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CINEMA | O Trem de Lênin

domingo 4 de janeiro de 2015 | 21:36

Em fevereiro de 1917 a situação de um dos maiores impérios do mundo, a Rússia tzarista, chegava a um ponto insustentável. A população miserável sofria todo tipo de privação e exploração para levar adiante, desde 1914, a empreitada da nobreza e da burguesia russas na Primeira Guerra Mundial. O exército, completamente sem condições de enfrentar a Alemanha no front, muitas vezes mandava seus soldados para a batalha sem botas, sem armas, sem condição nenhuma de combater. Na retaguarda, a fome se fazia sentir, bem como a privação de todo tipo de bens elementares de consumo.

Os partidos socialistas russos, sendo os mais expressivos os partidos Menchevique, Bolchevique e Socialista Revolucionário (SR) encontravam-se em um estado de completa desorganização, com seus principais dirigentes exilados pela implacável perseguição do Estado policial do Tzar. Internacionalmente, a situação da principal organização dos trabalhadores, a II Internacional, na qual se organizavam os partidos Social-Democratas de diversos países, era ainda mais lastimável. Sucumbindo ao furor patriótico das distintas burguesias nacionais, a maioria esmagadora dos social-democratas apoiava a guerra e procurava argumentos absurdos para dizer que o socialismo apenas se beneficiaria se seu próprio país (ou melhor, sua burguesia) saísse triunfante da guerra. Com isso, davam seu aval para a maior carnificina promovida pelo imperialismo até então, com proletários de diversos países matando uns aos outros para defender a ganância da classe dominante. Os poucos resistentes a essa maré patriótica que varreu os partidos socialistas se reuniram em 1915 em Zimmervald, na Suíça, com 37 delegados, entre os quais Leon Trotsky, Vladimir Ilitch Lênin, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht para debater o programa dos socialistas contra a guerra e elaborar um manifesto que os orientaria. Lênin, como a ala esquerda, defendeu a luta pela transformação da guerra imperialista em guerra civil, transformando o descontentamento dos exércitos em combustível para a luta contra sua própria burguesia nacional. Seu programa se confirmaria alguns anos mais tarde.

Em fevereiro de 1917 a guerra seguia a todo vapor, e Lênin ainda se encontrava exilado em Zurique, na Suíça, quando, de forma espontânea, durante as comemorações do 8 de março (dia internacional de luta das mulheres, que, de acordo com o calendário adotado na Rússia de então, ocorria no dia 25 de fevereiro), as operárias de Petrogrado, capital do Império Russo, saem às ruas em uma enorme greve, que logo arrasta os operários homens. Era o início de um levante que, em poucos dias, derrubaria o secular Império Russo. Em seu lugar, se estabeleceria rapidamente uma disputa de poder que se prolongaria de fevereiro a outubro: de um lado, a burguesia organizava-se em um Governo Provisório, do qual participaram também representantes da nobreza e dos chamados “socialistas moderados” (mencheviques, SRs e outros partidos); de outro, o poder operário e dos soldados, organizado nos Sovietes (conselhos), e dirigido pelos partidos socialistas.

Contudo, essa divisão em um duplo poder era obscurecida pela política conciliadora dos partidos dirigentes dos Sovietes de fevereiro, os mesmos socialistas moderados que defendiam que a Rússia passava por uma revolução burguesa e que, portanto, queriam passar o poder às mãos dessa classe e, assim, dissolver os Sovietes quando fosse possível. O desorientado Comitê Central do partido bolchevique russo, desprovido de seus principais dirigentes exilados, seguia essa política conciliadora, oferecendo “apoio crítico” ao governo provisório e defendendo a manutenção da Rússia na guerra. Com o retorno dos primeiros exilados, Stalin assume a direção do jornal bolchevique e aprofunda esse giro direitista, chegando a promover uma aproximação com os mencheviques com o intuito de fundir novamente os partidos em um só, já que a política que imprimia ao bolchevismo praticamente em nada se diferenciava daquela dos mencheviques.

Lênin, em Zurique, fica sabendo de toda essa movimentação à distância. Não há meios para regressar a Rússia, e procura em vão influenciar a política do partido com os documentos que ficaram conhecidos como “cartas de longe”, nos quais ele propõe uma política diametralmente oposta a de Stalin: denúncia do governo provisório como um governo contra-revolucionário; fim da guerra imperialista; que os bolcheviques levantem a consigna de “todo poder aos sovietes”. Paralelamente, procura modos de voltar à Rússia. Enfim, surge um modo: o governo alemão, influenciado pelo socialista russo renegado que havia se tornado um burguês, Parvus, resolve oferecer a Lênin transporte para a Rússia. Seu plano era que o dirigente revolucionário desorganizasse o exército tzarista com sua propaganda revolucionária, ajudando o triunfo alemão. Lênin irá atravessar o território alemão em um trem fornecido pelo governo do Kaiser, o imperador alemão.

“Il treno di Lenin” (O trem de Lênin) é uma série italiana de 1988 em dois episódios feitos para televisão, que conta a história da travessia de Lênin para Petrogrado.dentro do trem alemão. Ben Kingsley, em uma excelente interpretação do revolucionário russo, revive as discussões que o dirigente bolchevique teve com aliados e adversários para concretizar o acordo. Com a perspicácia que lhe era característica, Lênin antecipa as calúnias e difamações que serão feitas contra ele graças ao acordo, e procura contorná-las ao máximo.

O seriado é bastante interessante, e escapa à maioria das deturpações absurdas que a indústria cultural – propriedade privada da classe a que Lênin dedicou a vida a destruir – costuma fazer com o intuito de distorcer e desacreditar o dirigente e, por essa vida, toda a perspectiva revolucionária. Retratado como um homem de grande inteligência e senso prático, como de fato foi, Lênin não aparece nem como um inescrupuloso e sanguinário candidato a ditador (imagem mais comum nas produções culturais de massa feitas pelo grande capital), nem tampouco como um peão nas mãos dos alemães. Essa imagem, aliás, de traidor, de “agente do imperialismo alemão”, conforme Lênin já previa, foi a que os mencheviques e SRs tentaram lhe atribuir recorrentemente. Particularmente no mês de julho de 1917, após o episódio que ficou conhecido como “jornadas de julho” com um levante espontâneo dos operários de Petrogrado e marinheiros de Kronstadt contra o governo provisório, o episódio da travessia do Lênin tornou-se fruto de muitas calúnias para tentar desacreditar os bolcheviques perante as massas. Mas, como diz o Lênin na boca de Kingsley, esses sempre farão de tudo para chamá-lo de traidor, não importa; o que importa é o que os operários irão pensar. E esses confiavam cada vez mais em Lênin diante da política traidora de Mencheviques e SRs.

Ainda que seja no geral uma obra interessante, O Trem de Lênin não poderia deixar de trazer algumas debilidades tão características dos filmes à moda de Hollywood. Entre esses, destaca-se o grande peso atribuído a um “conflito amoroso” entre Lênin e Inês Armand, uma bolchevique que retorna junto com a comitiva de Lênin e a respeito da qual existiam boatos de ser “a amante de Lênin”. No retrato traçado pelo filme, salta aos olhos a injustiça cometida com a figura de Nadiejda Kurpskaia, companheira de Lênin por toda a vida e que cumpriu um destacado e fundamental papel na organização do partido durante o período do exílio. No filme, Kruspskaia aparece quase sempre como uma mera sombra de Lênin, uma mulher resignada que concorda acriticamente com o marido e amarga em silêncio seu ciúmes em relação a Inês. Nadiejda, em que pese o triste destino que teve como capituladora do stalinismo nas últimas décadas de vida, sem dúvida mereceria um retrato mais digno da grande revolucionária que foi nestes anos.

Enfim, esse é apenas um de muitos aspectos que podemos levantar sobre os defeitos do filme. Eles, no entanto, diferente do que ocorre em outras obras muito mais famosas, como o filme ganhador de oscars baseado na vida do revolucionário John Reed, “Reds”, não fazem uma completa deturpação da ideologia revolucionária ou uma mera peça de propaganda burguesa anticomunista.

“O trem de Lenin” merece ser assistido e contribui para os revolucionários de hoje pensarem como as situações extremas da revolução trazem situações difíceis, que exigem uma análise dialética e não-dogmática da realidade. Tivesse Lênin se recusado a subir no trem alemão por um “purismo revolucionário”, como a princípio fez Martov apenas para tomar um outro trem alemão mais tarde, talvez a revolução russa tivesse outra história e não representasse a primeira vitória de um Estado Operário e o maior exemplo para os trabalhadores do mundo até hoje.




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