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Narrativas e lutas sociais

Narrar é agir. Organizar enredos, apresentar histórias faladas, escritas e filmadas não é mero exercício de interpretação dos acontecimentos mas uma intervenção ideológica na sociedade de classes. Longe de chover no molhado, refletir sobre as estratégias das narrativas e logo sobre a montagem dos fatos apresentados (sejam eles fictícios ou não) é uma necessidade cultural que torna-se reivindicação no campo político da memória: atualmente o quadro político conservador nos âmbitos nacional e internacional, ameaça apagar (literalmente!) os registros que expressam as lutas e as experiências culturais dos trabalhadores e de inúmeros setores sociais marginalizados. Perante o rincão da selvageria capitalista, é altamente pertinente refletirmos sobre como podemos contribuir com a educação política das massas através das narrativas que contam/registram as lutas sociais.

terça-feira 31 de janeiro de 2017 | Edição do dia

Preocupar-se com a construção de registros que proporcionam uma experiência crítica com a realidade, é uma ferroada teórica que precisa tirar o sossego dos militantes de esquerda que atuam nos âmbitos do jornalismo, da História, da literatura, da pintura e do cinema. É verdade que num mundo estilhaçado como o nosso, as formas tradicionais de narrativa ficam em crise. Será que rola tecer um fio narrativo (num romance, por exemplo) capaz de reconstituir por meio de imagens os fundamentos econômicos dos crimes capitalistas e fazer-se entender perante trabalhadores sem formação política? Um pessimista arrogante cairia de sola, dizendo que seria pura perda de tempo, que ninguém iria entender nada. Mas por que raios outras narrativas adquirem território ideológico com maior facilidade?

É impressionante como as imagens dos evangelhos preservam sua força comunicativa com as massas: registros que datam entre os anos 70 e 100 d.c (lá nos tempos do Império romano, quando a crise do modo de produção escravista ainda estava distante) são narrados a partir das mais variadas motivações políticas e teológicas. Outros exemplos de narrativas? Filmes hollywoodianos passeiam pela Segunda Guerra Mundial (1939-45) e fazem o público arrancar suspiros diante do rosto de um galã que interpreta um capitão americano ou algo assim. Portanto sem levar em conta, na maioria das vezes, o caráter político contestador do cristianismo primitivo ou os interesses políticos imperialistas na Segunda grande guerra, histórias são arrancadas de seu contexto original e logo reproduzidas com sucesso. E por que as narrativas de esquerda não possuem tanto impacto? Existe um argumento baseado na ideia de que embora a produção cultural de esquerda compreenda corretamente as contradições da realidade, seus esforços (diferentemente dos esforços da cultura dominante) não atraem, não se comunicam, seriam de uma chatice total, um porre sem tamanho para a maioria dos trabalhadores. Isto, em parte, é verdade. Em parte porque é preciso também levar em conta que, situadas na arena da luta de classes, as narrativas prescindem de uma realidade material, ou melhor dizendo, pesa sobre a origem dos relatos as forças econômicas/políticas que os financiam.

Se uma produção cultural conservadora é consumida nas escolas, universidades, igrejas e nos meios de comunicação de massa, o sucesso ideológico das narrativas de esquerda dependem, a um só tempo, de dois fatores:

1- A estratégia política capaz de aproximar a narrativa revolucionária dos espaços de convivência dos trabalhadores.

2-A estratégia estética de construir, nestes mesmos espaços, narrativas que despertem a paixão pelas transformações históricas. Já que o conhecimento histórico deve estar destinado ao proletariado, devemos tornar provocativamente atraentes as narrativas que contam por meio de livros, filmes e peças teatrais a história sob o prisma da luta de classes. É sempre muito oportuno exemplificar isso com a escrita de Trotski e o cinema de Eisenstein.

No caso de Trotski lembremo-nos da monumental série de 3 volumes A História da Revolução russa. Cursos e debates sobre esta obra vem a calhar nos 100 anos da Revolução russa: seja pelas questões históricas, magistralmente reconstituídas pelo autor, seja pelo mérito estético de uma obra repleta de imagens arrebatadoras. É notável como na escrita de Trotski a racionalidade dos fatos históricos (pressuposto científico a ser inevitavelmente considerado pelo historiador marxista) coexiste com uma prosa radiante, que remete ao melhor da tradição realista da literatura russa. Já no caso de Eisenstein (cujos filmes também devem ser intensamente vistos neste centenário da Revolução) resplandece (especificamente no seu cinema revolucionário dos anos 20), a História do movimento operário revolucionário russo de acordo com uma narrativa que ainda é inovadora: negando a narrativa linear, Eisenstein apresenta cortes abruptos, choques entre imagens que fazem do cinema instrumento de exposição do movimento dialético (tese, antítese e síntese).

É função dos militantes estudar atentamente as narrativas que capturaram as lutas sociais de ontem: é assim que obtemos material histórico para pensar as narrativas das lutas sociais de hoje.




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