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Marighella, o filme: notas sobre patriotismo, luta armada e estratégia revolucionária

Letícia Parks

Marighella, o filme: notas sobre patriotismo, luta armada e estratégia revolucionária

Letícia Parks

Impossível não terminar Marighella, de Wagner Moura, impactada pela força, vigor e convicção revolucionária que marcou as vidas de todos os jovens e trabalhadores que fizeram parte da narrativa da luta contra a ditadura. Impossível não amargar a garganta de ódio da cena de sua morte, a expectativa que atravessa todo o filme para quem sabe o "fim" da história. Entre aspas porque ela não termina ali. A “verdade e justiça”, plano de fundo das mentiras e crimes dos militares, atravessam as décadas e chegam ao regime político de hoje, com a maior composição militar desde a ditadura que assassinou Marighella e outras centenas de divergentes; o olhar da jovem guerrilheira Bella, incendiado pelo luto, renova-se a cada nova morte pela polícia, a cada nova morte que poderia ser evitada pela vacina. Nessas notas sobre patriotismo, luta armada e estratégia revolucionária, buscamos resgatar alguns dos debates que se tornam fios de continuidade para forjar respostas à histórica crise econômica que vivemos - à esquerda e à direita.

Memória de um tempo
Onde lutar por seu direito
É um defeito que mata
São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens
São sementes espalhadas nesse chão
Elza Soares - Pequena Memória de um Tempo Sem Memória

Há pouco mais de duas semanas assisti o vencedor do Oscar Judas e o Messias Negro, e é preciso dizer que os filmes estadounidense e brasileiro dividem a virtude de representar a crueldade, violência e sadismo que compõem o pensamento e a ação dos fascistas, sejam eles membros de um regime democrático, como o norte-americano da década de 1960, ou de uma ditadura assassina como a do regime brasileiro pós-golpe de 1964. O emblema do fascismo se repete, nos dois longas, na imagem da morte negra. Seguida de uma perseguição sangrenta, que acumula corpos negros, operários e jovens no caminho, a morte dos líderes Fred Hampton e de Marighella carrega um simbolismo cruel: enquanto dorme ou desarmado, está reservado ao destino de qualquer divergente do sistema capitalista a execução sumária no auge de sua vida. Mas diferente do que Hollywood pode estar tentando nos dizer, ainda que o plano para todos nós seja ter a voz calada pela instituição irreversivelmente racista e anti-operária que é a polícia, nem ela, nem nenhum racista fardado está protegido da justiça que se pode promover no tribunal da luta de classes, que pouco mais de uma década após a morte de Marighella, poderia ter inclusive derrotado a ditadura com revolução, não fosse a ação de controle e conciliação articulada por tantos burocratas sindicais, dentre eles o próprio Lula, que nos caminhões de som rasgava a memória de tantos lutadores abatidos pelo regime militar ao clamar aos grevistas do ascenso de 1979 que “essa greve não pode ser política, ela é pelos nossos salários” [1].

Bruno Gagliasso interpreta o delegado Flávio, que evoca a sinistra figura do delegado Sérgio Fleury, mas também de outros personagens pintorescos da ditadura militar brasileira. Como diz o ator, “a realização desse filme é uma porrada, um grito de resistência. Marighella existe para lembrar às gerações mais novas o que foi a ditadura e mostrar que vale à pena estar do lado certo da história”. E em outra entrevista, falando do seu próprio personagem, diz que “foi preciso levar em conta o momento atual que estamos vivendo na construção dessa figura tão controversa. Acredito que compreender nossa atual conjuntura e dialogar com nosso passado tem um papel importante para o Brasil. Há uma preocupação em fornecer os elementos para o público estabelecer o contraponto entre Lúcio e as ideias libertárias de Marighella”. Quantos projetos de Lúcio estão sendo tecidos nos porões de quarteis e delegacias, com o incentivo de Bolsonaro e os generais?

Entre 1964 e 1968, com os sindicatos e as organizações tradicionais da esquerda desarticuladas pelo golpe depois de terem sido derrotadas sem apresentar batalha, novas organizações surgem, se apoiando no espírito combativo de uma juventude inspirada pela revolução cubana e pela revolução chinesa, que responsabiliza o PCB e sua linha colaboracionista pela derrota.

Marighella é um símbolo da resistência e da coragem dessa geração, como o filme anuncia no seu início, coroado pela brilhante interpretação de Seu Jorge. Desde a primeira cena se mostra a que veio: num diálogo com um amigo de longa data do PCB, logo depois de ter saído da prisão, Marighella cobra a fatura da derrota à direção do PCB. “Vocês não fizeram nada, nós não fizemos nada, enquanto milhares de companheiros estavam sendo presos e assassinados”. “Isso é suicídio, Carlos”, alerta o seu amigo e dirigente do PCB sobre a decisão de Marighella de construir uma guerrilha no Brasil. Ambos estavam certos.

O contraponto que se estabelece a partir daí é o de dois patriotismos: um fascista, cuja defesa do Brasil reside na “caça aos comunistas”, e um antiimperialista e popular, bandeiras atrás das quais vão se organizar centenas e em alguns momentos milhares de jovens lutadores contra a ditadura. A existência desses dois “lados” não estabelece, entretanto, nenhum tipo de simetria. Não é possível dizer que houve uma guerra civil ou uma disputa de “igual pra igual” entre ditadores e ativistas políticos. Isso porque, primeiro, o regime militar contava com todos os meios necessários para caçar ininterruptamente militantes por todo o país, inclusive autorizado a realizar assassinados e torturas, protegidos pelo aparelho estatal, pelas mídias e pela justiça. Segundo, tratam-se objetivamente de duas defesas irreconciliáveis de Brasil: um falso nacionalismo absolutamente submisso aos interesses e vontades do imperialismo estadunidense, com métodos persecutórios, autoritários, racistas e anti-operários; e um outro difuso, com elementos da reivindicação de uma liberdade nacional, econômica e uma autonomia política que, de tempos em tempos, revelam-se absolutamente inexistentes.

O horizonte da libertação nacional, impactado pelas estratégias das revoluções chinesa e cubana, compõe o tipo de estratégia a qual vai se filiar Marighella e tantos outros, com um tipo de perspectiva estratégia que se pode chamar de foquismo, que consiste numa concentração de forças e ações radicais em um local, incluindo sequestro e assassinato de membros do Estado, para através dali realizar um “saque” do Estado burguês e colocá-lo sob a direção dos líderes guerrilheiros. O rumo a essa estratégia é inseparável dos erros e desvios que marcam todas as décadas de existência do PCB, mas que chegam no seu ápice na ilusão de que não era preciso preparar uma insurreição operária contra Jango, já que esse era considerado um “burguês amigo”, que sob pressão do movimento de massas iria a esquerda. A ausência de uma linha de independência de classe pavimenta o caminho do golpe e lança os setores pequeno burgueses arruinados nas fileiras dos defensores da ditadura militar.

Wagner Moura resume todo o complexo processo de rupturas com PCB entre 1964 e 1968 em uma cena, com destaque para as chamadas “dissidências” estudantis, que surgiram com força em primeiro lugar no Rio de Janeiro, depois em São Paulo e Porto Alegre. Essas rupturas não conseguiram também uma unificação, pois divergiam na estratégia, se era possível alguma articulação com setores da burguesia nacional contra o golpe, ou se se tratava de lutar pela revolução socialista; assim como em termos de tática, se era oportuno e correto se lançar à luta armada, quando se deveria fazê-lo, se o foco deveria ser a guerrilha urbana e rural etc. A angústia por agir, contra a paralisia do Partidão, expressava um sentimento de época, o de buscar reverter o golpe de 1964, ainda que de forma voluntarista pegando em armas contra a ditadura. Em tempos de golpe institucional, de governo Bolsonaro e ameaças de autogolpe e de passividade de todo arco opositor, a mensagem é mais do que sugestiva.

O panorama histórico é talvez uma das maiores qualidades de um filme cheio delas: a beleza das cenas, uma trilha sonora impecável e a força da trama que nos empurra necessariamente a pensar sugestões sobre o nosso presente.

Luta armada e estratégia revolucionária

“Quem pensa que é necessário renunciar à luta física deve renunciar a toda luta, pois o espírito não vive sem a carne.” (Leon Trótski, Aonde vai a França?)

A necessidade de agir está no primeiro plano de todos os minutos do filme, mas não de qualquer jeito. Existe uma crítica, ainda que sutil, à estratégia guerrilheira, que ainda que tenha se feito escutar pelas massas populares e contado com o heroísmo corajoso de jovens combatentes, provou-se uma tragédia geracional, que levou a uma separação importante entre a vanguarda revolucionária e os movimentos de massas, diminuindo os custos políticos dos assassinatos e desaparecimento de quase toda essa vanguarda. “Eles podem matar as pessoas, mas não as ideias”, repete mais de uma vez ao longo da trama o personagem de Carlos Marighella, revelando uma convicção nada cinematográfica, mas da verdade que percorreu a moral de milhares de jovens perseguidos e torturados, que se negaram a entregar suas companheiras e companheiros, que romperam com as famílias em nome da luta revolucionária e que mesmo frente à mais brutalizante pena que pode ser infligida, não se permitiram dobrar e corromper sob os coturnos dos milicos. Demonstraram que além de estar do lado certo história - a luta pela liberdade e pela libertação do jugo do imperialismo - esbanjavam superioridade moral sobre os canalhas que aplicaram torturas a serviço dos generais e da CIA.

A crítica que o filme faz à guerrilha, no entanto, peca ao dar razão aos velhos dirigentes que foram os responsáveis pela derrota em 1964. Se o voluntarismo pós golpe condenou uma geração à derrota, apesar de todos os alertas, o que fez o PCB em 1964 foi um verdadeiro crime histórico, do qual o Partidão jamais se recuperou. Em 1964, era correto e necessário organizar a resistência de massas, inclusive armada, para resistir ao golpe. Era possível se apoiar nos marinheiros rebelados, nos sargentos que se opunham ao Alto Comando e na profunda mobilização camponesa e operária, para convocar uma greve geral e organizar comitês de autodefesa armada na cidade e no campo contra o golpe. Marighella era parte da direção desse partido no calor dos acontecimentos e foi parte desse erro fatal, mas soube retrospectivamente encarar esse balanço. Depois do golpe, entretanto, as condições haviam mudado e era necessário passar a preparação das condições para um novo levante de massas e não se lançar a uma resistência armada isolada das massas, o que significava construir no movimento operário e estudantil correntes clandestinas que crescessem e se preparassem para uma luta massiva contra a ditadura. Enquanto o PCB nutriu mais esperanças nos acordos com a burguesia nacional renunciou à “luta da carne” que seria auto organizar as grandes massas trabalhadoras, aos guerrilheiros faltou voltar os olhos a uma análise precisa da nova situação profundamente reacionária e frente a isso construir táticas de acúmulo de forças para a partir daí passar ao ataque. Não se trata aqui, portanto, de renunciar à luta física, pelo contrário. Trata-se de acumular forças suficientes para ser capaz de através da luta física vencer definitivamente.

É nesse sentido que vai elaborar Leon Trótski que “a vitória não é o fruto acabado da ‘maturidade’ do proletariado. A vitória é uma tarefa estratégica” [2]; dito de outra forma: ainda que a classe operária seja maioria, tenha mais força e mais condições materiais de resolver todos os dilemas da realidade, perceber isso e voluntariamente ir à guerra armada não resolve o problema, é preciso construir um conjunto de táticas que permitam que essa maturidade material da classe trabalhadora como classe em si se torne para si, ou seja, consciente de sua própria tarefa e decidida a tomar o poder. Isso só é possível com pensamento estratégico.

O debate de estratégias é também o que permitiria ver esse longa sem produzir um mito, um Deus ou qualquer tipo de imagem absolutizada desse líder. Marighella atuou sob as contradições de décadas na militância dentro do stalinismo, o que o levou a ter sido responsável por exemplo pela expulsão de Patrícia Galvão, a Pagu, do PCB, sob o argumento de que performava “atitudes escandalosas de degenerada sexual”. Dentro do PCB até 1967 - ao menos 30 anos de uma doutrina de perseguição aos trotskistas - fez de Marighella até sua ruptura um ferrenho anti trotskista, que contribuia ao isolamento e perseguição de militantes de distintas correntes trotskistas pelos membros do PCB, em especial em São Paulo, para onde foi enviado pela direção central do PCB na década de 1930 para estancar a ferida da maior ruptura trotskista no país [3]. Mil eventos da realidade passam a frente de seus olhos que poderiam comprovar a falência estratégia dos PCs - revolução húngara, radicalização conservadora contra os direitos das mulheres, rupturas de camadas por crítica à burocratização do Estado Soviético e, consequentemente, da III Internacional, e inclusive o próprio golpe de 1964, balanço que Marighella tarda 3 anos em realizar, rompendo apenas em 1967.

Esse Marighella dirigente partidário e teórico da revolução aparece quase de relance, e se estivesse ali, fortaleceria o argumento de quem escreve essa resenha: esse filme é um enorme convite à recuperação de uma esquerda socialista que assim como Lenin, Rosa Luxemburgo e Leon Trótski, se dedique aos grandes debates de estratégia que podem nos permitir evitar novas derrotas como o golpe de 1964, uma importância profunda à organização e luta das mulheres e negros, e se afaste, frente às dificuldades da situação, de qualquer voluntarismo da guerrilha e do foquismo.

“Nós não fizemos nada”

A frase do Marighella de 1964 poderia ser reproduzida na voz e rosto de todos os dirigentes de massas brasileiros do nosso tempo. Entre 2016 e 2017, o movimento de massas começou a levantar a cabeça contra o odiado governo Temer. A resposta passiva das massas ao golpe de 2016 foi se transformando em protesto ativo até culminar na greve geral de abril de 2017. Foi a estratégia de conciliação de classes e a passividade das direções petistas que impediram que o movimento fosse além, podendo até chegar a derrubar Temer.

Bolsonaro assume a presidência num contexto diferente, quando esse processo de lutas já está derrotado. Hoje a oposição não é entre espera passiva ou oposição meramente parlamentar, tampouco a alternativa de um heroísmo abnegado de lideranças isoladas dispostas ao sacrifício. Enquanto forças se constróem em torno desse governo para oferecer um destino político de autoritarismo e violência sistemática contra os divergentes - e como um deja vu utilizar contra os críticos do governo a mesma lei que prendeu ativistas no regime militar, a LSN - a alternativa não pode ser uma CPI para salvar o regime - e não as vidas - a Frente Ampla com setores da burguesia que força a que se enterre o programa das massas trabalhadoras, ou esperar que venha Lula em 2022 e salve todos nós - sendo que ele só tem salva-vidas e bóias para a burguesia, a quem ele destina promessas de não reverter as reformas e de perdoar todos os golpistas de 2016.

Mais uma vez, a história se repete. Hegel escreveu que a “história se repete sempre, pelo menos duas vezes”, ao que Marx acrescentou: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Não saberia dizer se estamos vivendo a tragédia ou a farsa. Há tragédia no fato de que é possível reconhecer cada repetição por parte das burguesias a nível mundial dos mesmos métodos que usaram para lidar com as grandes crises passadas: arrocho salarial, demissões, fome, retirada de direitos, agudização da repressão. Maior ainda seria que se repita como tragédia o uso de regimes fascistas e ditatoriais, ao que Bolsonaro é apenas uma promessa do que pode ser. Há farsa entre os setores da esquerda reformista que fingem que estão fazendo o que há de mais radical - lutar por um impeachment que coloca Mourão no poder - enquanto ignoram a necessidade de defender cada direito democrático com uma Constituinte Livre e Soberana imposta pela luta.

É mais do que necessário fortalecer a unidade de todos os setores, as medidas de coordenação das lutas e apoio e a solidariedade para que ninguém lute isoladamente. E com isso chegamos, talvez, no ponto mais forte do filme: é preciso agir, mas pelos motivos certos. Pelos motivos certos é preciso enfrentar os milicos, a cadeia e a tortura. E aqui agrego: pelos motivos certos, é preciso abandonar a imbecilidade infantil de se negar ao debate de estratégias que favorece apenas as verdades mais adaptadas da esquerda reformista que concilia e controla nossas lutas. Assim como o xadrezista hábil sabe nomear cada movimento do tabuleiro, coordenando o movimento de suas peças rumo à derrota do inimigo, cabe a esquerda do séc. XXI nomear cada estratégia movida pelos corajosos combatentes do século passado, dizer o nome delas, rechaçar o stalinismo entreguista e conciliador, criticar respeitosamente o foquismo e o guerrilheirismo e batalhar pela construção de uma estratégia socialista que dispute a maioria e se prepare para um combate, e não para um parlamentarismo como o do PSOL, com figuras que flutuam sobre o movimento de massas e ignoram as tarefas da estratégia. Só assim é possível recuperar os fios de continuidade que há com uma perspectiva revolucionária em cada personagem, como Marighella, de quem trazemos coragem e antiimperialismo.

São vidas que alimentam nosso fogo da esperança
O grito da batalha
Quem espera, nunca alcança
Ê ê, quando o Sol nascer
É que eu quero ver quem se lembrará
Ê ê, quando amanhecer
É que eu quero ver quem recordará
Ê eu não quero esquecer
Essa legião que se entregou por um novo dia
Ê eu quero é cantar, essa mão tão calejada
Que nos deu tanta alegria
E vamos à luta
Elza Soares - Pequena Memória de um Tempo Sem Memória


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FOOTNOTES

[1relatos como esse e outros das ações de conciliação e colaboração de classe que cumpre Lula nesse ascenso podem ser vistas no documentário ABC da Greve

[2Leon Trótski, Classe, Partido e Direção.

[3Marighella, Carlos. Verbete no dicionário FGV
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