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LITERATURA | Machado de Assis e o racismo no Brasil

Pimenta nos olhos dos outros é refresco.

  •  ditado popular brasileiro
  • sábado 22 de novembro de 2014 | 21:05

    Do morro aos círculos da elite

    Pobre, negro e epilético. Nascido nessas condições, Machado de Assis encontrava-se em condições completamente adversas para que se tornasse, ainda em vida, um dos mais célebres brasileiros de todos os tempos, tendo sido fundador e o primeiro presidente da então renomada Academia Brasileira de Letras e sendo reconhecido como o maior escritor do país. O trajeto para que isso ocorresse, obviamente, não se deu sem muitas dificuldades.

    Crescendo no Morro do Livramento, o pai de Machado era pintor de paredes e sua mãe lavadeira. Seus avós paternos foram escravos alforriados. Conseguiu iniciar sua carreira literária graças ao “apadrinhamento” de Manuel Antônio de Almeida – autor do célebre “Memórias de um Sargento de Milícias” – quando trabalhava como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional. Fez carreira como funcionário público, em uma época em que a ascensão se dava por indicação direta da família real: em 1867 foi indicado por D. Pedro II como diretor-assistente do Diário Oficial, e pouco depois como assistente de diretor. Em 1888 recebe do Imperador uma condecoração oficial da Ordem da Rosa. Tendo sido indicado a concorrer ao cargo de deputado pelo Partido Liberal, Machado prefere retirar sua candidatura para não comprometer sua carreira.

    Esses pequenos apontamentos biográficos sobre o autor tem o propósito de demonstrar qual era a posição social à qual pertenceu em sua vida: um burocrata do Estado, tendo ascendido socialmente de forma surpreendente graças ao seu talento e, não menos significativamente, graças ao apadrinhamento de figuras importantes da classe dominante, constando entre elas ninguém menos do que D. Pedro II, Imperador do Brasil. Esse fato é determinante para a posição ambígua que terá a obra de Machado em relação ao racismo e a questão negra.

    As obras da juventude

    Os primeiros gêneros nos quais Machado se empenha são as crônicas, o jornalismo e as poesias, que foram seu ganha-pão em publicações como o Diário do Rio de Janeiro, o Jornal das Famílias ou a Semana Ilustrada. Seus primeiros romances, reconhecidos hegemonicamente pela crítica contemporânea como “obras menores”, são exemplares característicos dos romances de folhetim da época: incluindo histórias de amor e tragédias, são obras bastante distintas de seus romances da maturidade.

    Contudo, o leitor atento poderá ver como, mesmo nesse Machado mais “ingênuo” aparece um amargurado diagnóstico da sociedade de sua época, sob a forma de uma apreciação que deve muito à sua própria biografia. Um ótimo exemplo é seu segundo romance “A mão e a luva”, de 1874. Nele, uma disputa amorosa entre os pretendentes da jovem Guiomar tem como desfecho a vitória de Luís Alves, pois era neste que a moça encontrou o homem mais ambicioso e capaz de fornecer uma ascensão social mais garantida. Já nessa obra que poderíamos classificar como “Romântica”, Machado deixa claro que os interesses econômicos e materiais prevalecem sobre qualquer ideal pueril. É uma posição análoga à sua vida pessoal, na qual a busca pela ascensão econômica e social daria o tom, prevalecendo sobre qualquer possibilidade de atuação concreta contra aquilo que considerava injusto.

    A temática da escravidão e do negro está completamente ausente da obra de Machado de Assis em sua primeira fase. Isso não é à toa, e não ocorreu porque era uma temática pouco relevante para o autor: certamente não esquecera de sua infância marcada pela pobreza, de sua descendência de escravos, de sua pele negra que devia ter lhe custado uma boa dose de sofrimento em sua própria vida, a despeito de que tenha conseguido ascender socialmente. Ocorre que, a alguém interessado em galgar degraus de uma posição social humilde rumo à inclusão entre a intelectualidade da classe dominante – ainda mais alguém negro – certamente não era conveniente tocar em um tema tão polêmico antes de firmar seu lugar social. E foi o que Machado fez. Paralelamente à ausência do tema do negro nessa fase de sua literatura, se deu o processo de “embranquecimento” do autor. Hoje mesmo raramente encontramos alguma referência à cor de Machado que não o classifique como “mulato”, termo que deriva da palavra “mula”, designando a mestiçagem. Isso quando muito. Na época, certamente a referência à negritude de Machado tornava-se um tabu cada vez maior conforme ele era incluído nos círculos “bem pensantes” da sociedade carioca, que incluíam racistas empedernidos do calibre de um José de Alencar – grande amigo pessoal de Machado e autor das “Cartas a favor da escravidão”, escritas entre 1867 e 1868, defendendo a manutenção da instituição no Brasil quando já entrava em decadência mundialmente. Não seria demasiado classificar Alencar como uma espécie de “precursor intelectual” da teoria racista da “democracia racial” de Gilberto Freyre, a partir de romances como Iracema, em que apresenta uma visão idealizada e idílica da barbárie colonizadora dos portugueses como um simbólico romance entre uma índia e um português. Vale ressaltar que o nome de Alencar foi defendido por Machado para ser o patrono da cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras, tamanha era a admiração que nutria pelo seu amigo escravocrata.

    A maturidade: a crítica social de um cínico

    Quando Machado já se encontra em uma posição social de conforto, tendo seu nome assegurado no cânone literário e sua condição econômica garantida, o autor irá realizar o melhor de sua obra, expressando aquilo que merecidamente o consagraria como um dos grandes autores da literatura mundial. É então que aparece a sua crítica social. Esta, no entanto, não é a de um autor que se indigna diante de uma sociedade de miséria, empenhando seus esforços em transformá-la, como vemos, por exemplo, nos poemas abolicionistas de Castro Alves. É a de alguém que tem a consciência plena de que nada irá mudar, e cabe apenas um apontamento pessimista, cínico e resignado da tamanha hipocrisia de uma sociedade da qual o próprio autor se tornou um “medalhão”. O cinismo de Machado ao criticar a sociedade é o de alguém que sabe que está cuspindo no prato em que comeu.

    Para exemplificar essa postura, particularmente em relação à escravidão e ao racismo, tomamos aqui quatro exemplos. O primeiro é o famoso capítulo LXVIII de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “O Vergalho”, em que o antigo escravo alforriado de Brás Cubas, Prudêncio, é flagrado por ele castigando violentamente um outro negro publicamente, açoitando-o com um vergalho. A postura de Prudêncio, mesmo alforriado, diante de seu antigo senhor, é a de completa submissão, chamando-o de “nhonhô” e cessando os castigos ao pedido desse, respondendo

    Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede.” Assim fala Brás Cubas ao leitor: “Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!

    O romance, escrito e publicado antes da abolição, é o retrato mordaz de um típico representante da asquerosa classe dominante, encarnado no protagonista Brás Cubas. Mas, aqui, a crítica não está recaindo sobre Brás, e sim sobre o ex-escravo Prudêncio, que, após liberto, torna-se ele mesmo o carrasco de outro negro. Fica implícita a mensagem amarga do cinismo de Machado: quando é permitido ao explorado, torna-se ele próprio um explorador.

    Esse trecho de “Memórias Póstumas...” é o único que aborda a questão ainda antes da abolição. O texto seguinte que queremos abordar é uma crônica publicada poucos dias após a promulgação da Lei Áurea sob pseudônimo na coluna que Machado de Assis redigiu entre 1888 e 1889 denominada “Bons Dias!”. Não à toa Machado escolhe não assinar os textos, pois assim desfruta de um pouco mais de liberdade para expor suas posições sobre a escravidão (tema de diversos textos da coluna) e outros temas políticos, sem que tenha que se comprometer publicamente com elas e, assim, colocar em jogo seus próprios privilégios sociais. Na crônica intitulada “Abolição e Liberdade” o autor aponta de forma bastante sarcástica para o “jogo de aparências” da abolição da escravidão no país, em que os negros foram alforriados para permanecer na mesma condição de exploração e miséria que antes. Trata-se de um senhor de escravos que, de forma hipócrita, alforria seu escravo poucos dias antes da abolição, fazendo um jantar onde se compara a Jesus Cristo e louva sua própria suposta generosidade. Em seguida, contrata o seu escravo alforriado por um salário de miséria para continuar exercendo a mesma função de antes. E agrega:

    Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

    Fala o (ex) senhor que continua a dar “pontapés (...) um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe de besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre”. O senhor irá concorrer a deputado, fazendo da sua “boa ação” propaganda eleitoral. Machado mostra de forma aguda como a abolição da escravidão no Brasil foi um jogo de cena, uma mudança para não mudar nada, mantendo os negros na mesma condição social.
    Os outros dois textos são contos pós-abolição assinados pelo autor; contudo, se ambientam na época da escravidão: O caso da vara, de 1891, e Pai contra mãe, de 1898. No primeiro, Damião, um jovem seminarista foge, abrigando-se na casa de Sinhá Rita, a quem pede para convencer seu pai de que ele possa não retornar ao seminário. Damião se apieda de Lucrecia, uma criança negra de apenas onze anos que é escrava de Sinhá Rita e se ocupa de fazer bordados. Ameaçada de apanhar de vara se não terminasse sua tarefa, Damião resolve que irá “apadrinhá-la” para que não apanhe. Contudo, ao final do conto, é o próprio Damião quem entrega a vara na mão se Sinhá Rita para que aplique o castigo, ignorando os pedidos desesperados de Lucrécia para que a ajude. Damião escolhe entregar a vara para não arriscar perder o favor e, assim, continuar no seminário.

    O outro conto, muito mais contundente, é o “Pai contra mãe”, em que Machado trata do ofício de capturar escravos foragidos. Cândido Neves (o autor não poupa sua ironia nem nos nomes das personagens) se vê desempregado e com a esposa grávida: se não arrumar dinheiro, terá que levar seu filho para a roda dos enjeitados (onde se abandonavam as crianças para o cuidado do orfanato), perdendo a criança. Consegue capturar uma escrava foragida que lhe renderá uma boa recompensa, mas, a escrava, desesperada, implora que a deixe ir: ela fugiu porque estava grávida. Diz a Cândido: “Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte”. Cândido, ao arrastá-la pelas ruas, grita à escrava capturada: “Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?”. Após entregue a seu “dono”, pelo medo e o esforço, a mulher aborta. Cândido salva seu filho. Com a narrativa, Machado mostra brilhantemente a diferença do destino de um branco livre (mesmo que pobre) e uma mulher negra escravizada quando enfrentam o mesmo problema.

    Em Pai contra mãe não faltam colocações irônicas de Machado que denunciam o horror da escravidão, colocadas na voz do narrador, por exemplo, quando descreve a máscara de folha-de-flandres que se colocava para torturar os escravos e diz: “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel.” Ou ainda, descrevendo os castigos aplicados pelos senhores, afirma que “o sentimento da propriedade moderava a ação, pois dinheiro também dói.”

    Em que pesem sua ótima literatura em que a crítica à escravidão foi colocada com um genial sarcasmo e desnudou o ridículo da ideologia da classe dominante, o fato é que a posição de Machado de Assis em relação ao que sofriam os negros em sua época enquanto ele galgava os degraus da “sociedade bem pensante” é bastante análoga à de Cândido Neves ou de Damião: ele está na posição de quem assiste o sofrimento alheio, sabe de sua injustiça e dele se compadece... dentro dos estreitos limites em que isso não arrisque um milímetro a sua própria posição de privilegiado social.

    Além disso, chama atenção como os negros aparecem sempre como objetos em sua relação com a escravidão e o racismo, em uma posição passiva e submissa, completamente à mercê aos caprichos dos senhores sem nunca oferecer resistência. A única exceção é o caso de Prudêncio, que deixa de ser um escravo passivo para tomar de forma ativa o lado dos senhores que oprimem. Mesmo assim, diante de seu antigo senhor, Prudêncio se curva e se submete, agora já não mas pela imposição do castigo e da lei, mas meramente pela “força do hábito”. Retratar os negros de tal maneira é uma posição no mínimo curiosa para um negro que teve que se colocar como sujeito para fazer sua carreira literária, a troco, é claro, de engolir o sapo de “comportar-se bem” diante da classe dominante;
    Os negros escravizados no Brasil, bem diferente de como aparecem na literatura de Machado, não eram meramente “coitados submissos”. Criaram milhares de Quilombos, protagonizaram enormes lutas de resistência, mataram senhores, fugiram aos milhares. Resistiram, sempre. Muito diferente da postura cínica que apresenta Machado quando, por meio de seu irônico narrador em “Pai contra mãe”, afirma: “(...) os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada”. A ironia de Machado dirige-se não apenas contra os senhores, mas também contra ele próprio, que não deixa de ser um pouco cúmplice desse estado de coisas. E naturaliza o mito de que os negros eram passivos diante da escravidão. Não eram, e, diferente de Machado, nunca tiveram a opção de se contentar em escrever linhas mordazes satirizando a escravidão. Para resistir, precisaram lutar, e muito, como ainda hoje o fazem contra uma sociedade racista que relega a eles o que há mais brutal na exploração e opressão.




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