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Literatura e marxismo na revista Partisan Review

Afonso Machado

Literatura e marxismo na revista Partisan Review

Afonso Machado

Quando o filme King Kong estreou em 1933, os espectadores americanos sabiam que aquela monstruosa alegoria da depressão econômica não cessaria de rugir tão cedo sobre a cidade de Nova York. O monstro já estava no pedaço desde a fatídica quinta feira de 24 de outubro de 1929. A partir daquele momento em que a Bolsa de Nova York rachou no meio, arrastando posteriormente para o buraco as economias atônitas dos países capitalistas, a literatura não poderia ser mais um mero brinquedo de classe média.

Durante a Grande Depressão o proletário e o escritor, o escritor proletário e o escritor pequeno burguês que pretende ser a voz da classe operária, assistiam, no sombrio camarote da história, os liberais darem um tiro no ouvido.

Aquele foi o período histórico em que no salão de baile da burguesia os passos que acompanhavam a dança das ações milionárias de Wall Street , perderam definitivamente o ritmo. O discurso liberal emudeceu perante as falências bancárias. Assiste-se agora ao colapso da indústria, ao desemprego em massa. Assustada a pequena burguesia se metamorfoseia em proletariado. Mais do que perder o ritmo as pernas que dançavam nos Estados Unidos ao som do jazz e do tilintar das taças em que corriam litros de champagne, caíram e quebraram. A fratura exposta do sistema capitalista liberal obrigou os escritores a fazerem um Raio X daquela situação econômica e social. Mas enquanto alguns autores brincavam de “literatura proletária“, a crítica marxista séria e da pesada se concentrava na lendária revista Partisan Review.

A crise do liberalismo na década de 1930 colocava em dúvida o futuro do capitalismo e modificava de modo abrupto toda a superestrutura, todos os valores artísticos dos Estados Unidos. Uma potência capitalista que alimentara-se economicamente do sangue europeu espalhado durante a Primeira guerra mundial(1914-18), viu a euforia dos loucos anos de 1920 terminar repentinamente com o crash da Bolsa. Foi questão de tempo para que jovens escritores se dirigissem para o campo político da esquerda. Enquanto publicação destinada aos problemas da literatura revolucionária, a Partisan Review pertence a um raro momento da história dos Estado Unidos em que a intelectualidade não só não tinha medo do materialismo histórico como proclamava em alto e bom som a necessidade da revolução socialista.

A influência marxista na literatura

As coisas começaram a ficar vermelhas pra valer quando muitos trabalhadores americanos perceberam que a liberdade para o Estado liberal é a liberdade da classe que possui e controla os meios de produção. Não foram poucos os operários que no início dos anos de 1930 começaram a desconfiar da Constituição americana. O proletariado estava com o pé atrás perante o discurso patriótico dos “pais fundadores“ do século XVIII: a Revolução Americana de 1776, ou seja a Independência de 4 de Julho, foi um marco histórico que sob os auspícios do pensamento iluminista estabeleceu uma República moderna no novo mundo. Sem sombra de dúvida um marco histórico que inspiraria outras lutas revolucionárias no continente. Todavia, tratou-se de uma revolução de ricos comerciantes, latifundiários, senhores de escravizados...uma parcela dos trabalhadores americanos de 1930 não caia mais no papo furado do patriotismo, compreendendo a partir daquele momento que a revolução fundadora do seu país é um célebre acontecimento que integra-se ao ciclo histórico das revoluções burguesas.

Perante as lutas históricas do movimento operário norte americano a análise marxista adquire crescente relevância, muito especialmente a partir da influência internacional da Revolução russa de 1917, brilhantemente registrada pela pena do inigualável escritor e jornalista norte americano John Reed no livro Dez Dias que Abalaram o Mundo(1919). A influência do marxismo na vida política e na literatura em geral é evidente entre o ano de 1917 e a década de 1930. Leo Huberman em seu clássico História da Riqueza do Homem(1936) resume muito bem a situação:

(...) “Dezessete anos antes do fim do século XIX, Karl Marx morria. Dezessete anos após o início do século XX, Karl Marx torna a viver. O que com Marx era teoria foi posto em prática por seus discípulos: Lenin e outros bolcheviques russos, ao tomarem o poder em 1917. Antes disso, os ensinamentos de Marx eram conhecidos de um pequeno grupo de dedicados adeptos. Depois, esses ensinamentos atraíram toda a atenção do mundo“(...)

A literatura que tinha como base social os bobocas burgueses de sempre não ficou imune ao colapso econômico que arrasta-se pelos anos de 1920 e convulsiona a sociedade em 1930. A dramática situação social exigia uma nova literatura. Michael Gold demonstra com o romance Judeus Sem Dinheiro(1930) que a temática proletária estava tomando de assalto as letras americanas:

(...)“Certa noite, num palanque improvisado no East Side, vi um homem proclamar que do desespero , da melancolia e da fúria impotente de milhões de homens surgira um movimento mundial para acabar com a pobreza. Ouvi-o com atenção. Oh, Revolução dos trabalhadores, você me devolveu a esperança, a mim, rapaz tristonho e de ideias suicidas. Você é o verdadeiro Messias. Você destruirá o East Side e construirá dentro dele um jardim para o espírito humano. Oh, Revolução, que me obrigou a pensar, a lutar e a viver. Oh, grande começo!“(...).

Outrossim, neste processo literário de denúncia e agitação política que assume dentro da esquerda uma perspectiva internacional, verifica-se um crescente aparelhamento cultural realizado pelo stalinismo. Para os burocratas da literatura, as temáticas rural e nacionalista acompanhadas por um tratamento melodramático e contra revolucionário no plano do texto, deveriam orientar o trabalho dos escritores filiados aos PC´s. Esta política cultural importada diretamente de Moscou configura obstáculos para o desenvolvimento de uma literatura interessada, moderna e capaz de influir esteticamente sobre a consciência política dos trabalhadores. Foi o combate a estes elementos provenientes do stalinismo cultural que os chamados Intelectuais de Nova York, então entrincheirados na redação da Partisan Review, tiveram que assumir publicamente a partir do final da década de 1930.

A Partisan Review nasceu na cidade de Nova York em 1934. Foi uma iniciativa editorial do John Reed Club, instituição cultural do Partido Comunista na referida cidade. Naquele momento observamos uma espécie de segunda geração marxista que foi batizada como “os Intelectuais de Nova York“. Críticos e artistas provenientes da classe trabalhadora e de minorias étnicas, notadamente judeus, procuravam defender suas ideias políticas radicais através da escrita. A velha e charmosa máquina de escrever estava a postos num contexto efervescente em que despontavam iniciativas editoriais coloridas pelas tintas vermelhas do bolchevismo. Uma perturbadora produção intelectual emergia do lado de fora da Academia e da grande imprensa. No campo especificamente literário, estes intelectuais marginalizados não raramente advindos do City College, a chamada “Harvard Proletária“ , localizada na parte alta de Manhattan, debruçavam-se sobre a maneira como a obra literária permitiria aos trabalhadores reconhecerem a miséria e a exploração geradas pelo capitalismo. A atividade literária, que abrangia tanto a ficção (especificamente o romance e o conto) quanto a teoria (especialmente o artigo e o ensaio), converter-se-ia numa poderosa, específica e insubstituível ferramenta que poderia contribuir com a consciência de classe. Os Intelectuais de Nova York encontraram no marxismo o avesso do liberalismo que perdera o chão com o crash.

Derrubar a clássica torre de marfim que separa a literatura do proletariado, colocava-se como necessidade política. A própria criação artística deveria deixar os aposentos do ego para engajar-se nos problemas do mundo real. Os escritores da Partisan Review estavam atentos à conclusão que Edmund Wilson, o principal crítico literário da América do período entreguerras, obteve em sua obra O Castelo de Axel (1931), um brilhante estudo sobre a literatura da modernidade:

(...) “Creio, portanto, que chegou o tempo em que esses escritores, que dominaram em grande parte o mundo literário na década de 1920-1930, embora continuemos a admira-los como mestres, não mais nos servirão de guias. O mundo de Axel, da imaginação privada isolada da ida da sociedade, parece ter sido explorado, e explorado tanto quanto possível para o presente (...) Entrementes, a Europa ocidental vem-se recobrando da exaustão e desespero da guerra; e na América, o desfrute confortável daquilo que se supunha fosse a prosperidade norte americana, a qual após a guerra, tornou possível aos norte americanos aceitarem com certa complacência o desalento e a resignação dos livros europeus, cedeu lugar a uma súbita inquietação. E norte americanos e europeus estão se estão tornando mais e mais conscientes na Rússia, país em que o idealismo político-social central tem sido capaz de usar e inspirar o artista tanto quanto o engenheiro. Começa a importunar-nos novamente a questão de se é possível fazer da sociedade humana um êxito prático, e de, se, caso continuemos a malograr, umas poucas obras primas, por mais profundas e nobres que sejam, bastarão para tornar a vida digna de viver-se, mesmo para as poucas pessoas em condições de aprecia-las“ (...)

O grupo de intelectuais que forma a redação da Partisan Review não estava apenas preocupado em orientar as atividades literárias de esquerda num sentido político estrito. Eles sabiam que a produção da literatura, capaz de responder aos novos sentimentos e ideias, necessita de pesquisa formal e liberdade criadora: era exatamente isso que o stalinismo reprimia na produção literária e artística da esquerda. A expressão “Artists in Uniform“ cunhada pelo crítico Max Eastman resume a situação toda: não dá pra escrever com a respiração pesada de um burocrata vigiando cada linha.

As divergências estéticas no interior da esquerda (americana e mundial) revelam nos anos de 1930 autores que ligados ao stalinismo rechaçam as técnicas de vanguarda (oriundas das primeiras décadas do século XX) em prol de um modelo de “literatura proletária“ que ignora as questões formais. Diferentemente desta gente, os autores da Partisan Review não só prestavam atenção no modernismo, como viam neste último uma importante (e recente) tradição artística para os autores filosoficamente identificados com o marxismo. A linha editorial da Partisan Review é distante de muitos exemplos da literatura de esquerda na medida em que o marxismo é tomado pela revista não como um mero palanque mas como método para analisar a prosa e o verso enquanto expressões do movimento da história. As polêmicas literárias entre o jornal New Masses, sob orientação do stalinismo, e a Partisan Review, que romperia com o Partido Comunista em 1937, são na realidade cultural dos EUA expressões da disputa internacional entre o stalinismo e as iniciativas marxistas independentes. Com veremos mais adiante, isto ajuda a explicar a influência da crítica literária de Leon Trotsky nos quadros da Partisan Review, sendo que alguns de seus membros iriam flertar em diferentes níveis políticos com o trotskismo.

Arte proletária e tradição modernista

A crítica literária da esquerda em torno do Partido Comunista reduzia o campo de invenção, o que acarretava em sérias consequências manipuladoras para a representação artística da luta de classes. A tensão entre as heranças do internacionalismo de vanguarda e a sombra asfixiante do Realismo Socialista já se fazia presente no período inicial da Partisan Review. O tema central da primeira fase da revista, entre os anos de 1934 e 1936, foi a questão da arte proletária, que remete aos debates e iniciativas culturais presentes na órbita russa de Outubro de 1917 . Pode-se dizer que o polêmico tema em torno da arte proletária não apenas não saíra da agenda dos intelectuais de esquerda, como adquiriu no contexto histórico da depressão econômica particular gravidade. Em 1936 ocorreu um importante congresso de escritores nos EUA em que literatura, proletariado e americanismo estavam em discussão. O empobrecimento dos mais pobres e a proletarização da classe média na América dos anos de 1930, não passaram despercebidos pelos escritores: o referido congresso visava estabelecer metas e definições acerca dos caminhos da literatura revolucionária que produziu-se até então a partir dos quadros econômicos e sociais da Grande depressão.

Até aquele momento a Partisan Review já havia dado muitas demonstrações sobre o seu compromisso com a arte social. No editorial da edição 01 da PR observamos seu caráter militante:

(...)“A PR aparece num momento em que a literatura americana está passando por mudanças profundas. A crise econômica e política do capitalismo, o crescimento do movimento revolucionário em todo o mundo e a construção de sucesso do socialismo na URSS tem afetado a vida, o pensamento e a arte americana. Estes fatores tiveram efeitos de longo alcance, não só sobre as atividades políticas de escritores e artistas, mas também sobre seu pensamento e escrita. Nos últimos 4 anos o movimento para criar uma arte revolucionária , que há uma década está confinado a um pequeno grupo, se espalhou por todos os EUA. Uma série de revistas revolucionárias surgiram para publicar ficção, poesia e crítica revolucionária. Algumas delas são emitidas pelo John Reed Club“(...)

Na edição 03 de 1934, Wallace Phelps e Philip Rahv assinam o texto Problems and Perspectives in Revolucionary Literature, no qual a representação da luta proletária está em questão. Para estes autores o escritor revolucionário deve ser definido num quadro cultural em que a própria literatura revolucionária desenvolve-se não apenas a partir dos temas sociais mas de suas perspectivas formais e teórico-políticas. A confidência que o escritor de esquerda possui com o proletariado precisava ser considerada de acordo com o desenvolvimento histórico-literário, de acordo com os caminhos estéticos legados pelo material literário da década de 1920. Diferentemente dos escritores da classe dominante, o autor “ social “ encontra no pensamento marxista base teórica e atualidade política. O que está em questão é a necessidade de um gigantesco movimento intelectual empenhado na ruptura com a lógica econômica que levou a civilização capitalista para a beira do precipício. Porém, até que ponto os sentimentos proletários e a própria perspectiva política revolucionária da classe que fará a revolução podem ser traduzidos por escritores de origem pequeno burguesa? Ainda que se trate de um escritor de origem proletária, quais são as condições históricas necessárias para que seus escritos façam parte do cotidiano da classe trabalhadora?

Intelectuais e proletários

Quando se fala em alguém advindo de um meio abastado e que decide tornar-se um escritor de esquerda, estamos nos referindo em grande parte ao intelectual que é um traidor da sua classe de origem: ele nega as aspirações de riqueza e segurança social para posicionar-se politicamente junto ao proletariado. Mesmo que ele não possa fundir-se ao proletariado, o entendimento materialista da história que este intelectual possui, quer dizer a compreensão objetiva da saga das lutas de classes, o coloca como alguém que está a serviço da organização e conscientização da classe trabalhadora. Este é um dado que remete á figura do próprio Karl Marx. A exemplo da atuação intelectual deste último e dos seus herdeiros políticos, cabe ao intelectual que diz adeus aos valores da sua classe de origem, atuar pela formação de intelectuais trabalhadores. Em tratando-se de literatura o proletário é não apenas leitor mas possível escritor: embora em número reduzido, a história registra a existência de poetas de fábricas e romancistas do povo. Faltam-lhe evidentemente formação estética, educação histórica e literária. Neste sentido é bom frisar a bússola crítica de Trotsky no livro Literatura e Revolução (1923), obra levada em alta consideração pela Partisan Review. Trata-se de um clássico marxista de grande atualidade que fala da evidência de que não é possível o florescimento de uma literatura socialista sem que o proletariado assimile dentro de um amplo processo histórico as tradições literárias do passado. Bem, sabemos que isto só é possível nos quadros de um regime socialista, logo num país que tenha atravessado a revolução e coletivizado os meios de produção. Mas o que fazer em matéria de literatura revolucionária até que a revolução finalmente ocorra? A Partisan Review se deparou com este problema em plena polarização ideológica dos anos de 1930.

Se é papel da literatura educar o proletariado de acordo com os elementos estéticos intrínsecos a ela, como coloca-lo em contato com uma produção que a princípio seria útil para ele orientar-se politicamente dentro da realidade? Um duplo perigo á vista: de um lado o triturador de letras chamado Realismo Socialista, do outro, o escritor pequeno burguês cujas convicções marxistas são em muitos casos extremamente frágeis. A desigualdade cultural proveniente da divisão social do trabalho, acarreta no trabalhador distante das letras e no intelectual progressista de classe média que deseja elevar a consciência política daquele através de romances, poemas, contos, artigos etc. A escritora Mary McCarthy, que redigiu crítica teatral na Partisan Review, expõe nos seus contos reunidos na obra Dize-me Com Quem Andas (1942), a influência do pensamento marxista na vida intelectual dos Estados Unidos durante a década de 1930. No conto Retrato do Intelectual como Homem de Yale, a evidência socialista seduz o intelectual médio americano:

(...) “e, em 1932, todos na Esquerda estavam convencidos de que aquele “acaso“ era realmente um milagre, um sinal dos céus ou da história no sentido de que o milênio estava à mão. A maioria dos homens engajara-se no socialismo por força de uma compulsão demasiadamente humana: estavam desempregados, sentiam-se sós ou sexualmente insatisfeitos ou estrangeiros ou desconcertados, numa das cem maneiras amargas e irremediáveis. Assemelhavam-se aos doze discípulos no Novo Testamento; não havia verdadeiro mérito em sua adesão , assim como nenhuma esperança. Mas Jim era como um centurião romano ou São Paulo; chegara livremente ao socialismo, vindo de um centro de felicidade, por um puro ato de percepção cuja origem só poderia estar na graça divina; e sua conversão devia ser interpretada como um prelúdio à conversão do mundo “(...)

O veneno destilado pela autora coloca para o leitor, apesar do seu retrato e juízo pessimistas expressos na satírica metáfora do cristão convertido, o poder de atração que o socialismo emprestava para aquela geração de intelectuais. É verdade, nem sempre estes intelectuais estavam á altura do projeto revolucionário socialista: havia muito “ oba oba “, era moda a literatura socializante. Mas tomando como exemplo alguns dos colegas de redação e militância intelectual de Mary McCarthy, não havia superficialismo ou adesões políticas ocultas em desculpas pessoais, e muito menos mero fervor religioso mascarado por uma explicação materialista da história. O marxismo oferecia para aqueles intelectuais uma concepção filosófica capaz de orientar suas atividades políticas e literárias. A crise da arte enquanto sintoma de uma crise mais profunda, ou seja, a crise dos fundamentos econômicos da civilização capitalista abalados durante a Grande depressão, só poderia ser resolvida pelas mãos da política, ou mais especificamente, da revolução proletária. Mas como a literatura pode contribuir com este processo político? Por onde começar em termos estéticos? Naquele clima de balanço da produção literária de esquerda em 1936, a questão das heranças vanguardistas e a própria história da literatura norte americana eram fatores que mereciam uma revisão crítica.

A busca por uma síntese histórica da literatura americana

Nos Estados Unidos dos anos de 1930, a produção literária que cresce sob a influência comunista necessitava de uma definição estética. O modernismo da década anterior permanecia como um problemático espantalho. Apesar de algumas de suas tendências estarem impregnadas de esteticismo, o modernismo traz um inquestionável caráter de ruptura com os modos de expressão da classe dominante. Sucede-se cada vez mais entre críticos e escritores americanos a necessidade de definir o modernismo à luz daquilo que chamava-se literatura de esquerda. Enquanto que para autores do PC alinhados ao stalinismo, a questão da arte revolucionária resume-se a uma aplicação mecânica da análise política marxista ao enredo dos romances, os redatores da Partisan Review, naquele momento igualmente ligados ao Partido, debruçam-se sobre as implicações estéticas de tal literatura, acionando a herança modernista.

A Partisan Review esteve inevitavelmente fadada a se chocar com a política cultural do PC americano. Precisamente por ter sido concebida no útero do John Reed Club, ela nunca abrira mão do internacionalismo, que logo destoava da crescente política nacionalista impressa pelo stalinismo. Em termos literários este nacionalismo acarretava na temática nativista, no enfoque rural, nostálgico, que contrastava com o cosmopolitismo dos intelectuais de Nova York, interessados por sua vez nas contradições do mundo urbano, nos problemas do proletariado das grandes cidades americanas. Naqueles anos da Frente Popular, em que os comunistas se alinharam ao New Deal do presidente Franklin D. Roosevelt, não era raro encontrar escritores liberais acenando carinhosamente para Stálin. Dá pra imaginar o quanto era insuportável para um intelectual marxista sério o namorinho reformista que o Partido Comunista realizava com intelectuais de classe média. Não estranha que sentimentos patrióticos e surtos folhetinescos fizessem parte da dieta literária naquele momento. Os intelectuais de Nova York, minoritários sem dúvida, apresentavam formulações estéticas e políticas distintas.

Em ensaios como Three Generations de William Philips, coloca-se em discussão a necessidade de uma revisão crítica da história da literatura dos EUA, no sentido de estabelecer os rumos para a literatura do presente. Philips, crítico marxista com têmpera, concebe a trajetória literária dos EUA a partir de 3 gerações. A primeira geração formada no fim do século XIX, foi marcada por paisagens, situações e tipos humanos do mundo rural, uma espécie de literatura regional norte americana. Já a segunda geração foi notadamente urbana, atenta aos procedimentos literários de vanguarda originários da Europa, mas mergulhada no esteticismo: a modernidade não era evocada em sua raiz econômica, nas suas contradições sociais, mas nos seus efeitos estéticos imbrincados na realidade metropolitana. Talvez sua maior expressão poética tenha sido TS Eliot. A terceira geração literária seria a dos anos de 1930. Segundo Philips, esta terceira geração encontra no marxismo uma capacidade de síntese histórica: as temáticas sociais da primeira geração são vistas a partir das conquistas modernistas da segunda geração. A conclusão de Philips é que o marxismo poderia fornecer para os escritores da década de 1930 uma narrativa revolucionária em que tanto a crítica quanto a ficção iriam se beneficiar do ponto de vista da forma (valorizada de acordo com a relação dialética entre as duas primeiras gerações) e do conteúdo (ou seja, representar as transformações econômicas e sociais trazidas pelo contraditório processo de urbanização).

O escritor James T Farrell , que colaborou com a Partisan Review e por algum tempo atuou nas fileiras do trotskismo nos EUA, é um exemplo notável desta consciência histórica. Como ficcionista Farrell distingue-se do stalinismo cultural ao revelar a realidade objetiva sem abrir mão da prosa espontânea, da crueza do cenário social, dos recursos subjetivos dos seus personagens concebidos enquanto produtos históricos que não poderiam sofrer um reducionismo caricatural na exposição dos seus pensamentos e sentimentos. A trilogia Studs Lonigan, que apresenta a vida dos trabalhadores de origem irlandesa em Chicago, traz a partir do protagonista Studs o quadro realista do mundo externo, triste e miserável:

(...) “ Parado juntamente com os “ caras mais velhos “ diante do bilhar, Studs, aos quinze anos, , olha o pessoal da vizinhança passar: tinham o mesmo olhar mortiço que o seu velho sempre tinha quando saía para dar um passeio...(...) O velho Izzy Hersch , o tuberculoso, passou. Parecia amarelo e quase como um fantasma; era dono da confeitaria lá embaixo, pegada á alfaiataria de Morty Ascher, perto da esquina da Calumet, mas ninguém comprava nada dele porque tinha a doença, e de qualquer maneira a pessoa estava arriscada a descobrir uma barata ou um camundongo em tudo o que comprasse “(...)

Apesar da sua perspectiva dialética a Partisan Review não trouxe propriamente uma estética marxista mas soube antes fazer do marxismo instrumento crítico para avaliar o que poderia ser a literatura revolucionária. Quando rompe oficialmente com o stalinismo em 1937, a revista aproxima-se publicamente de Trotsky, e consequentemente, do seu ponto de vista político e literário.

O diálogo com Trotsky

Foi no outono de 1936 que a Partisan Review teve sua publicação suspensa. Ela será reeditada no ano seguinte. É bom lembrar que o pano de fundo histórico deste momento cultural consistiu na luta revolucionária contra o fascismo na Espanha, em plena guerra civil, e nos tenebrosos Processos de Moscou que registravam a monstruosidade do stalinismo. Hitler e sua cambada de assassinos iriam em pouco tempo dar um banho de terror e opressão sobre a Europa, promovendo um macabro espetáculo de violência, destruição e crueldade inéditos na história. Outros atores fascistas como Mussolini integravam esta ópera totalitária. Ditaduras avançavam (no Brasil, por exemplo, temos o Estado Novo) e populações eram submetidas a todo tipo de violência(o Império japonês estava cometendo várias atrocidades, aprontando feio na Ásia). Quer dizer, o giro político da Partisan Review que marca sua ruptura com o PC, não poderia estar tão somente fundamentado no debate estético: este debate é parte integrante de um período da história contemporânea em que o escritor verdadeiramente revolucionário deveria ser capaz de combater no campo da ideologia um monstro de duas cabeças: o fascismo e o stalinismo.

Naturalmente, a perspectiva antistalinista da revista a colocava em conexão com Trotsky. As evidentes afinidades dos autores da PR com o autor de Literatura e Revolução são cristalinas, visto que a defesa da tradição literária promovida pelo marxismo , a crítica a surtos iconoclastas do tipo “arte proletária“ e por fim a oposição ás formas de propaganda estatal do Realismo Socialista, eram posições compartilhadas entre Trotsky e a Partisan Review. A relação no entanto não esteve isenta de conflitos. A PR convidou Trotsky para escrever na revista, mas este último receava em colaborar com um periódico que ele considerava “um monastério cultural“. Para o escritor e revolucionário russo, a revista não assumia publicamente uma postura revolucionária, tendo em vista a necessidade de combater com mais eficácia o stalinismo cultural, dentro de uma conjuntura histórica que caminhava para a Segunda guerra mundial (1939-45). Depois desse puxão de orelha dado por Trotsky, a PR aumentou o tom de voz contra o stalinismo e a partir de artigos como Trialls Of The Mind passa a sustentar uma posição política revolucionária e independente. Foi a partir deste momento que Trotsky decide colaborar episodicamente com a PR. Ele redige em 1938 o notável artigo Arte e Revolução, traçando um verdadeiro panorama histórico que explica as razões da arte do nosso tempo estar ligada á revolução socialista.

O final da década de 1930 é o momento mais rico e combativo da revista, como atesta por exemplo a colaboração de Wilson. Num interessantíssimo artigo consagrado ao escritor francês Gustave Flaubert, Wilson aponta a partir do romance Educação Sentimental inusitados (e insuspeitos) paralelos entre Flaubert e Marx:

(...)“Quando assim procedemos, damo-nos conta de que Marx e Flaubert participam de pressupostos muito semelhantes e foram impelidos por objetivos morais irredutíveis. Ambos detestavam implacavelmente o burguês e ambos estavam, decididos , ao preço de qualquer sucesso mundano, a manter-se fora do sistema burguês. Marx como Flaubert partilhava em certa medida o viés romântico em favor do passado. Está claro que com muito custo se poderia dizer, de Marx, que tivesse uma opinião muito favorável acerca de qualquer período da história humana, todavia em comparação com o século XIX capitalista , demonstrava alguma ternura por Grécia e Roma e pela Idade Média“(...)

Esta análise perspicaz que estranhamente aproxima o pensador comunista de O Capital do mais de uma vez reacionário autor de Salambô, não deixa de apresentar no âmbito da crítica literária um rico movimento de pesquisa, abertura e indagação infinitamente mais adequados ao materialismo histórico do que a imobilidade dos esquemas stalinistas para se entender a história e a literatura. É a partir desta postura independente que a revista publica e divulga no meio intelectual norte americano o Manifesto Por uma Arte Revolucionária Independente redigido por Trotsky e André Breton, o grande cabeça do movimento surrealista. Mas se entre os intelectuais ligados á Partisan Review havia coragem para romper com o stalinismo, entre outros havia muito do espírito reacionário e pragmático do intelectual médio norte americano para atacar o materialismo histórico. Cabeças pensantes mas obedientes aos pais fundadores dos Estados Unidos da América, não conseguiam ultrapassar o olhar liberal. Edmund Wilson, Sidney Hook e Max Eastman são partes de uma campanha intelectual que rechaçava a alavanca dialética do marxismo, tomada agora, nas palavras de Wilson, como “mito religioso“. A própria PR iria no pós guerra abraçar uma orientação liberal. O periódico literário rompe com o marxismo para, no picadeiro da guerra fria, optar pelos chamados valores americanos. Um dos esforços críticos finais de Trotsky foi combater este surto revisionista entre os intelectuais de esquerda nos EUA, o que está documentado no clássico livro Em Defesa do Marxismo, assinado pelo autor russo.

A Partisan Review seria editada até 2003. Mas para os que ficam e para os que chegam sobrou alguma coisa que presta? O legado da Partisan Review reside especialmente na década de 1930, momento em que a influência do marxismo colocava a literatura como expressão libertadora. Ali reside um arsenal teórico que vale a pena. Os Intelectuais de Nova York tem o seu lugar garantido na tradição cultural revolucionária.


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