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Eleições francesas | O caminho de um segundo turno francês de pouco entusiasmo

No ultimo domingo (9), as eleições presidenciais francesas ocorreram em clima de apatia, abstenção, falta de debate e de continuidade da crise dos partidos tradicionais. No cenário vemos o estancamento do atual presidente, Macron, o crescimento fragmentado da extrema-direita e a debilidade da esquerda. Através de informe de Julien Anchaing, editor do jornal Révolution Permanente, da mesma rede internacional do Esquerda Diário, contamos um pouco da situação no país e do posicionamento dos trotskistas frente a ela.

terça-feira 12 de abril de 2022 | Edição do dia

O cenário prévio às eleições presidenciais na França colocam em perspectiva a possibilidade do próximo mandato ser marcado por crises e agitação social.

Uma eleição monótona, marcada pela abstenção.

Há cinco anos, Emmanuel Macron era eleito presidente da França ancorado na grande divisão e debilitamento dos partidos políticos no país, e após a sucessiva eliminação de seus principais adversários, enfraquecidos por repetidos escândalos. O jornal Le Monde chegou a comparar a campanha com um filme de Tarantino. Agora, em 2022, a monotonia se impõe com uma "não campanha" sem precedentes.

O site Médiapart comenta que a campanha atual é "estranha", em que "nada acontece", [...] "um encefalograma plano", que leva a "não seguir nada" "com surpresa, decepção, desilusão e um toque de fatalismo". O desinteresse é tanto que os canais de televisão cancelaram a cobertura das eleições presidenciais na noite do primeiro turno.

Como explicar tal dinâmica? Em primeiro lugar, conjunturalmente, a opção de Emmanuel Macron de rejeitar qualquer debate, e os formatos de programas bizarros que essa situação gerou, não ajudaram a criar uma dinâmica em torno da campanha, que pode parecer "jogada de antemão" do atual presidente. Essa situação é, por si só, indissociável da guerra na Ucrânia, que colidiu com o lançamento da campanha e ofereceu uma posição privilegiada ao presidente, após dois anos marcados pela crise sanitária. Por fim, só aumentou o abismo entre as preocupações de grande parte da população, sobretudo quanto à inflação, e os temas racistas e xenófobos e a discussão sobre segurança que todo um setor dos candidatos quis colocar no centro da campanha.

No entanto, a crise tem raízes mais profundas, em particular na ruptura nos últimos anos do bipartidarismo que durante décadas aplicou políticas neoliberais alternando governos conservadores (sobretudo Republicanos) e social-democratas (Partido Socialista), o que resultou em uma crise de regime não resolvida. Este é o critério para entender as tendências eleitorais na França, assim como o nível esperado de abstenção.

2022: Macron lidera, a extrema direita tem mais de 30% e na esquerda, Mélenchon à frente

A política antissocial do ex-presidente François Hollande (PS) e o surgimento de Emmanuel Macron no cenário político nacional a partir de 2016 precipitaram o colapso do bipartidarismo. Isso segue sendo surpreendente nas eleições. Apesar de manter suas posições durante as eleições regionais, o Partido Socialista (PS) parece estar em fase terminal com sua candidata presidencial Anne Hidalgo, obtendo entre 1% e 3% das intenções de voto nas pesquisas, mostrando seu declínio desde a última vez que o partido governou. Do lado republicano, a esperança suscitada pela unificação da direita tradicional pela candidatura de Valérie Pécresse rapidamente desmoronou, e já perdeu toda a esperança de chegar ao segundo turno das eleições presidenciais. O debate sobre seu futuro político agita as duas forças que aguardam o resultado de 10 de abril de 2022.

Na ausência de um concorrente credível à direita, Emmanuel Macron lidera a corrida com quase 30% das intenções de voto. O atual presidente soube usar a guerra na Ucrânia e a crise do coronavírus para se colocar no centro do jogo, tentando impedir o debate e ditar a agenda política. Como aponta o economista e sociólogo Stefano Palombarini, após ser eleito por um "bloco burguês" que reúne "as classes burguesas anteriormente ligadas à direita e à esquerda" e "parte das classes médias seduzidas pelas promessas de uma avanço possível graças à perspectiva de “modernização” do capitalismo francês”, hoje a base social de Macron foi recomposta, tornando-se um “bloco de direita”, marcada por sua estreiteza e pela incapacidade do projeto de "guerra social" de Macron para aglutinar setores da classe trabalhadora.

Comparado a Emmanuel Macron, o percentual que a extrema direita poderia obter é outro dos marcadores centrais da eleição, com um terço das intenções de voto acumuladas para seus três candidatos. Estes últimos aproveitam a virada autoritária, securitária e racista iniciada pelo governo desde o verão de 2020. Isso constitui uma resposta à dinâmica da luta de classes, expressa no movimento dos Coletes Amarelos (2018) ou nas mobilizações antirracistas de junho de 2020, e tem um caráter preventivo, com as classes dominantes preparando suas tropas para os futuros movimentos sociais.

Neste contexto reacionário, a candidata do Agrupamento Nacional [Rassemblement National], Marine Le Pen (filha do fundador do grupo de extrema direita Frente Nacional), aparece como a rival favorita de Macron com cerca de 21% das intenções de voto. Se o fenômeno da candidatura do jornalista racista e islamofóbico Eric Zemmour (candidato do Reconquista) capturou parte de eleitorado de Le Pen, aproveitando a crise aberta após as eleições regionais e as contradições da tentativa de Le Pen de "desdemonizar" seu partido (buscando separá-lo do passado de extrema direita), a escalada racista de Zemmour contribuiu para suavizar a imagem de Marine Le Pen.

Zemmour manteve uma estratégia de direcionar seu discurso reacionário para as classes populares, insistindo nas últimas semanas na questão do “poder de compra”, com essa demagogia ele procura esconder a verdadeira identidade de seu projeto, de cunho neoliberal. Neste último plano, Marine Le Pen tem buscado "credibilidade" multiplicando sinais aos empresários: compromissos no pagamento da dívida pública, abandono da saída do euro e até, mais recentemente, aposentadoria aos 60 anos.

Finalmente, do lado da esquerda institucional e da extrema-esquerda, a debilidade geral (ao redor de 27% das intenções de votos juntas) atesta uma incapacidade de dialogar com as demandas políticas mais radicais que se expressam no país ao menos desde 2017, de maneira ininterrupta. O movimento dos Coletes Amarelos, a greve contra a reforma da previdência (2019-2020) e as mobilizações feministas, antirracistas e ambientalistas não encontram nenhuma solução política real. Os projetos mais distantes dessas aspirações - o neoliberalismo verde da Europa Ecologia / Os Verdes (EELV) e a candidatura chauvinista do Partido Comunista (PCF) que acompanhou a virada reacionária do regime, bem como a tentativa fracassada de unir a esquerda em torno da ex-ministra da justiça Christiane Taubira - acabaram falindo. Por sua vez, os dois candidatos de extrema-esquerda que conseguiram ultrapassar a barreira anti democrática para conseguir se candidatar às presidenciais sofrem de rotineirismo e da impossibilidade de se expressarem nos debates.

Na esquerda, a divisão das diferentes forças políticas, com quatro candidaturas (em comparação com duas de 2017), e a ofensiva reacionária, alimenta um chamado por um voto "eficaz" a favor de Jean-Luc Mélenchon, capitalizando apenas parcialmente essa dinâmica. O candidato da União Popular está com entre 15 e 17% das intenções de voto, permanecendo abaixo do que tinha em 2017 nas pesquisas para o mesmo período, embora o limite para ir ao 2º turno seja menor este ano com a candidatura de Zemmour. Neste contexto, os que apoiam a candidatura de Mélenchon querem acreditar que uma certa dinâmica de “voto útil” pode vingar. No entanto, o candidato da União Popular pode sofrer com o fato de que uma tendência de “voto útil” beneficia seus oponentes de direita (notadamente Marine Le Pen) e que, apesar de seu desejo de mobilizar eleitoralmente as classes trabalhadoras e a juventude, deve se preocupar centralmente com a última característica da eleição: um nível de abstenção que promete ser inédito.

Uma abstenção que alimenta o medo das classes dominantes da luta de classes que se aproxima

A 10 dias das eleições o pesquisador Brice Teinturier (Ipsos) imaginava dois cenários. “Ou nos últimos dez dias, como em 2017, a mobilização aumenta e podemos esperar nesse momento uma abstenção contida, diremos 25%, ou realmente estamos em outro padrão, e aí podemos estar na zona dos 28% ou 30% de abstenção". Com o precedente das recentes eleições regionais em que o nível de abstenção foi subestimado, as sondagens alertam para interpretações demasiado precipitadas e evitam dar declarações definitivas, mas a maioria concorda em falar de uma abstenção potencialmente histórica.

Isso afeta primeiro a juventude e os trabalhadores, beneficiando Macron e desfavorecendo a esquerda e a extrema direita. Como aponta o sociólogo Vincent Tiberj, a abstenção “vai beneficiar o candidato que apelar para os eleitores mais consistentes. (…) Então seria bastante favorável a Valérie Pécresse, depois a Éric Zemmour e, provavelmente, a Emmanuel Macron. Este último, aliás, tem a grande vantagem de atrair aquela parte da França que vai bem, que tem todos os motivos para ir votar”.

No contexto desta "estranha" eleição presidencial, alguns não escondem alguma preocupação com esta perspectiva. Há algumas semanas, o presidente do Senado e figura histórica dos republicanos, Gérard Larcher, alertou para o risco de "crise de legitimidade" que um segundo mandato de Macron poderia enfrentar, caso ele "pulasse" as eleições presidenciais. A cinco semanas e meia do prazo para o primeiro turno, ele alertava que "se não houver debate, se não houver informe, não há projeto, imagine o Presidente da República sendo re-eleito, porque estará numa situação de omissão do debate democrático, com risco de legitimidade durante o mandato”.

Cécile Cornudet, colunista do jornal de negócios Les Echos comenta “é em momentos de indiferença política que acidentes democráticos podem acontecer. É na rua que a raiva se instala quando a política deixa de ser reguladora”. Enquanto Marc Lazar aponta para o fato de que “[Macron é] odiado pela esquerda, pela direita e pelas classes populares”. Se ele for reeleito sem um debate real sobre questões econômicas e sociais, a situação pós-eleitoral poderia ser "muito problemática", um perigo no qual insiste o Financial Times.

Como o colapso dos partidos do regime e o enfraquecimento dos órgãos intermediários, a abstenção é de fato a expressão de uma crise de hegemonia e da capacidade do regime de organizar o consentimento. Seu corolário é a radicalidade das lutas e a dificuldade de controlá-las. Com a guerra na Ucrânia, o aumento dos preços e as reformas exigidas pelas classes dominantes, começando pelas aposentadorias, esses elementos anunciam um futuro potencialmente explosivo. Se as eleições estão marcadas pelo predomínio de forças políticas reacionárias na arena política, a rua poderá recuperar rapidamente sua força. Esta questão é largamente minimizada, enquanto à esquerda prevalece a política do "mal menor" e do "voto útil".

Se Mélenchon parece de longe o menos pior entre as candidaturas com mais de 10% de intenções de voto, seu projeto se apoia em uma vontade de conciliação com as patronais e do regime reconduzido aos mesmos limites profundos que experiências do mesmo tipo. Apesar de propor medidas que se chocam ainda que de forma extremamente limitada (como a taxação das heranças de mais de 12 milhões de euros), Mélenchon estende a mão aos capitalistas. Ele apresenta assim seu programa keynesiano como a melhor garantia de uma economia florescente, abstendo-se de atacar a propriedade privada do grande capital que estrutura a economia, e recusando um certo número de promessas centrais como as 32 horas, ao acordo dos patrões. “Meu programa não prevê o confisco de todo o capital. Defendo uma sociedade de economia mista, com público e privado”, insistiu em tranquilizar os capitalistas recentemente.

Dada a vitalidade potencial da luta de classes que pode marcar os próximos cinco anos, é urgente preparar as lutas que estão por vir e construir um bloco de resistência capaz de enfrentar a situação que se avizinha, seja qual for o resultado das eleições. Isso implica a independência do regime, a recusa absoluta de participar da menor tentativa de uma frente republicana de apoio a Macron, mas também uma batalha contra as ilusões colocadas em uma vitória eleitoral que substitui a auto-organização e as lutas por vir. Nesse sentido, convocamos a votar criticamente nas candidaturas de Philippe Poutou (NPA) ou Nathalie Arthaud (Lutte Ouvrière) que, apesar de seus limites, contêm uma vontade de transformação social de baixo para cima e uma luta intransigente contra os patrões

Por essas razões que os companheiros do Revolução Permanente, organização irmã do Movimento Revolucionário de Trabalhadores, chamam esse voto de independência de classe, frente aos chamados por apoio a Jean-Luc Mélenchon, defendendo a urgência de preparar as mobilizações contra as ofensivas e ataques que virão pós eleições. A campanha política pelo voto útil em Mélenchon promove ilusões profundas na possibilidade de reformar um sistema em crise ou de combater o "fascismo" nas urnas. É evidentemente compreensível a escolha daqueles que votarão em Mélenchon na esperança de evitar um segundo turno entre Macron e Le Pen. Mas há de notar que essa posição é um impasse e que, mesmo que vitoriosa, ela nos desarma para os enfrentamentos do próximo período

Nathalie Arthaud e Philippe Poutou são respectivamente uma professora e um trabalhador desempregado. Estes dois candidatos têm em comum um programa e uma perspectiva de independência de classe. A estratégia que defendem coloca no centro a mobilização e a auto-organização de nosso campo social e, portanto, está em oposição às ilusões colocadas na reforma de um sistema capitalista em crise. Seus respectivos programas incluem a necessidade de expropriação dos setores estratégicos da economia sob o controle dos trabalhadores, aumentos salariais substanciais, distribuição do tempo de trabalho entre todos, liberdade de circulação e estabelecimento, e a retirada das tropas francesas da África. Eles apontam para a necessidade de recuperar a riqueza produzida por nosso trabalho e "roubada" pelos patrões, e de pôr um fim ao sistema capitalista.

No entanto, este apoio não pode ser isento de críticas aos dois candidatos, cujas limitações levaram o Révolution Permanente a apoiar a candidatura de Anasse Kazib como uma ferramenta para renovar a extrema esquerda. Durante toda a eleição, Nathalie Arthaud denunciou a "burguesia" e pediu "a construção de uma economia sem chefes, sem exploração, sem classes sociais". Diante da guerra na Ucrânia, ela denunciou a agressão russa, mas também a responsabilidade da OTAN. Compartilhamos esta delimitação com as grandes empresas e o imperialismo ocidental, bem como o objetivo de uma "tomada do poder pelos trabalhadores". No entanto, temos importantes diferenças de opinião sobre a estratégia levada a cabo por Lutte Ouvrière, e sua incapacidade de articular a centralidade estratégica da classe trabalhadora com a luta contra todas as opressões. Isto foi expresso na campanha no terreno da luta contra a islamofobia, com Nathalie Arthaud recusando-se a dar um apoio franco aos Hijabeus em sua luta contra uma lei que ataca seus direitos, na continuidade de posições problemáticas no terreno do anti-racismo.

Mais aberto à luta contra a opressão, Philippe Poutou levou um "projeto de ruptura com o capitalismo" para a campanha, convidando atores de lutas locais para suas atividades. Entretanto, não compartilhamos a posição defendida em relação à guerra na Ucrânia e o forte e repetido apoio às sanções contra a Rússia. Acima de tudo, o tom geral "cético" de sua campanha foi acompanhado de uma imprecisão estratégica. Isto está bem incorporado no convite para discutir um "Plano B" para a reconstrução de "uma esquerda radical, uma esquerda ligada às lutas, uma esquerda anticapitalista, internacionalista, feminista, anticolonialista" com Mélenchon, e também com "a esquerda institucional ou liberal".

Apesar destas limitações, as duas candidaturas permitem sublinhar a necessidade de preparar futuras mobilizações com plena independência de classe. Nosso apelo a uma votação crítica está de acordo com esta perspectiva e com a observação de que é necessário não só construir uma esquerda à altura das tarefas da situação e do radicalismo de uma nova geração de trabalhadores, trabalhando por construir um bloco de resistência vinda de baixo, que procure unir setores em luta para se defender e contra-atacar em face das próximas ofensivas na continuidade das mobilizações dos próximos anos.




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