassa pelo apagamento da sua existência nos âmbitos escolares, pela expulsão de casa, discriminação no mercado de trabalho, até a violência física, os estupros chamados de "corretivos" e o lesbocídio. 

De acordo com o estudo "Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde", publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) em 2014, 7,1% dos estupros resultaram em gravidez, segundo dados do SUS de 2011. Isso reforça a urgência em debater a serviço do que está a saúde neste sistema que vivemos.

Uma luta histórica contra a intromissão clerical

Retomando outra vez Tomas Mascolo:

"Quando falamos de binarismo genérico aparece “a família”, tão defendida pela Igreja Católica, a instituição pertencente ao patriarcado por xcelência. Para o desenvolvimento do capitalismo foi necessário controlar os corpos e confiscar a sexualidade, enclausurá-la centro do casamento heterossexual, monogâmico e patriarcal, com o objetivo de deixá-lo na sua função reprodutiva.

É baseado nesta opressão que o capitalismo reserva para os homens trans e as mulheres lésbicas e bissexuais castigos que se mantém secretos para aprofundar a violência da proibição do aborto. Corpos que vivem fetichizados pela industria pornografica e que são categorizados como “exóticos”, tornam-se um produto a mais sob os olhares capitalistas. Mas imagine ouvir constantemente que mulheres lésbicas não possuem saúde sexual, porque “não há sexo entre mulheres” (!) ou que homens não podem falar sobre aborto porque não tem útero, sendo que homens trans tem e sofrem ainda mais para conseguir realizar estes procedimentos.

Imagine ser uma mulher bissexual e ser por isso identificada como quem trará ISTs para “os dois mundos”. São frases como essas que demonstram uma longa cadeia de opressão e violência que se sustenta graças a diversas instituições milenares, como a Igreja Católica, mas que quando se lê a noticia que estas vidas terminaram em um aborto clandestino ou uma tentativa suicida, a narrativa termina como um problema individual. O controle sob os nossos corpos - seja para construir livremente nossas identidades orgulhosas ou para garantir o direito reprodutivo - é parte profundo do sagrado casamento entre patriarcado e capitalismo, que nem de longe, foi verdadeiramente capaz de levar a frente a separação entre o Estado e a Igreja.

Da mesma forma que precisamos lutar por cada direito que nos permita ter um sopro de vida nesse sistema, entendemos também que isso deva ser um ponto de apoio para se lutar pela transformação radical dessa sociedade, que produz ela própria estas violências contra nós. Se igualdade perante a lei, não significa igualdade perante a vida, é preciso lutar para se viver outra vida. Uma vida em que o direito ao aborto seja um direito constituído e garantido sua gratuidade, qualidade bem como sua legalidade para todas as pessoas. Também deve ser um ponto de apoio, para toda a luta LGBT e de libertação sexual, para a livre expressão de gênero e sexualidade. Retomamos aqui um importante discurso da FHAR (Frente Homossexual de Ação Revolucionária) para nos inspirar a lutar por um mundo melhor: 

"Para nós, a luta de classes também atravessa nossos corpos. Isto significa que a nossa rejeição da ditadura burguesa também é para libertar o corpo da prisão que tem sido sistematicamente fechado por 2 mil anos de repressão sexual, trabalho alienado, opressão econômica. Portanto, não há possibilidade de separar nossa luta pela liberdade sexual, a luta pela libertação do desejo, de nossa luta anticapitalista para uma sociedade sem classes, sem senhores ou escravos” - FHAR, (1971) Rapport contre la normalité, París, Champ libre.




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