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"O Future-se quer tornar o Ensino Superior produto de ’luxo’" - Entrevista com Lalo Watanabe

"O Future-se quer tornar o Ensino Superior produto de ’luxo’" - Entrevista com Lalo Watanabe

Nesta entrevista, Lalo Watanabe Minto, professor da Faculdade de Educação da Unicamp, fala um pouco sobre a ofensiva privatizante à educação, o future-se, os fundos patrimoniais e sobre a relação com a crise capitalista.

Ideias de Esquerda: O programa “Future-se” de Weintraub é parte central do projeto de privatização da educação do governo Bolsonaro. Qual sua visão sobre o impacto das formas de financiamento previstas no programa na produção científica das universidades brasileiras?

Lalo Watanabe: No pior dos sentidos, o Future-se é um programa ambicioso de mudanças, muitas das quais são aprofundamentos e, não exatamente, inovações. Em termos de financiamento à pesquisa e à produção científica nas universidades, seu grande impacto advém da tentativa de promover uma recomposição dos investimentos, retirando uma parcela maior daquilo que é proveniente do fundo público e ampliando a participação dos recursos extra orçamentários, notadamente os de origem privada (doações, parcerias, mensalidades de cursos de pós lato sensu e de extensão, consultorias, naming rights e outros). Sobre isto, é importante ressaltar que as empresas privadas praticamente não investem em pesquisa no Brasil. Este é um dado histórico. Quando o fazem, em geral, concentram-se naquele estágio em que a apropriação de conhecimento já está disponível para se tornar “produto”. Por isso, não é exagerado afirmar que a promessa do Future-se representa uma grande ilusão: a da empresa com “preocupação social”. E mais: o que havia de investimento devia-se, em grande parte, às empresas estatais, num período em que existia uma perspectiva de desenvolvimento nacional. Hoje a situação é outra, com a mundialização do capital, os processos de desindustrialização e a subordinação da economia brasileira ao circuito da reprodução “financeirizada”. A relação entre empresa privada e conhecimento científico produzido nas universidades está cada vez mais atrelado a um circuito de fomento e divulgação que é determinado internacionalmente. Nas universidades e agências de fomento, isso leva o nome de “internacionalização” e vem acompanhado dos processos de “inovação”.

Daí advêm outros impactos que não são diretamente no financiamento. O Future-se busca fazer valer e ampliar a lógica já contida em medidas anteriores do governo brasileiro, como o chamado Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação. Nesta legislação flexibilizou-se o modo como o interesse privado se relaciona com as instituições públicas, incluindo aí o seu pessoal e a infraestrutura disponível. Trata-se de uma verdadeira abertura para o controle das atividades-fim das universidades públicas pelo interesse das empresas com maior poder. Projeta-se, em nome de uma maior “articulação” com os interesses do setor produtivo, uma relação em que docentes, pesquisadores, estudantes etc. poderão se aproximar das atividades de interesse empresarial, de modo a usar parte de seu tempo para essa finalidade, ainda que mantendo os regimes de dedicação integral no caso dos servidores.

A consequência possível desse projeto é completar, de vez, a segmentação entre as instituições públicas de ensino superior, mantendo apenas algumas “de elite” ou de “excelência”, enquanto outra parte dedicar-se-ia apenas ao ensino. Ou seja, tornar o ensino superior um produto “de luxo”, disponível apenas para os mais aptos, que competiriam pelas melhores posições no sistema. É uma lógica predatória, admitindo valores que não convêm, na minha opinião, às atividades educacionais.

IdE: A Congregação da Faculdade de Educação barrou uma proposta de convênio com o Instituto Unibanco, com mais de 2/3 dos votos contra. O que esse projeto poderia ter significado e como se deu esse processo?

LW: Prefiro não comentar especificamente sobre o projeto que foi apresentado à FE, haja vista que, não tendo sido aprovado, não temos uma “base real” sobre a qual se poderia analisa-lo. O que se pode afirmar é que, na lógica em que se estabeleceu a proposta, ela está muito sintonizada com as políticas atuais para a educação pública brasileira, de cima a baixo. São as conhecidas formas de parcerias em que se misturam interesses privados – quase sempre mediadas por entidades sem fins lucrativos como ONGs, Institutos etc. – e as instituições e recursos públicos. É bom que se diga, neste caso, que “parceria” não significa necessariamente que ambas as partes se beneficiem. Talvez aí esteja o grande problema, pois como a situação do financiamento público para as atividades-fim de instituições como as universidades é cada vez mais precário e insuficiente, as parcerias acabam sendo vistas e aceitas como uma “alternativa”. O maior perigo, ao meu ver, é não considerar que esse tipo de relação não é apenas de oportunidade em razão da escassez de recursos, mas há uma alteração qualitativa no modo como as instituições operam, bem como nos objetivos a que servem. Quando o financiador de uma pesquisa passa a ser um ente privado, dificilmente não há uma perda de autonomia sobre o que será realizado, para não falar dos resultados dessas atividades. Além disso, boa parte dos “benefícios” dessas parcerias resultam por ser do interesse de apenas alguns grupos, como se produto da capacidade de empreender a busca por recursos extra orçamentários. É uma lógica muito ruim.

IdE: E sobre o Fundo Patrimonial aprovado na última sessão do Conselho Universitário (CONSU) da Unicamp? Ele também não abre espaço para a privatização? Como você vê essa aprovação?

LW: Não acompanhei o caso específico da Unicamp, mas diria, em primeiro lugar, que existe muita desinformação sobre os tais Fundos patrimoniais. Em geral, resultam de comparações e/ou generalizações indevidas com relação a universidades estrangeiras. O grande problema desses fundos é que a “fonte” de recursos que deles se pode retirar provém, quase sempre, do mercado financeiro. São os rendimentos que fornecem recursos e não os fundos em si. Nesse sentido, todo e qualquer fundo está ligado a uma atividade financeira, com finalidade lucrativa, que se utiliza do expediente da especulação para se tornar rentável. Portanto, sim, é uma forma de privatização, mesmo quando a finalidade para a qual se destina esses rendimentos é pública. Mas devemos nos perguntar, também, a razão de se criar tais fundos. Em geral esses fundos têm sido vendidos como uma “solução” para parte dos problemas de financiamento das instituições universitárias; olha-se para o “exemplo” de países como os Estados Unidos, não raro sem fazer as devidas diferenciações para sua ampla heterogeneidade, e imagina-se que aqui basta reproduzir as mesmas ideias. As universidades estadunidenses que têm fundos patrimoniais significativos são instituições pequenas e bastante elitizadas. Há uma história por trás desse surgimento. Ao meu ver, porém, a pergunta mais relevante a ser feita é: devemos atrelar o financiamento de parte das atividades-fim das universidades ao funcionamento (e à rentabilidade) do mercado financeiro? À lógica da acumulação financeira, que, por sua vez, está diretamente ligada aos ajustes e às reformas que retiram, justamente, recursos públicos de atividades como a educação superior pública?

IdE: Por que essa ofensiva de ensino privatizante está ganhando tanta força nesse momento de crise capitalista? No que isso se liga com a Reforma da Previdência e a MP 881?

LW: A ofensiva privatizante tem várias facetas, conectadas entre si pelo objetivo maior de captura do fundo público como plataforma de acumulação por parte do capital. Por um lado, vemos diversos setores de atividades antes não diretamente vinculadas à acumulação serem cada vez mais passíveis de “lucratividade” (saúde, educação, previdência social etc.). Para isso é fundamental que o setor público seja precarizado e “tirado” do caminho dos serviços privados; de outro lado, temos uma pressão sistemática do capital sobre o Estado para que, fazendo reformas, torne maior esse fluxo de recursos públicos (portanto, dinheiro proveniente da classe trabalhadora) para a esfera do capital. Uma reforma como a da Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um corte nos gastos públicos com as políticas sociais, é um claro exemplo disso. Temos, ainda, uma outra dimensão desse processo, que é a necessidade que o capital tem de ampliar as taxas e formas de extração de valor, ou seja, de exploração da força de trabalho. Isso é feito, sobretudo, com a flexibilização de certas regras e de direitos (reforma trabalhista, por exemplo), o estímulo ao empreendedorismo (âmbito daquilo que o governo chama de “liberdade econômica”), entre outras, mecanismos pelos quais se garante uma ampliação maior de geração de valor, necessária para movimentar a roda da acumulação na esfera financeira, uma das expressões da crise estrutural do capital. Deve-se, contudo, apontar para uma contradição de fundo: a privatização do setor educacional mantém uma relação ambígua com esse processo todo. Por um lado, ela se alimenta com os cortes, a precarização, enfim, a “retirada” do Estado no financiamento das atividades; por outro lado, estamos numa sociedade profundamente desigual, em que a educação privada tem no suporte do fundo público uma das suas principais garantias de rentabilidade. Então, é preciso não se enganar: ao setor privado interessa que o Estado deixe de gastar com as políticas sociais, mas sobretudo naquelas mantidas pelo próprio Estado e suas instituições. Não pode ser confundida com uma postura anti-estatal.

IdE: Nesse sentido, o que seria uma alternativa a esse projeto imposto por Bolsonaro?

LW: Uma alternativa a esse projeto mobilizado pelo governo Bolsonaro envolve um conjunto de iniciativas. Não consigo imaginar uma única forma de resistência e tampouco me satisfaz tratar delas apenas em sentido genérico. A defesa da educação pública é uma bandeira essencial e de fundo, mas se não vier acompanhada da especificação de o que significa defender uma educação com caráter público nessas condições, pode se tornar uma bandeira facilmente acomodada ao status quo. Lutar contra toda uma lógica sistêmica que vem sequestrando recursos públicos da educação, privatizando e impondo uma gestão privatista nas instituições públicas requer um combate a toda essa estrutura acima mencionada. Creio que o mais importante é saber encontrar as formas de resistência que não são apenas do tipo “tudo ou nada”, isto é, que saibam operar no curto, médio e longo prazos. No curtíssimo prazo, só vejo como saída a luta de resistência, para evitar que mais ataques sejam feitos e que possam deixar marcas duradouras no campo da educação pública. No médio e longo prazos, é essencial construir projetos alternativos.

IdE: Qual papel professores, estudantes e trabalhadores das universidades, e da educação em geral, podem cumprir?

LW: Não tenho nenhuma pretensão de fazer disso algo “prescritivo”, mas penso que o papel que nós poderíamos cumprir no campo da educação é antes o de compreender e promover formas de compreensão do que está ocorrendo. Somos poucos e não temos condições de cumprir todas as tarefas isoladamente. Mas nem esse exercício de crítica ao real existente tem sido feito a contento. A forma de organização da educação contemporânea faz disso um objetivo bastante inatingível. Na universidade pública, as práticas privatizantes já se internalizaram a tal ponto que boa parte da energia intelectual que se tem é gasta para “justificar” que nem tudo o que está ocorrendo é tão grave; que é preciso “ponderar” as coisas. É algo que tenho chamado, emprestando um termo que ficou conhecido depois de 2016, de uma espécie de “delírio” de que as coisas vão voltar ao normal. Muitos apostam que é isso que está ocorrendo: apenas uma fase ruim, difícil, mas que voltaremos aos tempos áureos. Vejo aí dois grandes problemas: de um lado, essa ilusão pode ser relativa aos marcos da Constituição de 1988 e a possibilidade, ainda hoje, de sua plena realização; de outro lado, é bem pior: a ilusão de um retorno ao período mais recente, dos governos ditos democrático-populares. Parece-me que ambas expressam formas de incompreensão do que está a ocorrer. Do ponto de vista intelectual e da produção de conhecimentos, penso que nossa função é contribuir para que essas análises sejam feitas, elucidando o problema de fundo que temos vivenciado na educação. Politicamente, contudo, não se pode sentar e “esperar” que isso ocorra. As ações práticas devem ser encaminhadas simultaneamente e, nesse aspecto, ao meu ver continua sendo essencial denunciar e combater as formas de privatização da educação. A defesa da gratuidade irrestrita de todas as atividades da educação pública é fundamental, assim como evitar que as parcerias com o setor privado, seja qual for o seu cariz, sejam vendidas como soluções mágicas. Mencionei há pouco o mecanismo do endividamento público que, por sua vez, subordina o financiamento das políticas sociais à dinâmica do mercado financeiro. Enfim, a lista é longa, mas acho que os caminhos passam por aí. Quem estiver se apresentando como o portador do caminho correto a seguir, ao meu ver, estará apenas reproduzindo erros do passado, tanto o mais distante como aquele nem tanto assim.


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