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Mia Couto vem ao Brasil – o escritor como o mensageiro das histórias de um povo

Fernando Pardal

Imagem: Amanda Navarro

Mia Couto vem ao Brasil – o escritor como o mensageiro das histórias de um povo

Fernando Pardal

A cultura e a arte, bem como a educação, vêm sendo duramente atacadas pelo bolsonarismo e demais governantes da direita no país. Cortes na Ancine, censura a produções audiovisuais, censura a livros com temática LGBT, confisco de materiais didáticos que tragam educação de gênero são apenas algumas das recentes medidas tomadas por Bolsonaro, Doria e Crivella.

Nesse contexto, foi um alento receber entre várias dezenas de estudantes, docentes e admiradores o escritor moçambicano Mia Couto na USP. Falando a tantos de forma humilde e acolhedora, como se estivesse num pequeno bate papo com colegas, o escritor colocou com suas palavras diretas e simples reflexões muito profundas sobre o papel da palavra, da escrita, os conflitos de um país e de um continente atravessado por tão duros embates e contradições.

Em Mia Couto não há nenhuma fetichização da literatura, nenhum esforço por manter de pé o fosso tão cuidadosamente cultivado por tantos artistas, críticos e acadêmicos que insiste em preservar a ideologia de um lugar “sagrado” para o escritor e a sua arte. Nada disso. Os livros, como ele disse, foram vividos antes de os ler. Na fala de Mia Couto, mais do que a valorização da palavra escrita, o que se destaca é a valorização da vida material e da troca, da palavra como instrumento para expressar as relações concretas entre as pessoas.

Mia se sabe e se disse como uma “criatura de fonteiras”: um africano que é filho de europeus; um africano que é branco; um ateu em meio a um universo profundamente religioso; um cientista num mundo que acredita em coisas mágicas; um escritor no mundo da oralidade. E que sente prazer em ser um contrabandista entre essas realidades. Ele é um retrato de um país de contradições profundas, cuja história é marcada pela brutalidade da colonização europeia e pela constituição de um país que até poucas décadas era determinado completamente pelas mãos do estrangeiro (e que segue sendo duramente explorado pelo imperialismo em associação com a burguesia nacional).

Todos os conflitos gerados por essa história e esse lugar perpassam a literatura de Mia Couto permanentemente. Nas suas palavras, Moçambique não é “ainda completamente um país”, não está “sedimentado, formatado”. Não apenas pela marca do imperialismo que, ainda após o fim da colonização e mesmo com a guerra de independência vencida em 1975, ainda é uma presença decisiva; mas também pelas distintas nações que convivem e disputam em seu interior. Segundo o autor, “a língua portuguesa é um palco onde estas brigas e namoros ocorrem”. É uma língua viva, em formação, em disputa, um momento pulsante dos conflitos que marcam o país.

Assim, o papel social e político do escritor ganha o primeiro plano, e Mia Couto mostra em sua fala grande consciência de participar desse jogo. Fala do escritor como um “tradutor de lógicas”, em seu caso, fundamentalmente entre o oral e o escrito. Ele quer colocar sua palavra escrita, e o papel de poder que ele sabe que ela exerce, a serviço de trazer à tona a história desse povo por seus próprios olhos. Na sua fala, entre diversos momentos em que esse tema foi abordado, em um momento Mia Couto relatou como isso se dá na relação cotidiana do escritor com o público:

As pessoas valorizam o escritor, a escrita, como um universo a que não têm acesso, mas que é onde acontece o poder. E por isso o escritor é parado na rua muitas vezes como um mensageiro, como alguém que passa essa linha de fronteira. Muitas vezes me param na rua e não é para tirar uma fotografia ou para pedir um autógrafo, mas é para dizer “diga isto”. E eu não sei exatamente o quê, mas eles sabem, as pessoas que dizem “olha, transmita isso”. E esse papel de mensageiro para mim é fundamental. Uma das coisas que gosto é que as pessoas pensam através de histórias e contam histórias o tempo todo. É impossível não ser escritor – e eu não tenho nenhum mérito nisso – num país em que as pessoas têm essa capacidade de sonhar e de perceber o mundo através de histórias.

As histórias, a oralidade constituinte da cultura de seu povo, é um elemento marcante e presente para Mia Couto; mas isso não quer dizer que não entenda que a “tradução de lógicas” dessa oralidade, dessas histórias que constroem o imaginário social, não tenha um papel de grande importância. Ele, como escritor, não se coloca como o portador de um saber cujo propósito é perpetuar a opressão e a exploração do branco, do europeu, do colonizador, do imperialismo. Mia quer ser o “mensageiro”, sabendo que entre a lógica dessas duas formas de apreensão do mundo existem distinções, complementaridades, contrastes. “Os livros instauram de maneira muito clara esta fronteira entre a lógica da escrita e a da oralidade”, disse ele. Não é apenas uma fronteira de lógicas, mas nitidamente um abismo entre classes e raças, já que grande parte dos trabalhadores e, ainda mais, dos camponeses, permanece analfabeto – e entre esses a quase totalidade é negra.

Falando sobre as fronteiras ao responder uma pergunta do público, Mia Couto ressaltou que nesse momento o que lhe “apetece” é poder atravessar as fronteiras desvalorizando-as, “no momento em que essas fronteiras hoje tem um serviço político bem claro. Elas vão sendo construídas de maneira que se possa fundamentar o medo de uma agressão do outro; do outro como desconhecido, como inimigo em potencial. E, portanto, acho que mais do que nunca é preciso saber que uma coisa é a busca de identidade, que é uma busca necessária, mas que essa identidade seja sempre fluída, volátil. Que eu tenho que ser uma coisa, mas não há problema que eu deixe de ser no minuto seguinte.” Assim, Mia Couto se coloca em oposição tanto às fronteiras impostas para a opressão, como a uma reação binária de um nacionalismo que possa se prestar, posteriormente, a novas opressões.

Ainda sobre a constituição de identidades, Mia mostrou uma aguda percepção de como, pela negativa, o papel desse “mensageiro” ou “tradutor de lógicas” é fundamental para a constituição da história de um povo ou um país. “A memória”, disse ele, “do ponto de vista coletivo, qualquer que seja o coletivo, uma nação ou grupo, ela é quase sempre uma construção. […] E no caso de Moçambique é muito claro nesse percurso que fizemos, para se fazer uma nação, o quanto se teve que esquecer […] E o quanto uma nação é feita do modo como esquecemos juntos.” Assim, as vozes silenciadas, os explorados e oprimidos que a história “esqueceu” são os mesmos que hoje param Mia Couto nas ruas e, sabendo da escrita como um lugar de poder, pedem-lhe que seja seu mensageiro, seu tradutor. Porque escrever é uma forma a mais, uma forma poderosa, de fazer com que não se esqueça. Em nosso país, hoje esse poder se vê confirmado pela perseguição censorial às palavras escritas que dizem aquilo que os poderosos não querem que se leia. Porque querem fazer uma nação à imagem e semelhança de suas crenças, e, para isso, é necessário construir um novo repertório de “esquecimentos” que constitua uma nova identidade de país. Assim, como não poderia deixar de ser, não faltou na fala de Mia Couto um momento para expressar sua solidariedade à luta que hoje travamos contra os duros ataques de um governo obscurantista de extrema-direita.

Não à toa, Mia Couto disse que um dos livros de sua trajetória que o marcou mais profundamente foi o “Terra sonâmbula”, um livro no qual o autor pode relembrar as dores da guerra civil que marcou a luta pela independência de Moçambique. O autor, que perdeu amigos e sonhos na guerra, disse que esse romance permitiu a ele “fazer as pazes com certos fantasmas que me assaltavam”. A escrita dessa dor é rememorar, fazer viva, deixar de “esquecer” e, assim, participar ativamente na construção de um povo. O papel de Mia Couto ao se colocar como uma “criatura de fronteira” que dá à sua escrita o papel de mensageiro de milhões de vozes negras em um país em que a taxa de analfabetismo da população adulta é de 45% é o de um autor que escolheu fundir sua escrita ao destino da luta de seu povo; uma luta contra o “esquecimento” imposto pelo imperialismo, pela colonização, pelo racismo e pela exploração implacável e secular. Não apenas na sua literatura, mas participando ativamente na luta pela independência, que o autor relembrou como tendo despertado ele “sobretudo pelo que via em minha cidade, a maneira como as pessoas negras eram discriminadas, maltratadas, passavam da inexistência à existência do ser culpado, do ser maléfico. Então isso era muito doloroso”. Após presenciar os horrores de dezesseis anos de guerra civil com o saldo de um milhão de mortos, é compreensível que Mia Couto apresente uma concepção que ele mesmo diz que “parece uma coisa cristã”, de que não se pode odiar o outro. Contudo, pouco antes ele mesmo havia falado dos horrores do regime colonial racista e que a parte mais importante de sua vida foi a luta contra a ditadura, que essa luta permitiu que “apesar de tudo” construísse laços de solidariedade e que fosse feliz, encarando esse como o momento mais importante de sua vida. Por trás desse relato inequivocamente vemos que se há algo que pode constituir efetivamente a solidariedade humana e a possibilidade de um futuro de diálogo e sem antagonismos, isso só pode se dar com o combate implacável e intransigente contra o capitalismo e seus regimes políticos baseados na exploração e na miséria.

Com as palavras de Mia Couto as histórias que são a carne e o sangue do povo moçambicano podem ser também conhecidas por nós, e nos ajudar a fazer parte de uma luta para que esse povo tenha sua própria voz e se liberte do julgo do capitalismo que lhe impõe a luta cotidiana pela sobrevivência.


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