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Marxismo e luta Trans: entrevista com participante do livro “Transgender Marxism”

Marxismo e luta Trans: entrevista com participante do livro “Transgender Marxism”

Entrevista com Virgínia Guitzel, que publicou artigo no livro recém-lançado no Reino Unido, Transgender Marxism, uma coletânea sobre a luta Trans e o marxismo. Virgínia é militante do grupo de mulheres Pão e Rosas e fala sobre a importância da publicação, a relação entre marxismo e luta LGBT e as contradições e desafios da luta no Brasil.

O artigo de Virgínia, “Notes From Brazil”, pode ser lido junto dos outros 14 artigos reunidos no livro publicado pela Pluto Press.

Qual é o significado do Transgender Marxism?

Transgender Marxism [Marxismo transgênero, em tradução literal – nota do tradutor] é a primeira publicação deste tipo. Dando visibilidade para pessoas trans que estudam e elaboram sobre o marxismo. É algo inédito e creio que é uma expressão do momento que estamos vivendo, da busca por uma teoria capaz de ir a fundo nos problemas sociais escancarados pela pandemia e pela emergência da luta trans ao redor do mundo.O marxismo é a única teoria capaz de oferecer um balanço histórico da luta pela emancipação sexual e de gênero e capaz de nos preparar para sua plena realização.

Se olharmos hoje para o mundo, não se pode negar que as realidades LGBT se transformaram de forma sem precedentes se comparadas às vidas heterossexuais. As identidades LGBT que nasceram e se desenvolveram fruto das possibilidades abertas pelo nascimento do capitalismo – como explica John D’Emilio em seu artigo Capitalism and Gay Identity, através da predominância do trabalho livre, da separação dos entes familiares dos círculos de produção feudal, das condições materiais para se forjar comunidades de homens e mulheres e pessoas que não se reconheciam em nenhum gênero através de seu estilo de vida, da suas afinidades culturais e dos desejos subversivos – encontraram em poucos anos um enorme limite para que esta possibilidade se concretizasse efetivamente.

Isto porque, apesar dessas possibilidades inscritas com as profundas transformações sociais, a Igreja nunca deixou de nos considerar pecadores e os Estados capitalistas buscaram desenvolver leis criminalizantes e o uso da medicina para determinar quais identidades e sexualidades eram saudáveis e quais eram “desviantes”. Apesar disso, conquistamos através de décadas de lutas desde a Revolta de Stonewall até as Paradas LGBT pelo mundo, uma visibilidade inédita nos filmes, seriados, discografias e inclusive em cargos de chefia, de governos e instituições financeiras, além de um reconhecimento em muitos países da própria LGBTfobia e leis que prometiam garantir direitos para nossa comunidade.

Este processo, que ocorreu muito recentemente, poderia dar uma ideia de que o capitalismo estivesse “acertando contas” com a não realização das possibilidades que ele trouxe em seu nascimento. Porém, esse aumento da representatividade e de direitos civis não ocorreu sem contradições e sem conviver pacificamente com a insistente marginalidade e repressão aberta às sexualidades não heterossexuais, como os mais de 70 países que ainda criminalizam o amor entre duas pessoas do mesmo gênero ou as identidades trans. Tampouco significou um atendimento das nossas reivindicações emancipatórias, inclusive porque muitas das leis aprovadas não significaram igualdade perante a vida. Estas conquistas que arrancamos através das nossas mobilizações e enfrentamentos contra o Estado foram aproveitadas pelo neoliberalismo através do desenvolvimento de uma indústria queer, numa espécie de “McDonald’s dos Prazeres” que buscava enquadrar o sexo e os nossos desejos em um mercado de consumo, aprisionando-o às amarras capitalistas e buscando promover um novo pacto social, uma representação de um multiculturalismo progressista com o velho neoliberalismo em crise, cheio de ataques às massas, em especial trabalhadores, que são cada vez mais femininas, latinas, LGBT e negras.

E por isso, o marxismo se faz tão necessário hoje, pois a liberação sexual e de gênero exige uma organização para o prazer. Esse processo ocorreu em meio a um dos momentos mais dramáticos para a comunidade LGBT, que foi a descoberta da AIDS, que foi utilizada politicamente para impor um limite às nossas aspirações e transformar a fisionomia do movimento pela liberação sexual e de gênero que estava em curso, e voltar todas as energias para a simples sobrevivência, uma vez que se demorou mais de 10 anos para ter o primeiro plano internacional de combate à doença.

Essas transformações em nossas vidas, se por um lado são frutos de décadas de lutas pela liberação sexual e trans, também são resultado de um processo interrompido de exigência de grandes transformações sociais. Nos dias de hoje, marcados pela crise do neoliberalismo desde a queda do Lehman Brothers em 2008, ainda mais agudizada pela pandemia do coronavírus, estes questionamentos sobre as identidades trans se apresentam como um sintoma da crise orgânica internacional, que, como diria Antonio Gramsci, produz novas formas de pensar à esquerda e à direita, e permitiu a aparição de um fenômeno não binário e menos classificatório, como analisa Peter Drucker em uma entrevista que concedeu ao La Izquierda Diario. Se expressa um espírito de época que coloca questionamentos ideológicos em meio a uma fragmentação das nossas identidades e da nossa organização política como nunca antes.

Isso deu espaço novo também à atuação política para as LGBT. Diferente dos ativistas da década de 60 e 70, profundamente marcados pelo ascenso da luta de classes internacional e as possibilidades de uma mudança profunda em todas as esferas da vida, e também diferente dos ativistas dos anos 80 e 90, restritos às ONGs e instituições dedicadas a garantia de tratamentos médicos, acesso a moradia e questões assistenciais, há um novo setor que questiona o poder do Estado de regularizar os nossos direitos, porém carece de ver a importância de preparar os enfrentamentos que já estão ocorrendo, que são fruto da polarização social, em que as organizações financeiras e a extrema direita buscam na comunidade LGBT um bode expiatório para suas teorias conspiratórias.

Transgender Marxism aparece, então, como uma expressão destes questionamentos e suas expressões à esquerda. Isto porque é a primeira coletânea deste tipo que ousou retomar o marxismo – ainda que com uma variedade de interpretações sobre o seu legado – para pensar os problemas da libertação trans.

A situação atual leva setores da academia e dos movimentos sociais a questionarem os limites das teorias pós-modernas que proliferavam acompanhadas desse novo espaço de visibilidade, mas que se chocam brutalmente com as imposições de austeridade pelas instituições financeiras internacionais, que inevitavelmente impõem polarizações sociais e fazem ressurgir com maior virulência setores da extrema direita, como vimos de Trump a Bolsonaro, e também nos golpes reacionários na Bolívia e em Myanmar.

Ao mesmo tempo que hoje, com uma câmera de um celular, pode ser capturado o fato de que nas manifestações da Colômbia a Myanmar as travestis estão na linha de frente da luta de classes e são parte de uma geração de juventude que se levanta, assim como no Chile e nos EUA, que começa a questionar problemas de fundo da sociedade capitalista em meio à crise econômica e sanitária.

O livro ainda nos permite questionar os limites da própria esquerda internacional que veio se dividindo em dois polos: os que se negam a tomar as bandeiras pela libertação sexual, seguindo a herança stalinista, e os que se diluem dentro dos movimentos, contribuindo para limitar os horizontes da nossa emancipação em apenas direitos civis, que estão sujeitos a retrocessos, em meio à crise capitalista. Esta publicação pode servir para começar um acerto de contas com estes problemas, apontar a reconstrução de uma aliança poderosa entre a única teoria científica sobre a nossa emancipação com os movimentos emergentes que apontam as aspirações por um novo mundo.

Seu ensaio no livro, Notes from Brazil [Notas do Brasil – nota do tradutor], discute a situação das pessoas trans e queer no Brasil. Como isso mudou desde 2019, quando o rascunho foi escrito?

Os últimos anos no Brasil estão marcados pelo golpe institucional de 2016, que foi instrumentalizado pela Operação Lava Jato, com as mãos do imperialismo norte-americano, para acelerar uma agenda de ataques que Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, já vinha fazendo. No meu artigo busco explicar como chegamos até a eleição de Jair Bolsonaro, buscando demonstrar que este processo não veio “do nada”, mas foi um resultado de um rastro de derrotas e lutas não organizadas pelas centrais sindicais e as entidades estudantis, que são em sua maioria dirigidas pelo próprio PT e pelo PCdoB. Ao não se construir um caminho da luta de classes, buscando organizar a indignação e a revolta, foi se produzindo uma desmoralização e uma apatia que só favoreceu que descarregassem a crise econômica sobre as nossas costas. O regime do golpe buscou adequar a situação brasileira às exigências do capital estrangeiro, e impor um rebaixamento nas condições de vida das massas trabalhadoras, atacando direitos democráticos como o sufrágio universal, com o impeachment de Dilma e a prisão arbitrária de Lula. Foram diversas instituições supostamente democráticas que organizaram o golpe e levaram Bolsonaro ao poder, e que favoreceram com que poderes sem voto, como as igrejas, os militares e as milícias, ganhassem ainda mais peso na política do país.

Com a chegada da pandemia do coronavírus, então se escancarou toda a decadência deste sistema que prioriza os lucros acima das vidas e evidenciou todo o peso das desigualdades já existentes, que atingiram com maior crueldade as pessoas negras. No Brasil, a situação das pessoas trans se tornou ainda mais alarmante. Se éramos já o país que mais mata pessoas trans do mundo, nossa expectativa de vida caiu de 35 para 30 anos em meio à pandemia, e as quarentenas sequer eram possiveis para uma grande maioria dos trabalhadores, hoje uberizados e cada vez mais precarizados, que dirá para as pessoas trans presas à prostituição compulsória, que abarca 95% da pessoas trans brasileiras.

O Brasil se tornou um dos polos mais reacionários do mundo com uma transformação do regime político, com o golpe institucional se consolidando e tendo Bolsonaro como uma representação imperialista para aprofundar nossa subordinação e nosso local de fazenda do mundo, fazendo piada com as pessoas morrendo sem oxigênio em Manaus e dizendo que a Covid-19 não passava de uma “gripezinha”. Ao mesmo tempo que é preciso ter uma visão abrangente. Desde o seu discurso de posse, Bolsonaro lançou uma cruzada contra as pessoas trans sob um suposto combate à “Ideologia de gênero”. A sua narrativa era de que o país estaria sendo salvo de uma tentativa comunista de acabar com a família e de desvirtuar os valores tradicionais. Enquanto as demais instituições brasileiras, com destaque para o Supremo Tribunal Federal – que foram responsáveis pelo avanço da extrema direita com o sequestro de milhares de votos do Nordeste, com a prisão arbitrária de Lula e buscaram se colocar como oposição ao seu extremismo – assumindo para si este papel do multiculturalismo progressista que se postulava pró-LGBT, aprovando medidas inéditas de direitos legais que por anos foram negadas. A Rede Globo de televisão colocou em horário nobre uma novela com uma personagem trans, ao mesmo tempo que nos jornais fazia uma campanha aberta por todas as medidas de austeridade e de cortes na educação junto com Bolsonaro, o Congresso Nacional e o STF.

Estas duas tendências bonapartistas, uma representada pelo extremismo de direita de Bolsonaro e outra pelas instituições do golpe, que têm seus próprios projetos de país autoritários, adequados aos planos do capital financeiro internacional, pareciam se chocar sobre os direitos da comunidade LGBT, quando na verdade são linhas auxiliares que se retroalimentam buscando lucrar e fazer lobby com nossas identidades orgulhosas, enquanto nos empurram ao desemprego, à fome, à falta de acesso à educação (menos de 1% da população trans ingressa nas universidades brasileiras) e à saúde. O Brasil se tornou o emblema das duas tendências internacionais que obstruem o caminho para nossa verdadeira emancipação: uma abertamente reacionária e conservadora que busca ataques econômicos combinado a ataques de direitos democráticos e outra que se utiliza de algumas garantias legais para justificar a obra econômica do golpe institucional. Essas duas tendências ocorrem em meio às transformações culturais impostas por lutas internacionais de décadas, que permitiu com que tenhamos pela primeira vez parlamentares trans eleitas, leis que criminalizam a LGBTfobia, num país ainda marcado pelo transfeminicidio.

Nos últimos anos, houve um avanço nos direitos legais das pessoas trans no Brasil, ao mesmo tempo em que houve um aumento da violência contra elas. Você pode falar sobre esta contradição?

Sim. Como mencionava anteriormente, não foram poucos os avanços legais que tivemos no Brasil nos últimos 5 anos, marcados pelo golpe institucional. Para citar alguns: o reconhecimento da união estável em relações homoafetivas, a equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo, a regulamentação da mudança de nome nos cartórios para pessoas trans, a jurisprudência de travestis e transsexuais serem presas em celas correspondentes ao seu gênero auto-declarado e a recente decisão que derruba a proibição de pessoas LGBT de doarem sangue no Brasil, são avanços importantes, mas muito contraditórios.

São contraditórios porque apesar de pouco se mencionar isso, foi nos governos petistas que a direita começou a ganhar espaço para defender ideias como a que ficou conhecida como “Cura Gay”, que através de um sujeito chamado Marcos Feliciano, do Partido Social Cristão, que foi colocado na Comissão de Direitos Humanos em 2013, se defendeu que os psicólogos tivessem “liberdade” para tratar pessoas LGBT. Essa situação junto com a “Carta ao Povo de Deus” assinada por Lula e reafirmada por Dilma, que se colocavam contra a legalização do aborto, já demonstravam que o projeto de conciliação de classes, incluindo a direita dentro do governo, rifava as reivindicações dos setores mais oprimidos.

E é ainda mais notável pensar que enquanto se avançava um golpe institucional em nome da “família”, se poderia ter conquistado o reconhecimento perante ao Estado da existência da
discriminação contra nossas identidades, sem que com isso, se constituísse nenhuma base essencial para o enfrentamento à LGBTfobia. Pelo contrário, estes direitos legais demonstravam seu caráter parcial, em primeiro lugar pelos seus agentes que buscavam por dentro deste regime podre oferecer alguma alternativa às LGBT, mas também pelo enorme caráter de exceção de quem se favorecia destes avanços. A mudança de nome, por exemplo, que é algo elementar para o respeito às identidades trans, foram facilitadas juridicamente, mas seguiam custando 300 a 400 reais, o que já excluía a grande maioria que sobrevive da prostiuição.

E aí se evidencia a armadilha neoliberal que sustenta que nossa emancipação estaria limitada, nos marcos capitalistas, à conquista progressiva de direitos perenes. Quando na verdade, estes direitos legais, que inclusive nós do Pão e Rosas Brasil estivemos na linha de frente para conquistar, ao invés de serem pontos de apoio para fortalecer a nossa luta para transformar toda essa estrutura que aprisiona os nossos desejos, eram formas de conviver pacificamente com a retirada de direitos da reforma trabalhista, da Previdência, e com o fortalecimento da extrema direita que diz abertamente que nos quer mortas.

Algumas pessoas da esquerda argumentam que o marxismo é fundamentalmente limitado pelo fato de ter sido desenvolvido por um homem branco, hétero e europeu. Este livro representa uma afirmação significativa contra essa perspectiva. Por que você acha importante que grupos oprimidos como as pessoas queer se voltem para o marxismo?

Bem, essa visão parece de alguém que certamente não leu Marx. E que caiu numa construção artificial que foi criada historicamente buscando separar os setores mais oprimidos da única teoria que propõe uma resposta totalizante para responder o problema da opressão e da exploração. Sim, acredito que este livro pode também ser uma contribuição inicial neste sentido, de contrapor esta caricatura e também a herança stalinista que representou o oposto do marxismo. E isso tem uma importância enorme para estas novas gerações de jovens e trabalhadores que vêm protagonizando processos da luta de classes com um caráter disruptivo, pois não está marcada pela ideia forte que a minha geração cresceu ouvindo contra um “socialismo real”, que era na prática as burocracias destes Estados operários, que preparavam a restauração capitalista.

Acredito que a importância de resgatar os fios de continuidade de Marx e dos socialistas científicos é para compreender como as coisas começaram, suas origens, a raiz, a fonte da nossa exploração para poder construir um trabalho de estratégia que possa aniquilar sua essência. E não ficar presa na aparência das coisas que nos faz repetir os mesmos erros. Por exemplo, a enorme contribuição de Marx e Engels em seu livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, quando rastreiam o surgimento do patriarcado entrelaçado ao surgimento da propriedade privada, nos ajuda a determinar a base material que constituiu a “derrota histórica do sexo feminino” com a monogamia sendo a única forma eficaz de garantir uma linhagem hereditária para a passagem da propriedade privada. A constatação de Marx de que “O trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro” são alguns dos exemplos de sua importância histórica.

E, filosoficamente, poderíamos pensar em Marx como um grande revolucionário que elaborou uma obra primordial como uma tarefa preparatória, como se erguesse uma torre que permitisse que nossas gerações vissem as tarefas históricas do movimento da luta de classes para nossa emancipação. Através de um método de buscar extrair lições em cada um dos processos da luta da classe trabalhadora, já que as derrotas também são fontes de lições de estratégia. Marx não nos deu somente um método para analisar a realidade, mas também um programa e uma estratégia para pensar como avançar, inclusive no pós tomada do poder, onde se tem que colocar todas as energias disponíveis para promover todas as condições para enfrentar séculos de opressão e de ideologia burguesa, que se apropriou e instrumentalizou o patriarcado. Isso é fabuloso para podermos chacoalhar a velha consciência conservadora que aceitava a domesticação dos nossos desejos, e ter as condições materiais para a sua realização.

Poder conhecer Marx também nos ajuda a conhecer as falsificações que lhe foram atribuídas intencionalmente. Hoje nos exige elucidar qual foi o papel da burocracia soviética no retrocesso dos pioneiros direitos na luta pela emancipação da mulher e sexual, enquanto preparavam a restauração capitalista. Buscando refutar a ideia de um “socialismo real” alheio à diversidade, quando na verdade não se tratava dos desenvolvimento da revolução, mas sim da contrarrevolução burocrática que não apenas recriminalizou a homossexualidade em 1934, ou reproibiu o aborto e extinguiu as medidas de socialização do trabalho doméstico, como fez campanhas para as mulheres terem mais filhos e se voltarem ao lar, como foi bem documentado pela históriadora Wendy Goldman em seu livro Mulher, Estado e revolução. Mas também proibiu suas organizações internacionais a estabelecer qualquer relação com os grupos pela Liberação sexual, como denunciava a Frente Homossexual de Ação Revolucionária na França.

E é partindo deste combate de “livrar os vivos do peso dos mortos”, como diria Daniel Bensaid, é que o verdadeiro marxismo revolucionário pode acertar as contas com a pós-modernidade, que se contrapõe ao “socialismo real” e sua face conservadora, mas não ao multiculturalismo progressista, com o qual tem em comum a perspectiva de saída individual para a nossa emancipação. E isso tem implicações programáticas e estratégicas. Isto quer dizer, de diferentes ordens: de pelo o que lutamos e também de como propomos lutar para alcançar isso. Ainda que aqui eu não possa aprofundar tanto este aspecto, creio que compreender a repressão sexual e das nossas identidades trans como um mecanismo estrutural da exploração do trabalho, buscando regular nossos desejos e nossas formas de identidades permitidas, legitimadas, possíveis...é fundamental para entender contra o que lutamos. Contra todas as normas, todas as imposições, todas as regras que buscam transformar a nossa diversidade e nossas potencialidades sexuais em justificativa para a engrenagem da exploração do trabalho que com suas jornadas de trabalho exaustivas roubam toda nossa energia e nossas possibilidades. Para libertar toda nossa criatividade, e não para que possamos existir tais como somos hoje, não aprisionadas a uma obrigação de ser feliz individualmente, nas realizações pessoais, de um amor romântico, de inclusão na ordem capitalista.

Então o marxismo como uma ciência a ser aplicada para pensar o problema particular de nossas identidades trans, ou de forma mais abrangente, a cada vez mais crescente negação de uma imposição de gênero normativo adequado a padrões estereotipados, a cisnormatividade, pode nos ajudar a compreender e resgatar o melhor da história da luta pela nossa liberação e os desafios de hoje.

Você é trotskista há muitos anos, pode falar sobre o significado das ideias de Trótski, como a Revolução Permanente, na luta pela libertação trans?

Um dos argumentos que mais buscou se cristalizar dentro dos movimentos de combate às opressões é de que o Estado capitalista poderia arbitrar sobre as opressões. Se criou uma ilusão que as democracias capitalistas poderiam de alguma forma transformar o conteúdo de classe do Estado. Creio que Trótski, um dos principais dirigentes revolucionários da Revolução Russa, tem uma contribuição fundamental para pensar a emancipação trans, porque é muito interessante como estas questões sobre o papel do Estado são uma grande preocupação de milhões de jovens pelo mundo, que não têm nenhuma confiança na polícia ser reformada, e que também exige que seus gêneros não sejam tipificados pelo Estado e passe por sua regularização. Ou as preocupações se temos garantias que o socialismo poderá garantir a nossa libertação.

Trótski não era ingênuo, e não achava que era fácil enfrentar séculos de ideologia patriarcal somente com a derrota do Estado capitalista e o surgimento de um Estado de transição para o socialismo. Mas apesar de não achar que era fácil, ele se dedicou para – apoiado em Marx, Engels, Lênin e a tradição revolucionária – poder avançar sobre estas reflexões em um pequeno livro chamado Questões do modo de vida. Sua concepção era de que considerava que fosse impossível separar o combate a toda forma de opressão do combate a toda forma de exploração, porque apesar de se tratarem de fenômenos diferentes, estavam entrelaçados, o casamento entre capitalismo, patriarcado e repressão sexual. Neste sentido, estas lutas não se separariam em etapas diferentes, primeiro a luta pela tomada do poder, e depois a luta pelas transformações da vida. Tampouco, uma não era independente da outra, mas estavam entrelaçadas no combate fundamental entre capitalismo e comunismo.

Um tema que abordei no lançamento do Transgender Marxism foi a relação entre uma das leis da Teoria da Revolução Permanente desenvolvida por Trótski após as experiências de revolução e contrarrevolução internacional, que fala sobre como a luta de classes não se encerra com a tomada do poder, mas se agudiza. E de como a revolução tem um caráter permanente na sua busca pela construção de uma nova forma de sociedade, não apenas nacional, mas mundial.

Essa ideia me parece fundamental retomar aqui, e que possa ser um objeto de maior estudo entre a comunidade trans, pois concentra os nossos anseios e sonhos de emancipação em torno das experiências concretas que chegaram mais perto disso se realizar. O marxismo, como tentei dizer brevemente antes, é uma teoria baseada na experiência da luta de classes internacional, busca fundir o melhor da tradição da luta pela nossa emancipação com a criatividade, a paixão e a energia das novas gerações. Isto serve para olharmos para o próprio movimento de libertação sexual e entender suas transformações internas e para onde queremos ir agora.

A Teoria da Revolução Permanente se contrapõe à ideia de que países do terceiro mundo, como o Brasil, teriam que esperar a revolução vir de países mais avançados. Contrapõem a ideia de que haveria países maduros ou não maduros para o socialismo e é intransigente em seu internacionalismo. E se falamos de emancipação trans e sexual, como poderia ser diferente? Como poderíamos pensar numa emancipação aceitando que milhões continuem tendo suas identidades criminalizadas?

Mas há uma última ideia que gostaria de ao menos citar nesta entrevista, que é a respeito de uma das leis desta teoria que é a de que a classe trabalhadora é, na época imperialista, a única classe progressista da nossa sociedade, capaz de transformar toda essa podridão capitalista. E que neste combate, é um dever dos revolucionários lutar para que a nossa classe, da qual a maioria de nós LGBT somos parte, possa tomar em suas mãos as nossas reivindicações e que ao se colocar em movimento possa garantir as condições fundamentais para o nosso livre desenvolvimento. Esta batalha para que a classe trabalhadora seja um sujeito capaz de arrastar consigo as demais classes sociais, que possa acolher e levar adiante de forma contundente as dores e os anseios dos mais oprimidos, precisa ser em enfrentamento com o Estado capitalista, que busca aparecer como capaz de arbitrar sobre os nossos direitos, enquanto sabemos que é, na verdade, o responsável direto por estruturar a sociedade baseada na desigualdade, na opressão e na exploração como engrenagem dos lucros capitalistas.


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