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Nise da Silveira, a psiquiatra que não apertou

Mafê Macêdo

Victor Zorzetto

Nise da Silveira, a psiquiatra que não apertou

Mafê Macêdo

Victor Zorzetto

“A senhora vai aprender as novas técnicas de tratamento. Vamos começar pelo eletrochoque” O psiquiatra apertou o botão e um jovem paciente entrou em convulsão. A expressão de terror foi se aprofundando no rosto dele, até que seu olhar ficasse parado. Vítreo. Vazio de tudo. Antes que ele pudesse se recuperar, foi levado para a enfermaria. Logo trouxeram outro paciente para outra aplicação de choque. O psiquiatra se virou para a senhora a quem pretendia ensinar e disse:
“Aperte o botão!”
Ao que Nise respondeu:
“Não aperto!”

Fevereiro se despede e no bojo das memórias carnavalescas queremos ceder espaço ao legado deixado pela grande Nise da Silveira, psiquiatra contrária a qualquer técnica violenta que fosse aplicada a pessoas em sofrimento psíquico e defensora de tratamentos mediados pelo contato e cuidado humano, principalmente através da arte. Seu legado, abordado de modo brilhante, ganhou espaço no carnaval de 2024 através da escola de samba Arranco do Engenho de Dentro, que não só prestou homenagem à médica, mas também jogou luz à temática da Luta Antimanicomial.

Nascida em Maceió (AL) no dia 15 de fevereiro de 1905, Nise da Silveira não foi somente uma das primeiras mulheres no Brasil a obter um diploma de medicina, mas também uma ousada psiquiatra que na década de 1940 disse com toda segurança um forte "não" aos métodos brutais julgados como os "mais eficientes" de tratamento psiquiátrico na época.

Concluiu seus estudos na Faculdade de Medicina da Bahia em 1931. Especialista em psiquiatria atuou no Hospital da Praia Vermelha no Rio de Janeiro, sendo essa a primeira instituição psiquiátrica do país. Em 1936, associada aos ideais comunistas é acusada de atividade conspirativa e presa em pleno Estado Novo. Somente em 1944 volta a vida médica e retorna ao serviço público carioca, mesma época em que se torna responsável pela STO - Seção de Terapia Ocupacional - no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II no Engenho de Dentro (atual Instituto Municipal de Saúde Nise da Silveira).

Nadando contra a corrente dos eletrochoques e o picador de gelo da lobotomia, Nise questionava com veemência a utilização desses métodos e dizia não acreditar na violência como tratamento. É sua postura inflexível frente a tais atrocidades que a faz ser transferida para o setor de terapia ocupacional, setor esse pouco valorizado até então, não levado a sério e deixado a cargo dos enfermeiros. Nise se diferencia não somente por discordar de seus colegas de trabalho nos procedimentos médicos - aliás, todos homens - mas pela forma humana com a qual ela tratava seus pacientes no centro psiquiátrico, ou como ela mesma dizia "clientes", os chamando pelo nome, tratando com dignidade e paciência.

Entre os anos de 1946 e 1951, por sugestão de Almir Mavignier, artista plástico e também funcionário na área de recreação do centro psiquiátrico, Nise aposta na oferta de atividades ligadas à prática artística como pintura e modelagem. Foi essa aposta que conferiu visibilidade e reconhecimento ao seu trabalho, com importantes resultados a partir de uma humanização da atividade psiquiátrica. Suas dinâmicas no setor de terapia ocupacional, agora convertido em um ateliê, eram intuitivas e livres de rigor técnico. Sem induzir ou apresentar qualquer repertório artístico externo à subjetividade dos pacientes, ela desenvolve um método de terapia ocupacional que possibilitava a expressão não verbal de experiências dos mesmos.

Longe de uma lógica meramente racionalizada, o progresso não estava apenas no virtuosismo dos trabalhos desenvolvidos pelos internos, que para Nise tinham uma qualidade estética análoga à de artistas socialmente reconhecidos, mas na própria qualidade de vida e relação social desses indivíduos que através da criatividade conseguiam se expressar e externar a "configuração" de seu psiquismo. Formas e cores traziam à tona a psique, o processo mental, revelavam até mesmo seus estados. Ainda que proibisse qualquer exploração comercial das obras de seus pacientes, são muitos os nomes que ganharam projeção e foram reivindicados pela crítica de arte, a exemplo: Adelina Gomes (1916-1984), Aurora Cursino (1896-1959), Emygdio de Barros (1895-1986) e Raphael Domingues (1913-1979). Além de mostras nacionais dos trabalhos, duas exposições fora do Brasil foram realizadas e a boa repercussão delas corrobora com a inauguração do Museu das Imagens do Inconsciente, em 1952, localizado no próprio Instituto de Assistência à Saúde Nise da Silveira.

Por sua luta e atuação social, Nise recebe homenagens e é premiada, como a Ordem Nacional do Mérito Educativo de 1993, além de diversos títulos honrosos. Vinte e cinco anos depois de sua morte, com uma criatividade tão particular quanto aquela que rebentava as portas do setor de terapia ocupacional, a escola de samba Arranco do Engenho de Dentro leva a memória do trabalho de Nise da Silveira para a avenida no Carnaval de 2024. Acompanhada do samba-enredo "Nise – Reimaginação da Loucura", do carnavalesco Nícolas Gonçalves, a escola oriunda da mesma região em que se localiza o instituto que leva o nome da homenageada, resgatou o trabalho revolucionário da psiquiatra acerca da loucura e seu tratamento por intermédio da prática artística.

Um aspecto marcante do desfile foi de imediato a comissão de frente. Intitulada "Manicômio Nunca Mais!" essa era desenvolvida por quinze integrantes que em sua coreografia condensaram todo o enredo da escola. Divididos em médicos psiquiatras e pacientes do sistema de saúde mental, sem rodeios a cena denunciava um dos mais cruéis dispositivos adotados na história do tratamento psiquiátrico: a imobilização por meio de camisa de força. Utilizando macas como elementos cênicos, o sofrimento dos pacientes era nítido e estarrecedor, a comissão representava toda a angústia dos pacientes antes da chegada de Nise da Silveira ao antigo Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, logo em seguida representada pela personagem colorida: a transformação no tratamento psiquiátrico a partir do fazer artístico e os pacientes ganhando vida e cores.

Como define Vigotski (2001, p. 316) "A arte introduz cada vez mais a ação da paixão, rompe o equilíbrio interno, modifica a vontade em um sentido novo, formula para a mente e revive para o sentimento aquelas emoções, paixões e vícios que sem ela teriam permanecido em estado indefinido e imóvel". Ela "pronuncia a palavra que estávamos buscando, faz soar a corda que continuava esticada e muda". Nise, com toda sua sensibilidade revolucionária e tendo a arte como sua aposta e instrumento fez “soar cordas” que a ideologia burguesa classificava como mudas.

Na contramão das concepções estigmatizantes, biologizantes e reducionistas que a psiquiatria e a psicologia hegemônica tentam nos oferecer como respostas ao sofrimento humano, nos apoiamos no legado de Nise, que evidencia a potência do cuidado terapêutico quando não está pautado no lucro.

A luta antimanicomial – pelo fim dos hospícios e pelo tratamento em liberdade – em coro e influenciado por Nise, insere a arte e os serviços de "muros abertos" no cuidado em saúde mental. A Rede de Atenção Psicossocial (Raps) que integra o SUS, fruto da Reforma Psiquiátrica no Brasil, confere lugar central à arte. Os médicos, psicólogos e profissionais da área continuaram a atender, mas agora ao lado de monitores artísticos. No lugar dos manicômios, é construída uma rede de atendimento que fornece acompanhamento psicológico, oficinas, abrigamento, distribuição de remédios e internações quando necessárias.

Entretanto, principalmente desde o Golpe de 2016 e com o bolsonarismo o SUS vem sendo desmontado e entregue à iniciativa privada. No governo Lula-Alckimin bloqueios e cortes na saúde continuam a todo o vapor, a política de austeridade, por exemplo, foi renovada com o novo arcabouço fiscal. Além disso, logo em seu início, o governo de frente ampla chegou a criar um Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas, que depois teve que ser destituído pra não se indispor com suas bases; no dia 25 de janeiro foi publicado um Edital de Credenciamento que habilitou 587 Comunidades Terapêuticas para serem financiadas (número que é maior do que os de Caps e Unidades de Acolhimento somados) e mais recentemente com votos do PT, PSB, PP e PDT a criação do Dia Nacional das Comunidades Terapêuticas foi aprovado no senado.

Tudo isso só mostra como as políticas de saúde mental evidenciam que a conciliação de classes fortalece a extrema-direita. Resgatar e reivindicar o legado de Nise é lutar por uma política revolucionária que parta da independência de classe. Pela construção de um mundo repleto de possibilidades de cuidado e de existência que nada tem a ver com o sistema de misérias em que vivemos.


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Mafê Macêdo

Psicóloga e mestranda em Psicologia Social na UFMG

Victor Zorzetto

Artista Visual, professor de SP e militante do Nossa Classe
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