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MILTON CANTA ZUMBI. NOTAS

Romero Venâncio Aracajú (SE)

quarta-feira 21 de setembro de 2016 | Edição do dia

“Trancados na noite, milênios afora,
Forçamos agora
As portas do dia.
Faremos um povo de igual rebeldia.
Faremos um povo de bantus iguais
Na só Casa Grande do Pai”

Pode uma missa ser proibida pelo Vaticano e censurada pelo governo militar de plantão no Brasil? Pode, se estamos falando de uma missa que foi acontecimento único na história da Igreja católica no Brasil: A Missa dos Quilombos .Em 1981, quando Milton Nascimento fazia uma turnê pelo Brasil na divulgação do seu álbum Sentinela , recebeu um convite de Dom Helder Câmara (Arcebispo de Olinda e Recife) e Dom José Maria Pires (Arcebispo da Paraíba) para musicar a liturgia de uma “missa memorial” a ser realizada no Recife. Num intervalo entre uma apresentação e outra, Milton recebeu os textos de Dom Pedro Casaldáliga (Bispo em São Felix do Araguaia) e Pedro Tierra (nome artístico de Hamil ton Pereira, Poeta, militante e educador popular). Segundo a jornalista Maria Dolores, autora do livro “Travessia, a vida de Milton Nascimento”, nos primeiros dias, ele ficou olhando os papeis e ganhando inspiração para em uma semana musicar todos os textos enviados.

A primeira apresentação da Missa dos Quilombos aconteceu no final de 1981, em frente a Igreja do Carmo, no Recife, mesmo local onde foi exposta a cabeça de Zumbi, em 1695, depois de morto em combate no cerco ao Quilombo dos Palmares, promovido pelo bandeirante sanguinário Domingos Jorge Velho. A ideia, até pela data, era celebrar a memória na pessoa de Zumbi da condição dos negros na história desse país. Naqueles anos, a Igreja Católica no Brasil, respirava os ares da Teologia da Libertação e tinha nas figuras de Helder Câmara e José Maria Pires expoentes destacados. O bispo da arquidiocese da Paraíba é negro e homem que assumiu durante o seu episcopado a sua condição de negro. O que não é pouco numa Igreja que pouco se preocupou com os negros. Em momentos da histór ia foi ela mesma escravista. Três meses depois da primeira apresentação, a Missa dos Quilombos foi “encenada” ou “celebrada” no convento de Caraça, a 120 quilômetros de Belo Horizonte e depois gravada em disco (este que temos agora em CD).

Não demoraria muito para que a apresentação da missa em praça pública encontrasse resistências. A censura federal vetou quatro faixas do álbum, enquanto o Vaticano tratou de proibir a missa como um todo. Ela estaria fora dos padrões de liturgia solene praticada pelo catolicismo. Os bispos foram advertidos canonicamente e a policia federal passou a notificar o restante dos organizadores da missa. Em nenhum momento da história do Brasil uma missa foi tão badalada pela imprensa e discutida em lugares públicos em acaloradas conversas. O conservadorismo católico brasileiro não suportaria uma celebração eucarística feita exclusivamente para celebrar a memória de um negro rebelde e de maneira bem aberta ao tratar de liturgia. Era toda uma África num palco/altar em pleno coração do Recife e num lugar onde a escravidão negra era comércio legal e abençoada pela Igreja Católica.

A minha leitura é que estamos diante de uma obra-prima da arte musical contemporânea no Brasil. Uma obra que une canto e religiosidade (essa união é uma espécie de ethos do ser brasileiro). Uma “Ópera negra” a céu aberto. Além dos 11 cantos compostos especialmente para “Missa dos Quilombos”, a obra em CD inclui ainda outros quatro: a abertura Trancados na noite (texto de Pedro Tierra), Ony Saruê (folclore afro-brasileiro, adaptado do Ioruba para o fonética brasileira por negreiros), Peixinhos do mar (folclore brasileiro adaptado por Tavinho Moura do antigo Clube da Esquina) e Raça (músic a de Milton e Fernando Brant, gravada no disco Milton,de 1976). De todas as tocantes e belas músicas do álbum, uma merece destaque pela sua beleza singular e pelo encontro mais que feliz na música popular brasileira: a canção Invocação a Mariama, na qual Milton vocaliza sobre uma declamação de Dom Helder Câmara, que começa louvando a Nossa Senhora e termina com um forte discurso político e memorial da situação do povo negro.

Clamava o querido Bispo de Olinda e Recife: “Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo hoje, sem ligar ao que disserem. Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que é comunismo. Mas é o Evangelho de Cristo, Mariama”. Temos em CD esta obra magistral do cancioneiro brasileiro, na coleção Milton Nascimento da Abril Cultural. Para as gerações atuais e que não viveram aqueles momentos, temo s uma aula de música e religiosidade. Para os que viveram aqueles momentos, temos uma saudade que inunda os olhos onde aqueles venturosos tempos podem não mais voltar.


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