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"Pergunta meu nome real agora OTÁRIO?" foi a primeira coisa que pensei ao pegar minha certidão de nascimento com meu nome, VIRGÍNIA GUITZEL, oficializado. "O choro é livre" foi quando meu novo RG estava pronto para peitar qualquer transfóbico de plantão que insiste em humilhar e deslegitimar nossas identidades não-cisgêneras. Escrevo novamente, então, porque nosso grito contra toda forma de opressão vai aumentar cada dia mais.

Virgínia GuitzelTravesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC

quinta-feira 19 de maio de 2016 | 08:15

Com a consolidação do golpe institucional do Brasil, há pouco a se comemorar frente a tanta repressão e diversas ameças para retirada de direitos que com muita luta conquistamos. Nós travestis, homens e mulheres trans e demais pessoas não binárias que lutamos pelo direito à nossa existência e identidade de gênero estamos no olho do furacão das iniciativas reacionárias dos ministros da Educação, agora do DEM, e da saúde nas mãos do PP, sem contar a bancada evangélica mais que legitimada para aproveitar com tudo a indefensável patologização que ainda sofremos. Em meio à tudo isso, uma simples e elementar questão de dignidade humana como o direito ao nome tornou-se para mim uma grande conquista, não individual, mas expressão de uma luta coletiva e que significa um passo à frente não apenas para mim, mas por todas nós que vamos seguir lutando por todos nossos direitos.

Quando escrevi sobre meus primeiros passos na construção da identidade de gênero , ou das expectativas quando consegui meus primeiros hormônios, ou ainda quando relatei o primeiro ano de turbulências, crises e da montanha russa das relações afetivas e da hormonização que corre em minhas veias, fui descobrindo na escrita uma força para denunciar os castigos secretos com que o capitalismo e a sociedade cisnormativa nos tentam matar cotidianamente. Para cada pequena vitória, mas tão relevante para nossas vidas, percebi a importância de fazer saltar aos olhos das pessoas cisgêneras a triste realidade que faz o alcançar o direito ao nome, o direito ao corpo - ainda que parcialmente -, ou o direito à voz, transformar radicalmente nossa existência.

Eu, que há quatro anos já sou Virgínia, já sou travesti assumida e militante, não sabia a força que ter meu nome em papéis burocráticos poderia me trazer. Mas antes de chegarmos aí, vale explicar como funciona o processo e a sua completa ausência de coerência no Estado Brasileiro. Há oito meses atrás, finalmente, criei coragem para iniciar um processo judicial para mudar meu nome e gênero nos meus documentos. Fui, numa manhã chuvosa e meio desesperançosa, para a Defensoria Pública de Santo André e aguardei na fila para conseguir uma advogada. Comprovei que não havia como pagar de maneira alguma uma advogada particular e consegui uma vaga. Na semana seguinte estava marcada minha primeira consulta com V., a advogada que me atendeu durante todos esses meses de ansiedade e angústias que estavam por vir.

Lembro-me bem de quando cheguei no seu escritório com os papéis. Era novamente utilizar meu nome de registro para ter acesso a outro fórum público, mas estava convencida de que seria assim para que logo menos nunca mais precisasse voltar a um lugar a que já não pertencia, de um nome que não correspondia e a maioria das pessoas hoje nem poderiam relacioná-lo à mim. V. é alta, loira, muito bonita e extremamente atenciosa. Quando me recebeu e ouviu atentamente as minhas angústias, diferentemente do que pensava, mostrou-se muito animada. Confessou que nunca havia cuidado de um caso similar - curiosamente, no decorrer do processo, quase todos os serviços que procurei repetiram a mesma confissão - mas prontamente me explicou os tramites para o processo. Tive o prazo de 30 dias para apresentar todas as "provas" de que eu sou eu mesma, que vivo como travesti e minha identidade é pública e não correspondente aos nomes oficiais que sobreviviam nos meus documentos. Peguei minhas colunas do Esquerda Diário, meu perfil das redes sociais, meu crachá do trabalho com meu nome social, jornais antigos, algumas certidões de palestras que dei e meu laudo psicológico, que graças à minha querida psicologa, não atestava "uma doença mental", mas sim uma liberdade de me construir com o gênero com que me identifico, e tudo isso agora era comprovação de que eu existia, apesar do Estado me negar.

Uma vez isso apresentado, começavam os desafios, era preciso milhares de certidões para que fosse comprovado que não havia dívidas ou processos na justiça - caso houvesse, fui informada que não teria então direito à minha dignidade, isto é, a realizar minha mudança de nome. Peguei dinheiro emprestado com um grande amigo e camarada, Adriano, que me garantiu com todo carinho que há neste mundo, a possibilidade de pagar altas taxas por folhas de papéis que nem continham meu nome real - que sempre foi este, independente do que diz este Estado. Em trinta dias, nunca frequentei tantos fóruns da justiça, onde a espera, a falta de informação e o descaso com esta causa só desmoralizavam mais. Mas foi. Todos os documentos entregues, agora era "sentar e esperar". Recebi um número e uma senha, e bastava acompanhar pelo site do Tribunal de Justiça os andamentos.

Enquanto nada se resolvia, era certidão pra lá, respostas jurídicas pra cá, e eu não entendia nada. Ligava então para a advogada, assim como consultava minhas amigas que estudaram direito na universidade. Então, em dezembro de 2015, saia o veredito. Lia, enquanto as lágrimas escorriam dos meus olhos, no banheiro do meu trabalho. Não podia acreditar que finalmente, após anos, um juiz havia acreditado que eu merecia o direito ao meu nome. Sai do banheiro e abracei minha colega de trabalho, Rosana, com quem sempre divido minhas felicidades e angústias, e escrevi para todos meus amigos e para minha mãe. Mas, mal sabiam que seriam mais meses de indefinição. Fui então, no escritório da advogada e lá descobri que ainda levariam meses, pois era apenas a primeira resposta do Ministério Público, ainda faltava chegar ao Juiz.

Passada a euforia, fui ler o parecer do Ministério Público e então as bizarrices da realidade da sociedade conservadora brasileira se escancarou. Um processo baseado em mentiras e justificativas patologizantes e transfóbicas que tive que engolir goela abaixo para garantir um direito elementar: o respeito ao meu nome.

Já na primeira página da resposta do Ministério Público de São Paulo, começavam as barbaridades, afirmavam meu pedido de mudança de nome e para explicar argumentavam: "que seu sexo biológico não corresponde ao psicológico, sendo tal fenômeno denominado de TRANSEXUALISMO". Além do sufixo de doença - que mais pra frente vão aprofundar - partem da cisnormatividade - nasce homem por ter pênis e mulher por ter vagina - como um dado oficial, absoluto e inquestionável. Depois, na linha abaixo, fazem algo já naturalizado com as pessoas trans, discutem sobre minha genitália, como um fator relevante: "O interessado é transexual, não fez cirurgia para mudança de sexo". Ainda na mesma página, utilizam de uma autora que eu não conhecia até então chamada Maria Helena Diniz e seu livro " O atual Estágio do Biodireito", de 2002, que reproduzo a seguir:

"Trata-se de uma anomalia surgida no desenvolvimento da estrutura nervosa central, por ocasião de seu estado embrionário, que contudo, não altera suas atividades intelectuais e profissionais, visto que em testes aplicados apurou-se que possui, em regra, um quociente intelectual (QI) entre 106 e 118, isto é, um pouco superior a média".

Baseado numa ciência reacionária, biologeticista e patologizante, definiam que eu merecia este direito já que sou doente mental. Mas é claro que nem todas nós merecemos, então justificavam que "Não se pode deixar um cidadão de bem, cumpridor de suas obrigações, como visto pelos inúmeros documentos acostados, permanecer com o nome de homem, quando se apresenta totalmente como mulher aos olhos da sociedade". Isto é, caso houvesse dúvidas ou processos, não mereceria um direito básico à dignidade humana.

No segundo documento, onde o Juiz agora dava seu parecer, surgiu uma profissional psiquiátrica que nunca vi na vida e que, cabe constar, ainda aguardo na fila do Centro de Referência à Travestis e Transexuais para receber atendimento. Segundo esta "médica"-imaginária do Juiz novamente mais sinais da doença comprovavam meu direito ao meu nome. Dizia:

"As informações prestadas pela médica psiquiátrica que a acompanhou identificam incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade, salientando que ela apresenta sinais e sintomas claros de Transtorno da Identidade Sexual do tipo Transexualismo, possuindo forte identificação com sexo oposto, com intenso desejo de pertencer a ele, desconforto pelo próprio sexo biológico, com sofrimento significativo".

Pausa.
Respiremos fundo.
E vamos lá.

Sinais e sintomas? Então nossas identidades não reconhecidas pelo Estado são meramente sintomas de uma doença mental? "Intenso desejo de pertencer", porque ser quem é, não é existir como, mas "um desejo" que vou alimentando em mim mesma por querer pertencer à algo que já sou? Desconforto pelo próprio sexo biológico, isto é, pelo meu pau? Tudo isso não-dito, mas registrado, por uma médica imaginária que aparentemente só existiu para comprovar que as pessoas trans são doentes mentais que obrigatoriamente negam e repudiam seus corpos, e porque sofrem - e não porque decidem, querem, são sujeitas de suas vidas e donas dos seus corpos - desejamos sermos tratadas com respeito.

Aquele gosto amargo de engolir à seco, porque não há outro caminho. Que a luta contra o constrangimento o aumenta ainda mais no seu decorrer. Assinar e registrar um golpe às nossas convicções. Foi assim, à primeiro momento. Foi então que isso se acentuou, quando descobri que o nome foi arrancado, mas o gênero seguiria masculino, afinal, como consta nos documentos não realizei a cirurgia. Resta perguntar, que legitimidade tem este Estado para nos auto-determinar?

...

Então, no dia 09 de Maio recebi em minhas mãos minha nova certidão de (re)nascimento. E uma semana depois, consegui meu novo RG - que foi pago, independente da ordem judicial - e aí está de novo o gosto amargo das vitórias parciais e das certezas de que os enfrentamentos não param por aí. Não são meus documentos que impedirão que as perguntas sobre "qual meu nome real" voltem a aparecer. Não há sequer um direito absoluto, e por isso esta conquista nossa - e não apenas minha - não pode mascarar a profunda desigualdade que seguiremos vivendo sob a ordem capitalista. Não nos compram com miséria. Para nós, mais do que nunca, a luta é o único caminho.




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