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Literatura latina no exílio: Solidão, arte e capitalismo em um conto de Roberto Bolaño

A condição do escritor perseguido e exilado, da arte em meio à bárbarie capitalista, do indíviduo criador preso à jaula de aço das necessidades econômicas que o impedem de fluir sua produção livremente, a perda da identidade e a alienação do indíviduo no continente estrangeiro, são algumas das denúncias contra o sistema de acumulação de mercadorias que atravessam todo o corpo literário do escritor chileno.

terça-feira 24 de novembro de 2020 | Edição do dia

Numa conferência realizada em Sevilha, seis semanas após a morte prematura de Roberto Bolaño aos 50 anos por conta de uma hepatite que lhe comprometeu o fígado, em guisa de homenagem ao escritor chileno, seu amigo e também escritor, o argentino Rodrigo Fresán, lhe rendeu uma dedicatória que além de o definir como o maior escritor de sua geração, declarou que "Roberto emergiu numa época em que a América Latina não acreditava mais em utopias, em que o paraíso socialista se tornou o inferno do capitalismo ditatorial, e essa sensação de monstruosidade, pesadelos despertos e constante fuga de algo horrível permeia toda sua obra.[1]
Não há do que discordar.

São muitas as passagens em seus textos em que abundam o terror piscológico, o enjoo do pensamento delirante que escapa ao controle de seus personagens, imagens de horror que saltam da mente destes e ganham vida própria nas páginas de seus romances, além da perda de identidade fruto do não encaixe à um novo território, o medo da violência sempre à espreita dos latino americanos exilados em qualquer parte do mundo, longes da terra natal tomada pelas botas dos soldados da reação e pelos canhões e pelas torturas das ditaduras dos anos 60 e 70, a paranóia, a pobreza, o desterro.

Sujeitos sombrios, rancorosos, escritores menores que tem de transformar sua arte em pura mercadoria pra sobreviver no estrangeiro, ou relegar a dedicação à escrita ao segundo plano, pela necessidade de ganhar a vida em empregos sempre instáveis e precários. Intelectuais emaranhados em teorias complexas e por isso vazias (É exemplar a passagem incluída em seu livro mais extenso e famoso "2666", em que o personagem Amalfitano, professor de filosofia da Faculdade de Sonora no México, pendura um livro de geometria no varal nos fundos do quintal de sua casa, para que diante da chuva, do sol e do vento, este "aprenda algo da vida").

Em suma, personagens criados em meio ao estabelecimento do neoliberalismo via Chicago Boys no Chile e em quase todo o território da América latina, que sofrem todo o peso da brutalidade do que significa a perda das relações sociais, imbuídos da alienação mais severa, experimentando o contato com o mundo que os cerca e seus próprios valores e sentimentos e atividades, como o exercício da escrita, a função da arte, o amor e a amizade, a partir do desencontro, do engano e do erro, isolados como indivíduos. Não à toa a paisagem Bolañesca por definição é o deserto. E que mesmo que apresente repetição e imponha o inescapável, seus personagens ainda assim resistem, ainda buscam o amor e a amizade, a escrita e a função da arte, mesmo que violentados e fragmentados. Como não poderia deixar de ser, numa sociedade de classes.

Roberto Bolaño cumpriu de modo impecável a dura tarefa conferida à literatura que representa o século XX. Numa sociedade em que imperam a violência mercantilizada e jogos literários banalizados, ou para usar o termo de Guy Debord, crítico caro para Bolaño, numa "sociedade do espetáculo" o grande desafio de um autor é pensar o mundo e dar forma estética à brutalidade sem transformar a arte em mais um clichê sentimentalista e espetacularizado

O filósofo, escritor e músico brasileiro Vladimir Safatle, ao buscar definir o que existe de central em toda a larga e multifacetada obra de Bolaño, o coloca como um escritor latino americano por excelência, no entendimento de que a América Latina não é outra coisa que "O nome que nós damos a uma forma específica de violência"[3], uma violência não somente encerrada no colonialismo Europeu, mas no ciclo de repetições de terror de Estado, baseado sobretudo na morte e no desaparecimento, e que além da brutalidade que desfacela o corpo encontra uma outra maneira de apagamento: o apagamento da memória.

Assim, a literatura de Bolaño vai lidar, em todos os momentos, de maneira direta ou oculta, com esse dado inicial de violência estatal sob formas sempre distintas e renovadas, somado à violência do exílio, que é a do escritor e do intelectual sem território, e que tem no ato de rememoração da vida deixada pra trás, no continente perdido, sua resistência. Se como diz Marx a história da sociedade até nossos dias é a história da luta de classes, e por isso diz Benjamin que todo documento de cultura é ao mesmo tempo um documento de bárbarie³, o universo literário de Bolaño assume, de fato, essas elaborações a partir de uma forma literária e criativa autenticamente latino americana.

Por isso a obra do escritor chileno escapa, de maneira sempre escorregadia e surpreendente, da coesão e da estrutura mercantil tão própria dos best sellers e das produções ao estilo streaming, com seus roteiros sempre direcionados à assimilação passiva. Falando desde o espaço do autor expatriado e de um tempo de perseguições à farda e fogo da esquerda latina que sonhava transformar o mundo e superar a miséria do real capitalista, a coesão seria aceitar a ordem e os valores do mundo burguês que então vestia a máscara do fascismo.
A impossibilidade da coesão, sempre à espreita nas páginas de suas dezenas de romances, contos e poesias, é a transposição na literatura da fragmentação imposta pela tortura, pelo assassinato e pelas revoltas e sublevações interrompidas contra o regime militar, que serve sempre como pano de fundo pra existência degradada e o desgraçamento de seus personagens.

O escritor sem território

Roberto Bolaño (1953 -2003), nascido em Santiago do Chile, filho de pai caminhoneiro e mãe professora, passou a infância em várias cidades chilenas, como Valparaíso, Quilpué, Viña del Mar e Cauquenes, sofreu de dislexia e por isso recebeu contantes ataques dos colegas de classe, o que desde cedo o ajudou a definir sua personalidade eremita e independente. Quando tinha quinze anos, sua família se mudou para a cidade do México.

Durante a adolescência leu vorazmente, escreveu poesia e abandonou os estudos para regressar ao Chile poucos dias antes do golpe que depôs Salvador Allende para formar parte da resistência contra a tomada de poder dos militares, encabeçadas pela CIA, na figura de Augusto Pinochet [4]. Ligado à um grupo Trotsquista, foi preso e libertado algum tempo depois, já que dois dos soldados responsáveis por guardar sua cela eram amigos de infância. Passou oito dias na cadeia, e sua experiência está relatada em dois contos, o primeiro "Carta de dança" traz seu próprio ponto de vista:

“(...) nas horas mortas eu podia ouvir eles torturando outros; eu não podia dormir, e não havia nada para ler exceto uma revista em inglês que alguém havia deixado para trás. O único artigo interessante nela era sobre uma casa que havia pertencido a Dylan Thomas...Eu sai daquele buraco graças a um par de detetives que haviam estudado comigo no colegial, em Los Angeles (bairro chileno)”

E o segundo "Detetives" é descrito a partir do relato dos carcereiros.

De volta ao México, fundou com amigos o Infrarrealismo, um movimento literário punk-surrealista que defendia o livre trânsito entre vida e poesia, e se opunham aos moldes acadêmicos vigentes, encarnados entre outros, na figura do prêmio Nobel de literatura, o mexicano Octavio Paz. Leitores do Manifesto por uma arte independente, de Trotski e Breton, o manifesto do movimento infrarrealista traz referências ao texto do revolucionário russo e do pai do surrealismo [5].

Nos anos setenta, Bolaño vagabundeou pela Europa, lavou pratos em restaurantes, trabalhou nas feiras de artesanato ou como guarda noturno de campings, após o que se instalou definitivamente na Espanha junto à esposa, Carolina López e seus dois filhos, Lautaro e Alexandra. Aí, dedicou os últimos anos da sua vida à escrita.

Ainda que escrevesse desde a adolescência, toda sua obra se concentra em aproximadamente dez anos de carreira, pois só começou de fato a publicar seus livros quando sofreu sua primeira crise hepática, e se deu conta do pouco tempo de vida que ainda tinha pela frente. Pressionado pela necessidade de deixar algo de renda para sua família, Bolaño passou a escrever de maneira alucinada e febril, no que um amigo próximo, o escritor espanhol Enrique Villa Matas se valeu de uma metáfora kafkiana pra descrever a entrega de Bolaño à produção literária: "Tirar Roberto da escrivaninha seria como tirar um morto da sepultura"[6]. Foi assim então, trabalhando várias noites seguidas, que conseguiu produzir tanto em um espaço de tempo tão curto, até o momento de sua morte, em 2003.

Os personagens sem território

É evidente a correlação entre a vida pessoal do escritor chileno e os personagens e acontecimentos que se desdobram em seus livros. A violência, o exílio, a dedicação apaixonada pela literatura, a solidão, sujeitos frágeis, assolados por doenças de cunho físico ou psicológicos. Após elencar os aspectos centrais que permeiam as páginas de seus escritos e passar por sua biografia, nos é possível encontrar o fio condutor à costurar todo o universo bolañesco que se materializa num mosaíco ainda que aberto e interpretativo, delimitado pelas experiências e consequências sombrias e macabras que marcaram à traumas e perdas, a geração de escritores latinos contemporâneos à Bolaño.

A relação passiva do intelectual em face da monstruosidade e dos horrores da ditadura militar, como o padre jesuíta de "Noturno do Chile", o artista que se deixa contaminar pela degradação do regime político então em voga, assassinando cruelmente uma dezena de mulheres e as fotografando para uma exposição, como no caso do poeta de "Estrela distante" e a vida vazia dos críticos literários europeus que vão ao deserto de Sonora em busca do escritor alemão recluso e desconhecido Benno Von Archimbold, da parte que abre o enorme "2666", com suas mais de 800 páginas, contrastam com a perseverança de Auxílio Lacoutore, poetisa uruguaia presa no banheiro da UNAM pra se esconder da invasão do exército à universidade por mais de duas semanas, enquanto se alimenta de papel higiênico como uma resistência heróica à favor da poesia no livro "Amuleto", contrasta também com os jovens de "Detetives selvagens" que partem atrás da fundadora do real visceralismo para encontrar as suas próprias raízes ideológicas e literárias, e com o inabalável Amalfitano, professor à beira da loucura que busca manter o fio de sanidade diante da solidão do deserto, aonde divide a casa com a única filha na segunda aprte de "2666".

Tais aspectos inicialmente contraditórios mostram por outro lado a disputa de classes e do uso artístico que fazem distintas personagens, escancarando o fato, muito caro à Bolaño, de que o mundo da arte não pode ter significação em si, mas que somente podemos valorar os aspectos estéticos e políticos de um intelectual ou de um artista a partir da costura entre esses dois elementos, dos meios de produção e crítica atrelados ao objetivo com o qual uma obra está encarnada e desenvolvida. Em defesa do quê e para que tal objeto estético está voltado.

Além dos romances, Bolaño também deixou dois livros de poesias, pelo qual é pouco reconhecido, apesar dele próprio se definir antes de tudo como um poeta, e alguns livros de relatos curtos. Entre esses se destaca "Chamadas telefônicas", no qual está incluído o conto "Sensini". É justamente essa história breve, com menos de dez páginas, que nos serve de síntese em face dos temas mais próprios de toda sua obra, no que pese à largura e extensão de outros títulos. Obviamente, se trata de um condensamento, que em nada pode substituir de maneira isolada outros elementos da vida e obra do escritor chileno combinadas, como uma forma de entender a literatura bolañesca em seu conjunto. Por isso se optou por esta introdução, aonde se elencou o conteúdo das suas publicações e os fatos mais relevantes que tiveram vez em seu meio século de existência, dedicada quase que integralmente à literatura.

Dessa forma, o conto "Sensini" nos serve ao mesmo tempo como resumo e farol à iluminar as desventuras e os padecimentos de seus personagens mais característicos: a relação entre o exílio, o artista e o sistema de mercadorias em que estes estão afundados. Ou dito de outro modo, a relação entre solidão, arte e capitalismo em um conto de Roberto Bolaño.

A arte entre o valor de uso e o valor de troca

Sensini é o relato que abre o livro Chamadas telefônicas. Lançado em novembro de 1997 pela Editora Anagrama em Barcelona, é o primeiro livro de contos de Roberto Bolaño. Dividida em três partes, versam sobre esse mundo de miséria do escritor latino forçado a viver com um oceano de distância de sua terra natal.
Hemingway dizia que um bom relato deve ser como um iceberg [7]; o que se vê é sempre menos do que permanece oculto debaixo d’água, e entrega intensidade, mistério, força e significado ao que fica na superfície. Os contos deste livro cumprem com essa premissa. São relatos ao mesmo tempo abertos, nada previsíveis, aonde o que esta além da história que se conta é justamente o enigma que se tem de desvelar, nos tornando leitores detetives tragados pela melancolia e pelo desespero dos personagens que se debatem em busca de afirmação, de reconhecimento, de salvação da tormenta que sempre desaba sobre eles.
Não à toa, a epígrafe que abre o livro, dedicado a sua esposa, Carolina López, é um questionamento doloroso do escritor russo Tchekov: "Quem poderá entender meu terror melhor do que você?" Quem poderá encontrar a chave de saída da situação calamitosa em que se encontram estes personagens se não formos nós, seus leitores?

Sensini conta a história de Arturo Belano, alter ego de Roberto que retorna em diversos livros e outros relatos curtos do autor. Personagem chileno exilado na província de Girona, Catalunha na Espanha, que após perder o emprego de vigia noturno em um camping resolve participar do concurso literário organizado pela prefeitura de Alcoy, cidade valenciana, pelos prêmios em dinheiro que o certame oferece aos vencedores. Para sua surpresa, o narrador não apenas consegue o terceiro lugar como encontra em segundo o escritor argentino Luis Antonio Sensini, autor latino menor e pouco reconhecido, mas nascido nos anos 20 e de alguma forma uma referência para jovens artistas sulamericanos, nas palavras do anrrador Arturo Belano: "com poucos e fervorosos leitores", e com "livros publicados na Argentina e em editoras quase desaparecidas na Espanha" que "pertence a essa geração intermediária de escritores, nascidos depois de Cortázar, Bioy Casarez e Ernesto Sábato".

Apesar de não figurar entre os grandes da literatura argentina, Sensini, escritor mais experiente, é uma espécie de "modelo" para o narrador, pois é "não está demais dizer, meu autor preferido". Por isso Arturo não hesita em pedir para o ajuntamento de Alcoy o endereço do escritor argentino, que vive, também exilado, mas por conta da ditadura de Videla [8], em Madrid.
A partir de então se estabelece o contato regular, por cartas, entre os dois latinos. Num primeiro momento toda a troca entre eles é dada a partir de buscar juntos mais concursos literários, o que demonstra não apenas a pobreza econômica do narrador, escritor nunca publicado, mas também a do próprio Sensini, que inclusive vivia "num bairo feioso de Madrid com a esposa, Carmela, e a filha, Miranda, em um apartamento menor e mais pauperizado" do que Arturo, o que para este "lhe parecia injusto".

A imposição de transformar sua própria arte em mecadoria por um lado e o destino de exilado aparecem desde o primeiro momento para o narrador, em que este ao ler as regras do concurso de Alcoy e tomar ciencia de que pode se apresentar, além de conto, por poesia ou ensaio, descarta a primeira opção pois "sair a lutar com os leões com o que eu faço de melhor me parecia indecoroso" mostrando sua resistência em relegar sua obra poética, aquilo que tem de mais valioso, à maquina das competições e da transformação da literatura em simples valor de troca, e por outro lado, desiste de se apresentar em ensaio pois este deveria versar sobre a província de Alcoy, sua história, personagens e perspectivas de futuro. Aí, o peso de um estrangeiro forçado a viver longe de seu país natal por conta da violência de estado se coloca com todo o peso. O desconhecimento das cidades e provincias da Espanha, e da história espanhola em geral é tão absoluta, que marca a sensação de solidão e de des-pertencimento do narrador à seu novo território. Dessa forma, lhe resta apenas se apresentar em forma de conto.

Por sua vez, Sensini não apenas "é um caçador de recompensas profissional", como busca dar ânimo à Belano para que este não desista de procurar cada vez mais disputas e enviar todos os seus relatos, poesias e contos para as competições. O que escancara a diferença em relação aos concursos e a necessidade de relegar a obra literária aos ditames do mercado. No que tange a resistência de Arturo Belano e a não problematização de Sensin, não é tanto uma adaptação à-crítica do segundo, mas sim o olhar irônico que este desenvolve a partir da não escapatória de ter de sustentar uma família, pois como o próprio escritor argentino diz em resposta a uma das cartas "O ideal seria viver em Buenos Aires, escrever e viver em Buenos Aires, mas a realidade é a realidade, e é preciso comprar os porotos" .
Esta ironia se manifesta em alguns momentos, tanto no fato de que Sensini envia o mesmo conto pra diversos concursos apenas lhe mudando o título, já que "esses jurados não leem, ou leem apenas a metade das histórias que lhe enviamos", ou até mesmo quando segundo o narrador, este lhe escreve com cinismo ao se referir as entidades patrocinadoras, prefeituras e caixas econômicas, dizendo "esta boa gente que acredita na literatura" ou "esses leitores puros e um pouco forçados". E colocando claramente a separação entre arte e mercadoria que Sensini também estabelece pra si, ao "dizer para que eu não caísse no desânimo e mantivesse a perseverança" mas não "Perseverar nos escritos, mas sim nos concursos". Ou seja, a resposta de Sensini faz o corte entre o valor de uso na arte: "os escritos" que deviam ser preservados, e o valor de troca: "os concursos" aonde deviam sair à caça.

É somente em um segundo momento da correspondência, que por fim, "essa forma específica de violência chamada América latina" irrompe com toda a brutalidade. Quando a relação entre o argentino e o chileno se estreitam e a vida pessoal se abre nas cartas, Sensini dá a conhecer a parte trágica e o trauma que abre as feridas do distanciamento de seu país natal. Seu filho do primeiro casamento, Gregório Sensini, com o qual este não via "desde que tinha cinco anos de idade" se torna um desaparecido político da junta militar de Videla. A partir dessa revelação o conto de Bolaño ganha seu ar sombrio costumaz, jogando o leitor no horror labiríntico, na melancolia que tragam os personagens sempre em busca de um objeto abandonado, seja um amor perdido, um ato macabro que permanece oculto, um pesadelo recorrente, ou um familiar desaparecido por conta do massacre e da chacina que teve vez no cone sul latino americano durante as décadas de 60 e 70.

Burocracia militar, Bolaño e Franz Kafka

O primeiro aspecto que chama a atenção na história de Gregório Sensini é a semelhança de seu nome com o personagem de Franz Kafka do livro "A metamorfose"[9], Gregor Samsa. Se no escrito do escritor Tcheco "Após acordar de sonhos intranquilos" o personagem principal se encontra transformado, por oculto mecanismo, em um inseto gigante, a desumanidade também marca o destino do filho de Sensini, como que pré determinado desde o nascimento, ou de seu batismo, a encontrar este lugar de abandono e desaparecimento como um destino comum não somente à ele mas também a todos os nascidos e batizados na América latina diante da tomada do poder dos exércitos.

Assasinados, desaparecidos, exilados, empobrecidos, desumanizados, mas também inconformados, revoltosos, buscando afirmar a humanidade em meio à alienação e ao terror de estado, e ao contato com a arte em geral. Tais as semelhanças iniciais entre os personagens de Bolaño e de Kafka. É digno de nota o trecho de "A metamorfose" em que, escondido em seu quarto, o personagem de Gregor Samsa sai enfim da cama e arrasta seu corpo de barata para a sala aonde seus pais e irmã escutam dois músicos a executarem uma peça de música clássica. É aí também que este vai sofrer o golpe fatal que deixará seu corpo esmagado no chão da casa, como um recordatório de Kafka do que espera aqueles que queiram afirmar sua humanidade, em meio à época de irracionalismo no qual viveu.

É de maneira kafkiana que Bolaño nos mostra pela primeira vez a história trágica de Gregório. O conto que deu a Sensini o segundo lugar no concurso de Alcoy era um conto "em que o narrador ia para o campo porque na cidade seu filho havia morrido, não ficava nada claro, o caso é que no campo, um campo plano e um tanto ermo, o filho do narrador continuava morrendo, enfim, um conto claustrofóbico, bem no estilo de Sensini, dos grandes espaços geográficos de Sensini que de repente se reduziam até ter o tamanho de um alfinete, ou de um caixão"

Os relatos de Kafka, além da relação direta com o absurdo da Ditadura, suas perseguições muitas vezes ridículas (Como o caso muito conhecido da busca que soldados do exército brasileiro fizeram na casa do poeta Ferreira Gullar, em que levaram entre outros livros considerados "subversivos" uma enciclopédia sobre cubismo, ao pensarem que invés de uma corrente artística se tratava de um documento comunista sobre Cuba) e a crítica mordaz e feroz da opressão do indíviduo aos ditames da burocracia, como em "O processo" [10], também estabelece outro vínculo entre Bolaño e o escritor Tcheco e os dois personagens do conto Sensini: o da dedicação da vida à literatura, mesmo nas situações mais adversas.

Em seu livro "As ideias estéticas de Marx" [11], o espanhol exilado no México, filósofo marxista Adolfo Sanchez Vasquez, traz a tona em seu escrito sobre Kafka um desabafo presente no diário deste, aonde o mesmo faz o balanço de sua tentativa de equilibrar as obrigações no escritório em que trabalha com o ofício de escritor: "Estou empregado numa ciência de seguros sociais. Ora, estas duas profissões não se podem nunca conciliar, nem conformar-se de um modo equitativo. A menor felicidade numa delas equivale a uma grande desgraça na outra. Se uma noite escrevo algo bom, no dia seguinte queimo no escritório e não posso fazer nada. Este ir e vir é-me cada dia mais nocivo. No escritório cumpro exteriormente com minhas obrigações, mas não com minhas obrigações íntimas; e cada obrigação íntima não cumprida se converte numa infelicidade duradoura" [12]

Nem Kafka, nem Bolaño, inventaram o caráter absurdo e irracional que as relações humanas adotam na sociedade capitalista. A irracionalidade delas existe na vida real. Contribuiram pra revelar essa irracionalidade ao mostrar o absurdo do mistério, da condenação por juízes ou por homens fardados, em que tanto os personagens de Kafka quanto o filho de Sensini tem de pagar, até com a própria vida.

Assim como o absurdo da tentativa de lutar contra o cerco inexorável que estreita e angustia suas existências, de maneira individual e isolada. Tudo isso é absurdo, como o são tantos fatos que se dão no capitalismo: por exemplo, que o trabalhador, o criador de riquezas, se empobreça enquanto o capitalista, que não cria, se enriqueça com elas, tal qual um parasita. Que as coisas adquiram um tal poder que cheguem a se impor aos próprios homens e mulheres como seus dominadores, etc...

Desaparecimento e literatura

Em meio a esse cenário desolador e hostil, é natural que o narrador do conto de Bolaño entenda o processo de escrita atrelado à necessidade de fazer dinheiro como uma "corrida interminável, sem linha de chegada", como chega a dizer em determinado momento do conto, e que Sensini lhe diga numa das correspôndencias que a literatura nestas condições: "além de absurda é também sem sentido".

Muitos foram os artistas assassinados e desaparecidos nas ditaduras argentina e chilena. Entre os porteños podemos citar o escritor Oesterhead, criador do universo de ficção científica "O eternauta", ou mesmo o também escritor Rodolfo Wlash que militou nas fileiras guerrilheiras da FAP e também entre os Montoneros. Do lado de lá da cordilheira, há o caso emblemático de Victor Jara, que inclusive teve os dedos da mão esmagados "pra nunca mais tocar seu violão" antes de ser assassinado, e Jorge Muller Silva, cinegrafista do excelente documentário "A batalha do Chile", desaparecido após ser sequestrado pelos carabineiros em novembro de 1974.

Com a ditadura ainda bem estabelecida no início do conto, Sensini não poderia ainda regressar à Buenos Aires pra ir em busca do paradeiro de seu filho. Somente com o fim do regime militar, num ponto já avançado da história, é que o personagem ficcional de Bolaño pode enfim voltar ao seu país natal pra tentar, ao menos, encontrar o corpo de Gregório. Este inclusive, é o conteúdo da última carta que o escritor argentino envia pra Arturo. "Era uma carta de despedida. Dizia que voltava para a Argentina, que com a democracia ninguém mais ia impedi lo de fazer o que quer que fosse e que portanto era inútil permanecer mais tempo fora. Além disso, se quisesse ter certeza do destino final de Gregorio, não tinha outro jeito senão voltar. Carmela, sua esposa, iria com ele, mas Miranda fica. Escrevi imediatamente para ele, para o único endereço que tinha, mas não recebi resposta."

A despedida entre os dois escritores caça recompensas porém, não estabelece o ponto final do impacto que a amizade deixa no narrador. A incompletude de uma relação que nunca pôde se materializar presencialmente ( são muitas as tentativas dos dois se encontrarem em Girona ou em Madrid, sempre frustradas), a manutenção de Arturo na Catalunha, o paradeiro incerto de Gregorio que nunca nos é revelado, a morte de Sensini na Argentina, com o qual o narrador toma conhecimento por uma nota pequena no jornal, ou por que lhe contou alguém que este já não conseguia lembrar, sem sequer dizer qual a causa do falecimento, ainda mantém as coisas fora de lugar. Um exílio que não termina nunca de passar, uma solidão que ainda se mantém entranhada nos pesadelos e no cotidiano do narrador, ainda em voltas com seu próprio "elo perdido". Tal não seria outro que justamente Miranda Sensini, a filha do escritor argentino.

É em meio à miséria de relações mais absoluta, que Arturo Belano vai encontrar na paixão e no amor, ainda que platônicas, a peça que vai lhe possibilitar que o mundo de verdade se mova, que tudo se encaixe para que a vida interrompida pelo exílio enfim possa seguir em frente, como uma redenção pessoal.

O encontro como ruptura da violência das repetições

Após tomar conhecimento de que Sensini vivia em Madrid com a esposa e sua filha de dezessete anos, e pedir para seu amigo epistolar que lhe enviasse uma foto da sua família, é que o narrador se dá conta de "que meu objetivo ao fazer esse pedido, e isso só me ocorreu após pôr a carta no correio, era no fundo conhecer a Miranda". Dela, Arturo Belano sabia que enquanto Sensini se dedicava aos concursos e Carmela trabalhava "ocasionalmente em bicos editoriais e dando aulas particulares de inglês, francês e hebreu, além de em uma ou outra ocasião ter de se dedicar a limpar casas e esfregar pratos pra complementar a renda", Miranda por outro lado "só se dedicava aos estudos e seu ingresso na universidade era iminente". Quando perguntou a Sensini se sua filha também iria se dedicar a literatura a resposta do argentino foi irritadiça e cortante: "É óbvio que não, por Deus! a menina estudará medicina!".

Ao receber a carta contendo a fotografia, o encanto do narrador se revela de imediato. Na imagem estavam "Um velho e uma mulher de meia idade junto a uma adolescente de cabelo liso, alta e magra, com os peitos muito grandes. O velho sorria feliz, a mulher de meia idade encarava o rosto da filha, como se lhe estivesse dizendo algo, e Miranda contemplava o fotógrafo com uma seriedade que me pareceu comovedora e inquietante".

Diferente de quando falava de Gregorio, Sensini se colocava alegre ao discorrer sobre a filha nas correspôndencias. Miranda era jovem, tinha vontade de comer o mundo, dona de uma curiosidade insaciável, e além disso, dizia, era linda e boa.

"Se parece com Gregorio, dizia, só que Miranda é mulher (obviamente), e não teve de passar pelo que meu filho maior passou."

Após contemplar a fotografia uma e outra vez, e enviar uma foto sua como resposta à Sensini, aonde se encontrava muito magro, feio e com o cabelo mal cortado, o narrador escreve um poema, que não á toa, é o único conteúdo de seus escritos literários revelado no conto, já que versa também sobre seu amor platônico e sobre a situação de incerteza e de medo e de solidão que o absorve no exílio:

"Me lembro que escrevi uma poesia muito longa e muito ruim, cheio de vozes e de rostos que pareciam distintos mas que eram apenas um, o rosto de Miranda Sensini, e que, quando por fim podia reconhecê-la, lhe dizer Miranda sou eu, o amigo epistolar de seu pai, ela dava meia volta e começava a correr em busca de seu irmão, Gregorio Sensini, em busca dos olhos de Gregorio Sensini que brilhavam no fundo de um corredor em trevas aonde se moviam imperceptívelmente os vultos escuros do terror latino americano."

Anos depois, quando Sensini já faleceu, quando o próprio Arturo se pergunta porque ainda não havia queimado as correspôndencias entre ele e o escritor argentino, quando a democracia já havia se reestabelecido no cone sul da América, e apesar disso o narrador se mantém no continente europeu entrando e saindo de diversos empregos precários, por fim, a redenção acontece.

Numa madrugada, em que não consegue dormir, Arturo ouve batidas na porta de sua casa. Preocupado, pois não tinha amigos que iriam lhe fazer uma visita em qualquer hora do dia, ainda mais após à meia noite, ele abre a fechadura e dá de cara com Miranda Sensini. Ela, junto ao namorado também argentino (uma constante no conto, em que os personagens exilados só se relacionam com outros personagens latino americanos), está de passagem por Girona no meio de uma viagem que o casal quer realizar pelo norte da Europa, e que para economizar vão fazendo autostop na casa de conhecidos.

Abalado e surpreendido, o narrador não só deixa com que entrem em sua habitação, como lhes prepara algo para comer, além de ceder a cama de seu quarto no andar de cima para que possam descansar. Quando o casal se deita, triste e impossibilitado de dormir, Arturo resolve ligar a televisão e pegar uma garrafa de Coñac. Não demora muito pra que Miranda desça as escadas e se junte a ele no sofá. O diálogo que se segue é então um caminho torto e melancólico pra resultar na redenção do personagem principal.

A conversa é sobre literatura, é sobre as experiências de Sensini, que apesar de já ter recebido uma carta de Borges, de Cortazar, é visto por Miranda como o que é, um escritor menor que independente de onde esteja nunca poderá deixar de ser um escritor menor. "Na Argentina as coisas foram igual que aqui", ela diz em determinado momento. E quando o narrador diz que no teritório sulamericano as pessoas deviam lhe amar mais que na Europa, ela outra vez é enfática: "Igual que aqui, que em todos os lugares". Também falam sobre a viagem dela com o namorado, também falam sobre o paradeiro do irmão nunca encontrado, dos últimos dias de Sensini com vida.

Pela primeira vez em todo o conto se desenvolve, de fato, o encontro, e esse é o único desfecho positivo, lógico e racional de uma história em que a impossiblidade das relações parece intransponível. E não é outro senão isto o âmago, o mecanismo oculto que atravessa toda a obra de Roberto Bolaño. Em "Detetives selvagens" os membros do Infrarealismo saem em busca de Cesárea Tinajero, escritora desaparecida. Em "2666" são críticos literários europeus que partem atrás de um escritor recluso de paradeiro incerto. Muito dos contos presentes em "Chamadas telefonicas" também estão imbuídos da mesma premissa, o contato entre distintos personagens em suas diversas histórias se dá através de ligações por telefone, de pistas indecifráveis deixadas espalhadas pelas cidades, ou como no caso de Sensini, por meio somente das cartas.

É só através do encontro, entre Miranda e o narrador, que tudo pode começar a caminhar, que o passado pode de fato se tornar passado, que justamente aquilo que o capitalismo e sua forma ditatorial buscam estebelecer como uma barreira a partir dos meios mais abjetos e miseráveis, pode fluir. Que é o encontro dos sujeitos, a relação que só poderá se materializar de maneira ampla e permanente a partir do enterro do mundo voltado à acumulação de capital, mas que no âmbito ficcional de Bolaño se mostra no contato humano direto entre os indivíduos para além e a partir da literatura. Pois essa deve ser a função da arte no universo do escritor chileno, uma ponte que sirva pra unir os indivíduos antes fragmentados e ilhados entre si, um meio, uma ferramenta, à serviço do encontro entre os seres mutilados pela sociedade de classes.

Nada pode ser mais ilustrador disto do que a passagem final do conto: "Deixei passar uns segundos, peguei a garrafa de conhaque e a segui. Miranda estava debruçada no parapeito vendo as luzes de Girona. Bonita vista você tem daqui, disse ela. Enchi seu copo, enchi o meu, e ficamos um tempo admirando a cidade iluminada pela lua. De repente me dei conta de que já estávamos em paz, de que por alguma razão misteriosa tínhamos conseguido juntos ficar em paz e que daí em diante as coisas imperceptivelmente começariam a mudar. Como se o mundo, de verdade, se movesse. Perguntei que idade tinha. Vinte e dois, respondeu. Então eu devo ter mais de trinta, falei, e até minha voz soou estranha."

Roberto Bolaño e o exílio por si mesmo

Em relação a suas próprias peregrinações pelo mundo, em condições sempre paupérrimas e incertas e o abandono quase que absoluto do Chile desde que foi libertado da prisão pelos guardas que o conheciam no início da década de 70, Bolaño manifestou um desprezo se não pelo próprio país natal, mas antes pela própria ideologia nacionalista e ao mito de que a literatura possa ser reduzida as fronteiras de seu criador, como "literatura nacional", reafirmando o sentimento de que o escritor, sendo esse mesmo um trabalhador, ou um"operário das palavras", não tem e nem pode almejar ter pátria.

Bolaño tinha sentimentos conflitantes sobre seu país natal, que visitou apenas uma vez depois de seu exílio voluntário. Ele era notório no Chile por seus duros ataques a Isabel Allende e outros membros do establishment literário. Segundo o romancista e dramaturgo chileno Ariel Dorfman: "Ele não se adequava ao Chile, e a rejeição que ele experimentou o deixou livre para dizer tudo o que quisesse, o que pode ser algo bom para um escritor" [13]

É notório que em sua última entrevista, publicada na edição mexicana da revista Playboy [14], Bolaño tenha dito que "meu único país são meus filhos e talvez, ainda que em segundo lugar, alguns momentos, ruas, rostos e livros que estão em mim"

A rebeldia de Roberto Bolaño, expatriado, enfrentando os grandes nomes literários de sua época sem nunca cair no otimismo banal ou passivo, mas nos apresentando personagens presos a situações em que não podem romper sozinhos com a jaula de aço do sistema do capital, é o que traz todo o sentido e toda a força pra sua visão da arte em geral e a literatura em particular, que estabelece toda a responsabilidade e o engajamento possível aos artistas comprometidos com a classe trabalhadora e os valores anti-capitalistas, potencializando o caráter subversivo de toda sua obra. Não é fortuíto a partir disso lembrar do chamado do surrealista francês Pierre Naville, de que "É necessário organizar o pessimismo". Tal chamado desataria toda a potência dos personagens fragmentados, mutilados e ainda assim perseverantes e heróicos de Roberto Bolaño.

[1] http://www.enriquevilamatas.com/escritores/escrfresan3.html
[2]https://www.youtube.com/watch?v=h5eIywoJZWc&ab_channel=Litercultura
[3]https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3957253/mod_resource/content/1/Teses%20sobre%20o%20conceito%20de%20hist%C3%B3ria%20%281%29.pdf
[4]https://esquerdadiario.com.br/Chile-11-de-setembro-de-1973
[5]http://www.laizquierdadiario.com/Roberto-Bolano-y-Leon-Trotsky-una-inyuncion-necesaria-157316
[6]http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/LinguaEspanhola/artigos/4Xerxenesky.pdf
[7]https://www.bstorytelling.com.br/blog/teoria-do-iceberg-sua-marca-pode-dizer-mais-com-menos/
[8]https://www.dw.com/pt-br/ditadura-da-argentina-impunidade-mais-de-40-anos-depois/a-54359076
[9]http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00106a.pdf
[10]https://www.seculodiario.com.br/cultura/o-processo-de-franz-kafka
[11]https://diariandopedagogicamente.wordpress.com/2013/09/29/as-ideias-esteticas-de-marx-por-adolfo-vazquez/
[12]https://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/846196-cartas-e-diarios-revelam-mente-complexa-de-franz-kafka.shtml
[13] «A Chilean Writer’s Fictions Might Include His Own Colorful Past»
[14]https://estrelaselvagem.wordpress.com/2010/05/20/a-ultima-entrevista-de-roberto-bolano/




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