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Nação e Cultura (Parte 2)

Leon Trótski

Nação e Cultura (Parte 2)

Leon Trótski

Segunda parte do texto "Nação e Cultura", extraído do livro A Revolução Traída de Trotski.

A doutrina oficial da cultura muda com os ziguezagues econômicos e as considerações administrativas; mas, em todas as suas variações, mantém um caráter absolutamente categórico. Simultaneamente com a teoria do socialismo em um só país, a da “cultura proletária”, até então em último plano, recebeu a investidura oficial. Os seus adversários sustentavam que a ditadura do proletariado é meramente transitória; que, diferentemente da burguesia, o proletariado não tenciona dominar durante longas épocas históricas; que a tarefa da nova classe dominante na presente geração é, antes de mais, o de assimilar tudo o que há de precioso na cultura burguesa; que quanto mais um proletariado se mantém nessa condição, mais carrega os vestígios da sua sujeição de outrora e menos capaz é de se elevar acima da herança do passado; que as possibilidades de uma nova obra criadora só surgirão, realmente, à medida que o proletariado se incorpore na sociedade socialista. Tudo isto significa que a cultura socialista — e não uma cultura proletária — é chamada a suceder à burguesa.

Discutindo com os teóricos de uma arte proletária, produto de laboratório, o autor destas linhas escreveu: “A cultura se nutre das energias econômicas e são precisos excedentes materiais para que ela cresça, evolua e se clarifique”. A mais feliz solução dos problemas econômicos elementares “não significaria ainda, de modo algum, a vitória completa do socialismo, novo princípio histórico”. O progresso do pensamento científico em bases populares e o desenvolvimento da nova arte atestariam por si só que o grão germinara e que a planta crescera. Sob este aspecto “o desenvolvimento da arte é a mais alta prova da vitalidade e da importância de uma época”. Este ponto de vista, anteriormente admitido, foi imediatamente declarado, em um texto oficial, “demissionista” e ditado pela “descrença” na capacidade criadora do proletariado. Abriu-se o período Stalin-Bukharin, este de há muito se comportava como o arauto da cultura proletária; Stalin nunca tinha pensado nisso. De qualquer modo, ambos concordavam que a marcha do socialismo se faria “a passo de tartaruga” e que o proletariado disporia de dezenas de anos para formar a sua própria cultura. Quanto ao caráter desta, as ideias dos nossos teóricos eram tão confusas como pouco ambiciosas.

Os anos tormentosos do primeiro plano quinquenal subverteram a perspectiva do passo de tartaruga. Desde 1931, o país, na véspera de uma fome cruel, “entrou no socialismo”. Antes que os escritores e os artistas, oficialmente protegidos, tivessem podido criar uma arte proletária, ou pelo menos, as primeiras obras marcantes desta arte, o governo fez saber que o proletariado fora absorvido na sociedade sem classes; faltava-lhe adaptar-se, pelo fato de ainda não ter tido, para criar a sua cultura, um fator indispensável: o tempo. A concepção de ontem foi instantaneamente votada ao esquecimento e pôs-se na ordem do dia a “cultura socialista”, cujo conteúdo já conhecemos.

A criação espiritual necessita de liberdade. A ideia comunista de submeter a natureza à técnica e a esta ao plano para obrigar a matéria a dar ao homem, sem recusas, tudo o que ele necessita e mais até, visa um fim mais elevado: libertaras faculdades criadoras do homem, como jamais fora feito, de todos os entraves e sujeições humilhantes a duros constrangimentos. As relações pessoais, a ciência e a arte não suportarão nenhum plano imposto, nenhuma sombra de obrigação. Em que medida será coletiva ou individual a criação espiritual? Isso dependerá inteiramente dos criadores.

Há ainda outra coisa: o regime transitório. A ditadura exprime a barbárie passada e não a cultura futura; impõe, necessariamente, rudes restrições a todas as atividades, inclusive a espiritual. Desde o princípio que o programa da revolução via na ditadura um mal temporário e se comprometia a eliminar, pouco a pouco, todas as restrições à liberdade, à medida que se consolidasse o novo regime. De qualquer modo, durante os anos mais acesos da guerra civil, os chefes da revolução sentiam que o governo, se podia, inspirando-se em considerações políticas, limitar a liberdade criadora, não podia de modo algum pretender o comando no domínio científico, literário e artístico. Com os seus gostos bastante “conservadores”, Lenin, fazendo prova da maior circunspecção em matéria de arte, invocava, de boa vontade, a sua incompetência. A proteção dada pelo Comissário do Povo para a Instrução Pública, Lunatcharsky, a diversas formas de modernismo, perturbava frequentemente Lenin, mas se limitava a comentários irônicos nas suas conversas particulares e se mantinha longe da ideia de fazer lei baseada nos seus gostos literários. Em 1924, no limiar de uma nova fase, o autor deste livro formulava nestes termos a atitude do Estado face às tendências da arte: “Pondo acima de tudo o critério: pró ou contra a revolução, deixar-lhes no seu próprio terreno uma completa liberdade”.

Enquanto a ditadura teve o apoio das massas e diante de si a perspectiva da revolução mundial, não temia as experiências, as pesquisas, a luta de escolas, porque compreendia que uma nova fase da cultura não se podia preparar fora desta via. Todas as fibras do gigante popular tremiam ainda; ele pensava em alta voz, pela primeira vez, desde há milênios. As melhores e mais jovens forças da arte se enchiam de vida. Foi nestes primeiros anos, ricos de esperança e de audácia, que foram criados os mais preciosos modelos da legislação socialista e também as melhores obras da literatura revolucionária. À mesma época estão ligados também os melhores filmes soviéticos que, apesar da pobreza dos meios técnicos, espantaram o mundo pela frescura e intensidade do realismo.

Na luta contra a oposição no seio do partido, as escolas literárias, uma após outra, foram abafadas. E não se tratava só da própria literatura. A devastação se estendeu a todos os domínios da ideologia, tanto mais energicamente quanto era semi-inconsciente. Os dirigentes atuais consideravam-se, por sua vez, como sendo chamados a controlar politicamente a vida espiritual e a dirigir o seu desenvolvimento. A sua autoridade sem apelo se exerce igualmente nos campos de concentração, na agricultura e na música. O órgão central do partido publica artigos anônimos, bastante semelhantes às ordens de chefes militares, regendo a arquitetura, a literatura, a dramaturgia, o balé, sem falar, naturalmente, das ciências naturais e da História.

A burocracia tem um medo supersticioso de tudo o que não a serve e de tudo o que não compreende. Quando exige uma ligação entre as ciências naturais e a produção, tem razão a certo nível; mas quando ordena aos investigadores pára só se ocuparem de fins imediatos, ameaça secar as fontes mais preciosas da criação, inclusive as descobertas práticas que frequentemente se fazem por vias imprevistas. Instruídos por uma experiência dolorosa, os naturalistas, os matemáticos, os filósofos, os teóricos da arte militar, evitam as grandes generalizações, com receio que um “professor vermelho”, que frequentemente não passa de um arrivista ignorante, lhes oponha brutalmente alguma citação de Lenin ou de Stalin. Em tal caso, – defender o pensamento e a dignidade científicos, é atrair, seguramente, os rigores da repressão.

As ciências sociais são as mais maltratadas. Os economistas, os historiadores, os técnicos de estatística, sem falar dos jornalistas, se preocupam sobretudo em não se colocarem, de modo algum, nem mesmo indiretamente, em contradição com as posições atuais da política oficial. Não se pode tratar da economia soviética, da política interna, ou externa, sem se estar protegido por todos os lados com as banalidades rebuscadas nos discursos do chefe e tendo por objetivo demonstrar que tudo se passa como foi previsto, ou melhor ainda. O conformismo a cem por cento livra de aborrecimentos, mas comporta a sua própria punição: a esterilidade.

Ainda que na URSS o marxismo seja, formalmente, a doutrina oficial, no decorrer dos últimos doze anos não foi publicada uma única obra marxista — tratando de economia, de sociologia, de história ou de filosofia — cuja tradução merecesse atenção. A produção marxista não sai dos limites da compilação escolástica, que nada faz além de repisar as velhas ideias aprovadas e utilizar as mesmas citações segundo as necessidades do momento.

As expensas do Estado são publicados milhões de exemplares e livros e brochuras que não fazem falta a ninguém, fabricados à custa de goma, lisonjas e outros ingredientes pastosos. Os marxistas que poderiam dizer qualquer coisa de útil e de pessoal estão aferrolhados, ou forçados a calar-se. Isto, apesar da evolução das formas sociais pôr a todo o momento problemas grandiosos!

A vida da arte soviética é um catálogo de vítimas. Depois de um artigo do Pravda contra o formalismo, vê nascer entre os pintores, os escritores, os encenadores e até entre os cantores de ópera, uma epidemia de arrependimento. Todos, à porfia, retratam-se dos pecados de ontem, abstendo-se, no entanto, por prudência, de precisar o que é o formalismo. Por fim, as próprias autoridades tiveram de pôr cobro, por meio de uma nova diretriz, a esta torrente de abjurações. As apreciações literárias são revistas e os manuais remodelados em algumas semanas; as ruas mudam de nomes e erguem-se monumentos porque Stalin fez sobre Maiakovski reparo elogioso. A impressão que uma ópera produz nos altos dignatários torna-se uma diretriz para os compositores. Em uma conferência de escritores, o secretário das Juventudes Comunistas declara que “as indicações do camarada Stalin fazem a lei para todos” e é aplaudido, embora alguns tenham o rosto corado de vergonha. E como se quisesse infligir à literatura um supremo ultraje, Stalin, incapaz de redigir corretamente uma frase em russo, é consagrado um clássico do estilo. Este bizantinismo e este reinado policial tem qualquer coisa de profundamente trágico, apesar dos seus aspectos históricos.

A fórmula oficial diz que a cultura deve ser socialista no seu conteúdo e nacional na sua forma. O conteúdo da cultura socialista, porém, só pode ser objeto de hipóteses mais ou menos felizes. A ninguém é dado erigir esta cultura numa base econômica insuficiente. A arte é muito menos suscetível de prever o futuro do que a ciência. Quaisquer que sejam, receitas como “representar a edificação futura”, “mostrar a via do socialismo”, “transformar o homem”, pouco mais sugerem à imaginação do que o preço corrente dos serrotes ou o horário dos trens.

Forma popular da arte e colocação das obras ao alcance de todos são identificadas. “O que não é útil ao povo”, declarava o Pravda “não pode ter valor estético”. Esta velha ideia de narodniki, que põe de lado a educação artística das massas, adquire um caráter tanto mais reacionário quanto mais a burocracia se reserva o direito de decidir de que arte o povo tem ou não tem necessidade; a burocracia publica livros à sua vontade e estabelece a venda obrigatória sem deixar a mínima escolha ao leitor. Finalmente, tudo se reduz, para ela, a que a arte se inspire nos seus interesses e encontre, ao seu serviço, o que a torne atraente para as massas populares. Em vão! Nenhuma literatura resolverá o problema. Os próprios dirigentes são forçados a reconhecer que “nem o primeiro nem o segundo plano quinquenais originaram ainda uma vaga de criação literária mais poderosa do que a nascida da Revolução de Outubro”. O eufemismo está terrivelmente adoçado. Na verdade, apesar de algumas exceções, a época termidoriana entrará na história como a época dos medíocres, dos premiados e dos oportunistas.

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