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TEORIA MARXISTA | Mercantilização da vida, superficialidade e pragmatismo

Debates com Theodor Adorno e Max Horkheimer (Parte 1)

terça-feira 16 de fevereiro de 2016 | 00:00

“O cisco no olho é a melhor lente de aumento”, escrevia provocativamente o filósofo frankfurtiano Theodor Adorno, em seu clássico Minima Moralia, que se dedicava à crítica do sistema capitalista a partir da estadia do filósofo nos Estados Unidos, consagrando as bases de seu pensamento junto a Horkheimer que, em síntese, dizia que a dominação capitalista saiu das fábricas e adentrou aos corpos e mentes das pessoas .

O cisco no olho incomoda, nos irrita a vista e nos impede de ver da mesma forma. A crítica às distintas formas ideológicas da dominação capitalista e, sobretudo, o lugar da indústria cultural nesse processo foram parte dos principais temas de Adorno e Horkheimer. Mais do que ideias de um período passado, o que é interessante notar é que algumas das tendências ou insights que esses pensadores tiveram sobre a dominação capitalista, ao contrário de arrefecerem, parecem ter ganhado ainda mais intensidade e força nas últimas décadas .

Isso porque o auge do discurso neoliberal que afirmará altivamente na década de 1990 a estabilidade inquestionável do capitalismo como modo de produção teve entre as suas consequências ideológicas a tentativa de enterrar os melhores valores proclamados pelo comunismo no passado: a ideia ousada de Karl Marx de constituir uma sociedade sem explorados nem exploradores, de “produtores livremente associados”, sem divisão intelectual e manual do trabalho e, nesse sentido, uma sociedade onde a personalidade humana se desenvolveria sem fronteiras, não em oposição, mais em fraternidade e harmonia com os outros indivíduos e toda a humanidade.

Ao contrário, a restauração capitalista nos países de dito “socialismo real” e a ofensiva ideológica neoliberal quiseram estilhaçar todas as ideias nesse sentido e reafirmavam (direta ou indiretamente) a “felicidade” contemporânea como expressão da mercantilização total da vida social. Se antes já havia tornado o trabalhador um “apêndice da máquina” (Karl Marx), o passo seguinte foi condicionar a maneira do trabalhador de viver e se realizar fora do trabalho, colonizando as formas ideológicas e, por fim, o mais íntimo interesse, desejo, sonho dos trabalhadores, passando todos pelo crivo do capital. Assim, o ideal de riqueza, o trabalho subordinado a esse ideal, a família como mini-empresa de reprodução capitalista e as relações sociais mais superficiais e pragmáticas tornaram-se o reflexo social do movimento econômico da sociedade, da lei do valor. O individualismo burguês mais mesquinho, ao contrário de ser representado como desgraça da sociedade, foi brindado aos quatro cantos em cada livro, novela, filme, música e demais formas de “comemorar” o capitalismo.

O mundo líquido, para usar a célebre expressão de Bauman, era sinônimo da superação da modernidade, do mundo pós-moderno, pós-industrial, pós-informacional, pós-utópico. A dominação capitalista fazia das derrotas da resistência dos trabalhadores não apenas uma forma “militar” da luta de classes, mas particularmente tentou a todo instante criar um mundo imaginário do triunfo da democracia dos ricos. Com o desenvolvimento tecnológico e informacional não se tratava de esconder as mazelas do capitalismo, mas de enxurrar as mentes com a ideia de resignação humana, de que as relações sociais (miseráveis) atuais são as únicas possíveis.

Para isso, é necessário que toda a informação se converta no seu contrário: uma maré ideológica que consiga a façanha de matar o “ser pensante”, mas lhe dar a convicção de que é pleno de convicções:

“A falsa clareza é apenas uma outra expressão do mito. Este sempre foi obscuro e iluminante ao mesmo tempo. Suas credenciais têm sido desde sempre a familiaridade e o fato de dispensar do trabalho do conceito (...) A enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo” (ADORNO, HORKHEIMER, 2006, p. 14)

Essa falsa clareza tem sua expressão máxima na busca da realização e da felicidade em meio a total mercantilização da vida. Os homens e mulheres, tornados objetos vendidos no mercado de trabalho, absorvem a substância máxima do fetichismo da mercadoria para as suas vidas, que é observar o mundo sob a ótica da quantidade e, em última instância, do capital. Assim a vida familiar (a qual Marx já denunciava no século XIX que teria se tornado uma “mera relação monetária”) se mercantiliza, integralmente de corpo e alma. A insuportável expressão da mercantilização dos corpos sob a égide da opressão da mulher nos distintos veículos midiáticos já passa a não ser mais tolerada passivamente.

Na mais íntima relação humana, no mais íntimo gesto de amizade e interlocução se expressa esse mal-estar da civilização, a sensação tediosa de superficialidade. Como escreveram Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento:

O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisificou as almas. O aparelho econômico, antes mesmo do planejamento total, já provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento dos homens. A partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercâmbio, perderam todas suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos. As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normatizados como os únicos naturais, decentes, racionais. De agora em diante, ele só se determina como coisa, como elemento estatístico, como success or failure [sucesso ou fracasso] (ADORNO, HORKHEIMER, 2009, p. 35).

O industrialismo coisificou as almas e colocou-as diante do dilema capitalista: sucesso ou fracasso dentro de nossa sociedade. A coisificação dos indivíduos, também chamada por alguns pensadores de reificação, simboliza a forma ideológica da dominação, o “divide e impera” da sociedade contemporânea, a certeza de que, convencidos desse ideal infeliz de vida, os indivíduos não podem se articular em torno do centro motor da sociedade, o conflito entre classes, e resistir a essa dominação.

Por isso as relações têm de ser frágeis. Naturalmente a indústria cultural é só uma base dessa tentativa de dominação cultural, mas a disputa se dá ainda mais intensa no interior das fábricas e locais de trabalho, porque os capitalistas sabem bem que a subjetividade operária tende a resistir à proposta de artificialidade e superficialidade do mundo contemporâneo. Em vista disso, a reestruturação produtiva no capitalismo percebeu que para dominar nas fábricas era necessário desfazer ao limite os laços que vão se criando entre os trabalhadores. Por isso precisava-se dividi-los o máximo possível no interior do trabalho, e nesse sentido a terceirização foi peça fundamental, e também inviabilizar os laços, chegando ao limite de criar um sistema de rotatividade do trabalho para que os trabalhadores não tenham tempo de se conhecer. E para aplicar todo esse plano, as burocracias sindicais foram a base “material” que buscava garantir a estabilidade dos trabalhadores frente à reestruturação produtiva e essa onda de ataques as suas condições de vida e direitos.

Seja na mídia, seja nas imposições do trabalho, a superficialidade é senhora do destino dos homens e mulheres no capitalismo. Esse é o movimento imposto, irrefreável do ponto de vista individual. Por isso o sentimento dominante advindo dos anos 1990 (anos de reação neoliberal) é a desilusão e a depressão, pois sem se articular como classe e resistir, forjando os laços profundos que só a luta pode fornecer, a perspectiva é de pessimismo. “Os indivíduos entendem confusamente sua relação no mundo e suas relações recíprocas” (Karl Marx).

O drama maior não é apenas da superficialidade, mas é que esta vem casada com o pragmatismo. Reina a busca da quantidade: de dinheiro, em primeiro lugar, e de todas as derivações disso. A enxurrada de informações cria um individuo tomando uma sequência de decisões no mundo, uma hiperatividade, uma busca pragmática, que só pode se encontrar com seu contrário, com o vazio total.

Se o amor e a amizade são das artes mais sublimes das relações humanas, a forma de amar hoje adquire todo o significado dessa superficialidade. O “clichê” volta mais forte: no mundo social (e agora nas redes sociais) é possível estar acompanhado de uma infinidade de pessoas e se sentir cotidianamente sozinho. Mas isso corre conjuntamente aos aplicativos de comunicação que funcionam em ritmo alucinado, não param de trazer novas mensagens e informações, aprisionando completamente o pensamento e o inviabilizando de qualquer gesto criativo (social, artístico, político) que modifique a degradação das relações humanas.

Em suma, homens e mulheres se veem com almas coisificadas, com relações superficiais e com ambições pragmáticas. Essa é a miséria capitalista. Antes nós já denunciávamos a exploração do trabalho e a desigualdade do mundo material, que diga-se de passagem, não cessou de aumentar. Agora, somado a isso, a denúncia anticapitalista não se refere apenas ao corpo, mas também a “alma”, que o capitalismo colonizou e reduziu até criar uma sociedade da miséria intelectual, da total mesquinhez de sonhos, uma sociedade da infelicidade e da depressão.

A mais desgraçada escolha subjetiva que os homens e mulheres podem fazer é abandonar o caminho da resistência, e voltar-se a resignação, aos prazeres que o sistema pode oferecer. Mas qual seria o caminho alternativo?

Eis aí o erro fundamental de Adorno e Horkheimer. A obra máxima que escreveram e que sintetiza algumas ideias que vão nesse sentido, A Dialética do Esclarecimento, foi publicada dois anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. É indissociável a leitura de que sua denúncia à dominação capitalista seja imbuída do espírito pessimista do pós-guerra.

Adorno e Horkheimer, ao centrarem a análise no caminho que vai da exploração material à dominação espiritual, terminaram por conferir determinação exacerbada na força da dominação das ideias, sem perceber que o caldo que as fermenta não tem uma dinâmica evolutiva e gradual, mas explosiva. Nesse sentido, os filósofos alemães decretaram prematuramente e antes do pensamento pós-moderno o fim do proletariado como classe revolucionária, o fim da potencialidade do conflito no seio da sociedade que abrisse uma crise social e a perspectiva de uma revolução no conjunto da sociedade, da cabeça aos pés.

A complexa lei histórica que Hegel identificou no mais popular dos pensamentos, segundo o qual “os extremos se tocam”, a base do pensamento dialético, se engessou no pessimismo dos autores. A mais sufocante superficialidade e o mais banalizado pragmatismo das relações humanas só pode produzir a mais explosiva revolta, que quando se estende do indivíduo às classes sociais pode ser um fermento de transformação.

Assim, no mundo pós-crise econômica de 2008, as sociedades que o ocidente acusaria de serem as mais dominadas ideologicamente, do Oriente Médio e o mundo muçulmano, protagonizaram os principais processos revolucionários do mundo no século XXI, a Primavera Árabe.

Após a primavera Árabe, o ano de 2011 encontrou o que poderia ser considerado o principal levante de juventude desde os anos 1960, com indignados espanhóis, Occupy Wall Street norte-americano, a luta pela educação gratuita no Chile e outras formas de emergência das lutas. A juventude que, segundo todos os métodos discursivos e critérios teóricos de Adorno e Horkheimer, seria a prova mais cabal da dominação total do capitalismo, foi uma das maiores protagonistas da rebeldia a essa dominação, do questionamento da sua vida, seu futuro, dos costumes e da política.

Imaginemos, nesse sentido, a força explosiva dos levantes da classe trabalhadora nesse contexto de crise social, e qualquer pessimismo torna-se anacrônico no contexto de crise capitalista internacional.

Acesse aqui a parte 2, "Indústria cultural: alma de uma situação sem alma"


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