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Leonardo Barbosa: “A música popular em suas diversas expressões continuou a fazer parte da agenda cultural de movimentos de luta”.

Renato Shakur

Leonardo Barbosa: “A música popular em suas diversas expressões continuou a fazer parte da agenda cultural de movimentos de luta”.

Renato Shakur

Publicamos a entrevista de Leonardo Barbosa, mestrando no programa PPGMúsica da UFPE, onde ele apresentou a pesquisa que está desenvolvendo sobre o selo Mocambo da Fábrica de Discos Rozenblit, além de reflexões sobre identidade pernambucana, hegemonia e classes subalternas, luta de classes e cultura popular. Esta entrevista foi concedida a Renato Shakur, doutorando em História pela UFF.

Ideias de Esquerda: Em seu estudo sobre o selo Mocambo você acabou analisando a indústria cultural e a produção fonográfica dos anos 1950 até 1980. Esse período é atravessado por inúmeros processos da luta de classes, como a greve dos trabalhadores têxteis de 1958, a greve dos canavieiros nos anos 1950, as Ligas Camponesas, a resistência operária contra a ditadura, o próprio regime militar, etc. Não resta dúvidas que esses trabalhadores e trabalhadoras que ouviam, cantavam, organizavam festas, rodas, etc, dando movimento a ritmos, tradições e cultura. Como você vê a relação entre os processos de luta dos trabalhadores rurais e urbanos com a música popular?

LB: Uma busca que se coloque mais aprofundada acerca da relação entre movimentos operários e cultura popular de base irá constatar que, ainda, essa é uma lacuna dentro da pesquisa historiográfica. Logo, essa pergunta é importante no sentido de instigar uma busca maior no âmbito da pesquisa social em música. Pouco de teoria social conseguimos encontrar, assim como temos muito pouco em relação a dados, se não buscarmos uma pesquisa mais direcionada historicamente nos acervos.

Decerto, a música popular faz parte do cotidiano dos trabalhadores. A própria história do frevo - que tem origem na interação entre a música proveniente das bandas marciais militares e passos de capoeira bem no início do século XX - confunde-se com o estabelecimento de agremiações de trabalhadores que se reuniam em clubes, a exemplo de um dos mais tradicionais clubes carnavalescos, que dá nome ao principal hino do carnaval pernambucano, “Vassourinhas”. Na década de 1950, alguns frevos ficaram famosos e passaram a tocar nas rádios pernambucanas e em bailes e marchas nos bairros - dentre os quais se destacam os frevos dos maestros Capiba, Nelson Ferreira e Levino Ferreira, devido, sobretudo, à presença da Rozenblit, que de um novo fôlego ao gênero. Naquele contexto, era constante a existência de rivalidade entre os blocos, sendo expressa principalmente por meio de músicas. Em 1954, a disputa era acirrada entre os blocos “Inocentes do Rosarinho” e “Madeira do Rosarinho”, em cujas canções havia teor de provocações entre os blocos.

Muito do que possamos encontrar sobre tal relação entre música popular e lutas sociais está relacionado, no âmbito da década de 1960, tanto ao MPC em Pernambuco quanto ao CPC da UNE, sendo a música uma das várias linguagens artísticas situadas nesses movimentos. Sobre o MPC há pouquíssimas publicações.

A partir de 1964 (ano do golpe civil-militar) também podemos identificar uma relação entre as lutas travadas pelo movimento operário nacional e os artistas mais conhecidos que foram diretamente perseguidos pela ditadura, como Geraldo Vandré, Geraldo Azevedo, Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso etc. Em Recife temos o exemplo de censura contra a Ave Sangria, banda psicodélica clássica, em um caráter urbano e ligada ao rock. Em entrevistas, Alceu Valença lembra que não foi exilado em termos políticos formais, mas saiu do Brasil para a França como forma de se esquivar do que estava acontecendo por aqui.

Ao passo que a ditadura foi se tornando mais repressiva e violenta (início da década de 1970) os mecanismos estatais buscaram controlar e vigiar cada vez mais os grupos e artistas populares, os quais passaram a ter que entregar dossiês de suas composições para o regime. Em se tratando especificamente de carnaval, naquele contexto de início dos anos 1970 havia discussões sobre a “decadência da festa” e o senso comum conservador passou a articular narrativas em torno de, por exemplo, o incentivo à “apreciação” mais contida, com a criação de arquibancadas para acompanhar desfiles dos blocos. Foram proibidos neste período: o corso (agremiação que promovia desfiles utilizando carros ornamentados); as travestis (proibidas de desfilar), o tradicional “mela-mela”, os lança-perfumes, o entrudo (brinquedo popular em que as pessoas jogavam entre si diferentes líquidos considerados sujos e ofensivos à moral), dentre outros. O princípio era de limpeza (moral, cultural) e aversão a qualquer forma de manifestação que estivesse associada à “desordem” - o que é algo inerente ao carnaval.

De toda forma, é fato que, além de frevo, o coco de roda, ciranda, maracatu etc. continuaram a ser vivenciados enquanto música local e regional, fazendo parte - ainda que de modo marginalizado, por isso resistente - do cotidiano dos trabalhadores (cortadores de cana, comunidades de pescadores, operários etc.) entre 1950 e 1980. Seja enquanto fenômenos cujo teor não se explicitava como crítica política direta e, sendo assim, passavam à margem da máquina de censura, além do que, por se tratarem de música considerada de cunho “regional”, também passavam à margem do circuito cultural dominante. Também existe o fato de que, se muito da música popular pode ser gravada em selos como o Mocambo, também existia repressão contra diversos terreiros e festejos com música de cunho religioso afrobrasileiro, ou de grupos organizados mais próximos aos movimentos sociais e agremiações carnavalescas que não estivessem atentas e subordinadas aos princípios de limpeza cultural associada ao regime da ditadura.

Decerto parte do que se constituía como “vivência cultural” nos movimentos organizados tiveram a marca de gêneros como o samba, frevo, marchinhas, coco de roda, forró, baião. Na cultura sindical, festas e concursos musicais sempre estiveram presentes em encontros de trabalhadores através do samba, forró, baião, marchinhas, frevo. O maracatu rural e o urbano permaneceram como brinquedos de resistência frente ao conservadorismo incrementado pelo regime da ditadura. Em espaços clandestinos no contexto desta, a música popular em suas diversas expressões continuou a fazer parte da agenda cultural de movimentos de luta, embalando encontros, além de serem ingredientes para momentos de diversão dos trabalhadores (como escapes e “alimento cultural” frente às adversidades políticas e econômicas) nas periferias, comunidades, cidades do interior.

IdE: Gostaria que você pudesse falar um pouco sobre a gravadora Rozenblit e o selo Mocambo. Contar a história de seu surgimento e a importância que o selo teve desde o ponto de vista regional e nacional.

LB: A Fábrica de Discos Rozenblit, ao que tudo indica, foi a única grande gravadora brasileira que surgiu descentralizada do eixo Centro-Sul. Foi instalada em Pernambuco, mais especificamente no bairro de Afogados (região central do Recife), inaugurada no dia 18 de dezembro de 1954. A Rozenblit surgiu em um momento em que os ideais do nacional-desenvolvimentismo eram o grande discurso nacional, a exemplo das formulações do Iseb, no plano nacional e da Cepal no plano internacional latino-americano. E nesse contexto se mobiliza todo um debate acerca do “atraso nordestino” em relação ao Sul do país – um contexto marcado pelo Congresso da Salvação do Nordeste (1955), pelas análises de Celso Furtado e do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), por ele coordenado –, e que culmina na criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, no governo JK. Com efeito, a Rozenblit é fruto desta conjuntura histórica, fruto desse discurso desenvolvimentista que floresce no Nordeste. Esse discurso desenvolvimentista nordestino retoma alguns elementos do ideário regionalista tradicionalista dos anos 1920-30, influenciado pelo já citado manifesto e pelas obras Casa Grande e Senzala (1933) e Nordeste (1937) de Gilberto Freyre e O Outro Nordeste (1937) de Djacir Menezes; ainda que com uma “nova roupagem”, levando em consideração a própria ideia de “industrialização” que é central no discurso desenvolvimentista.

No início dos anos 1950, a firma “Irmãos Rozenblit Cia. Ltda”, possuía duas lojas no centro do Recife. A mais antiga ficava na rua da Palma (nº 322), que depois passou a ser o escritório da firma. A segunda loja ficava na Rua da Aurora (nº 77). As lojas vendiam todos os tipos de artefatos da modernidade: bicicletas, brinquedos infantis, eletrodomésticos, móveis com design moderno, instrumentos musicais e, como não poderia deixar de ser, discos nacionais e importados e os seus respectivos toca-discos. Os primeiros discos importados pela firma foram da marca Seeco, Decca e Mercury. Os Rozenblit estavam antenados a tudo o que acontecia no Recife e no resto do país, sempre atentos aos bons negócios e sensíveis “ao bom gosto” das classes médias urbanas. A loja da rua da Aurora ficou conhecida como Loja do Bom Gosto, slogan que de tanto repetir nas publicidades, passou a ser o nome da loja. Nela existiam 5 ou 6 cabines onde os clientes tinham a oportunidade de escutar os discos antes de realizarem a compra. Essa loja também contava com uma pequena galeria de artes. A firma “Irmãos Rozenblit” movimentou a cena cultural pernambucana. Administravam a firma: Adolfo, Isaac, José e Luiz Rozenblit (pai), e outro amigo da família, chamado Kurt Sondermann.

Nessa época, a música pernambucana, sobretudo o frevo, era gravado pelas multinacionais instaladas no Sudeste. Era o caso da RCA-Victor, que se especializou nos mercados musicais regionais. As multinacionais enviavam os seus representantes para negociar com os donos das lojas de discos. Os contratos eram realizados muitas vezes de forma arbitrária. Se estabelecia uma meta de pedidos que precisava ser cumprida, caso contrário, o acordo não seria fechado e o disco não seria gravado. Quando as composições eram selecionadas, por meio de votação, as partituras eram enviadas para a sede (Rio ou São Paulo) e lá eram gravadas. Essa situação deixava compositores, músicos e público pernambucano insatisfeitos. Valdemar de Oliveira, em um artigo (1945), criticou duramente as gravações de frevo que estavam sendo feitas, que segundo ele, eram “pobres” e possuíam um “ritmo frouxo”. José Rozenblit, enquanto representante de uma loja de discos, também não se conformava com tal situação. Em entrevista ao documentário de curta-metragem Rosa de Sangue, José comentou que aquela situação foi um dos motivos que o levou a fundar uma fábrica de discos, junto com os seus sócios.

A ideia do nome Mocambo, como marca para o selo da fábrica, surgiu de uma conversa entre José e Nelson Ferreira, para representar a primeira marca de discos criada em Pernambuco. O nome buscou demarcar algo que fosse uma particularidade do estado, fazer uma referência ao que havia de mais característico na região. Os mocambos eram moradias das populações pobres, construídas com madeira. Vale lembrar também que Gilberto Freyre elegeu o mocambo como símbolo regional, para ele, tratava-se de uma “arquitetura tipicamente regional”, “adaptada aos trópicos”. O que demonstra uma sintonia com os ideais do regionalismo.

O selo Mocambo surgiu curiosamente um ano antes da inauguração da Fábrica de Discos Rozenblit, no final de 1953. Projeto financiado pela firma “Irmãos Rozenblit Cia. Ltda”. O primeiro lançamento foi um disco de 78 rotações por minuto, ou simplesmente 78 rpm (formato anterior ao LP). Para quem não sabe, os discos de 78 rpm tinham apenas duas gravações, uma em cada lado. O primeiro disco Mocambo recebeu a numeração 15.000 e funcionou até 1964. O selo Mocambo continuou com lançamentos sistemáticos de LPs, até meados dos anos 1970, segundo me informou Helio Rozenblit (filho de José Rozenblit e produtor musical do disco Paêbirú, lançado pelo selo Solar da fábrica), em entrevista. No primeiro disco Mocambo, foram gravados dois frevos: Boneca (composição de Aldemar Paiva e José Menezes, interpretada por Claudionor Germano) e Come e Dorme (composição de Nelson Ferreira). A série 15.000 lançou aproximadamente 560 discos de 78 rpm, totalizando 1.120 gravações (dados obtidos da dissertação de mestrado Desenvolvimento em 78 rotações: a indústria fonográfica Rozenblit, 1953 a 1964).

Sobre o selo mocambo, existe uma controvérsia que venho analisando atentamente, levando em consideração a bibliografia existente e as fontes documentais (catálogo e matérias de jornais). De acordo com alguns jornais da época, a sua produção seria destinada à música popular nacional de maneira geral, e dentro dessa produção, estaria a música pernambucana e nordestina. Mocambo, nesse sentido, atenderia a uma demanda pela música popular brasileira, enquanto a produção estrangeira ficaria por conta dos selos das gravadoras licenciadas (relançamentos de matrizes importadas), Decca, Mercury, Seeco (essa última com um repertório latino-americano) dentre outras. A bibliografia sobre a fábrica situa a produção do selo Mocambo como relacionada estritamente a uma “produção regionalista”. Estou inclinado a aceitar a primeira, baseado nas fontes documentais. Porém, é visível que no selo Mocambo foram gravadas, de fato, a maior dessa produção musical pernambucana, o que revela a contribuição do empreendimento para o fomento de uma produção musical local, de gêneros e expressões musicais como: frevo, baião, coco, xote, maracatu, ciranda, marcha junina, forró, arrastapé, rojão dentre outros.

A relação entre o selo Mocambo e a questão da pernambucanidade é algo que ainda estou estudando. Portanto, não conseguirei avançar muito nesta direção. O que é possível destacar, por hora, é que o selo Mocambo surgiu em um momento em que existia uma expectativa muito grande a respeito da sua iniciativa de valorizar os “temas” e “motivos folclóricos” de Pernambuco e nordestinos, fazendo frente àquele esquema das multinacionais. Afinal, tratava-se da primeira marca de discos do estado, produzida “por homens da terra”, como destacavam as matérias de jornais da época.

A fábrica criou outros selos: Arquivo, Artistas Unidos (em parceria com a TV Record, produziu um disco ao vivo do I Festival da Música Popular Brasileira de 1965), Passarela e Solar, que teriam surgido entre os anos 1960 e 1970, quando a produção musical brasileira passou por um processo de segmentação. E para dar conta da difusão de ritmos e gêneros musicais, criaram essas marcas. A Rozenblit acompanhou as mudanças do mercado fonográfico brasileiro, se atualizando com elas, ao contrário do que muitos acreditam, gravando muitos sambas, bossas e até a onda da Jovem Guarda). Tinha filiais em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Gravaram pela Rozenblit, pelo selo Mocambo: Claudete Soares, Sílvio Caldas, Zé Kéti, Eliana Pittman, Tom Zé, Bobby de Carlo, Agostinho dos Santos, Maria Odette, Johny Alf, Carmélia Alves, Dora Lopes, Oswaldo Nunes, Eladyr Porto, Escola de Samba Bafo da Onça, só para mencionar alguns nomes.

A crise e o declínio da Rozenblit começou com as enchentes (5 no total), que inundou a fábrica e danificou os equipamentos e parte do acervo, a partir da segunda metade dos anos 1960. Outro fator relacionado ao seu declínio foi a conjuntura social, política e econômica que se desenrolou após o golpe civil-militar, que, em linhas gerais, não foi muito favorável às empresas nacionais. A Rozenblit tentou empréstimos, conseguiu obter uma parcela, a segunda não foi liberada. As dívidas e os processos trabalhistas surgiram até que, em 1984, decretou falência. O acervo da Rozenblit foi comprado pelo grupo Comdil e atualmente vem sendo digitalizado por Helio Rozenblit e disponibilizado nas principais plataformas de streaming disponíveis no mercado.

IdE: Poderíamos dizer que a cultura é um campo em disputa permanente entre as classes. Você também estudou a relação da burguesia brasileira e o nacional desenvolvimentismo com a cultura nacional e regional. Como você vê as tentativas da classe dominante ao longo dos anos em desenvolver sua hegemonia inclusive na cultura?

LB: Em Gramsci, a hegemonia é o processo ampliado em que uma classe fundamental dominante (em seus diversos setores e frações) exerce sua dominação sobre classes subalternas em uma sociedade. Neste movimento, as organizações burguesas na sociedade civil (clubes, associações, partidos, mídia, igrejas, revistas, escolas, jornais, empresas etc.) e seus intelectuais orgânicos buscam, por meio de intervenções ideológicas e políticas, obter o consenso da massa do proletariado (em suas diversas frações) e sua adesão aos circuitos culturais, princípios e diretrizes da ideologia dominante.

Com o plano das artes (o que comumente se afirma como "cultura": música, teatro, cinema, dança, poesia etc.) não é diferente. Para um projeto nacional-desenvolvimentista foi necessário o estabelecimento de uma cultura nacionalista que legitime a adesão das massas a esse projeto. Daí o samba emerge como uma base de unidade que mostra o que é "ser brasileiro". O futebol, no plano desportivo, também carrega essa marca. E esse nacionalismo desenvolvimentista foi disputado entre as classes, através de diversas organizações da sociedade civil burguesas e proletárias (partidos, movimentos de cultura, artistas, intelectuais)... processo efervescente entre as décadas de 1950 e 1960, especialmente. Com a ditadura civil-militar esse embate não deixou de existir, mas com a forte e sistemática repressão criminosa exercida pela burguesia brasileira entre 1964-1985, o que já era desigual por vieses econômicos, tornou-se ainda mais assimétrico quando as organizações proletárias combativas foram exterminadas pelo pacto civil-militar estatal ou passaram para a clandestinidade.

Isto porque para além do exercício da dominação através do consenso (ideologia, cultura), existe a coerção através dos mecanismos da sociedade política (poderes judiciário, legislativo, executivo, polícia, forças armadas, instituições estatais). Quando o domínio pelo consenso é ameaçado, a classe dominante lança mão da repressão através da coerção autoritária.

Trazendo para a atualidade, a dominação pelo consenso (influência e direção ideológica através da comunicação e da cultura) se dá, por exemplo, quando empresários, intelectuais e organizações da burguesia aproximam-se dos artistas e produtores culturais, buscando atuar nos diferentes nichos e ramos da produção artística e cultural. Parte expressiva deles se desdobra na "indústria cultural": gravadoras, empresas de mídia e jornais, rádios, páginas em redes sociais, empresários e empresas que investem em artistas - e também, hoje, "influenciadores digitais" - acumulando parte dos cachês publicitários e de shows, patrocinadores e divulgadores dos conteúdos musicais de bandas e cantores etc. A indústria da publicidade aparece associada à indústria cultural no ramo musical, e assim essas frações da burguesia articulam-se através de seus fins econômicos com o intuito de transformar os produtos culturais em mercadorias rentáveis para os capitalistas da comunicação e da arte. Essa vinculação do produto a uma perspectiva de rentabilidade busca por massificá-lo para a lucratividade de alguns, muitas vezes em detrimento de sua autenticidade e historicidade.

No terreno simbólico e ideológico, o que ocorre é uma espécie de busca pela "captura" dos conteúdos culturais por variados setores da burguesia (em especial os situados na indústria cultural) no sentido de realizar o direcionamento ideológico das manifestações populares. Seja transformando as produções e eventos culturais em lucro direto (por exemplo, obter dividendos lucrativos com festas como carnaval e são joão, em Pernambuco - pela apropriação de fundo público ou de investimentos privados da publicidade), seja buscando interagir com artistas e inserindo-os em circuitos patrocinados por grandes empresas do capital (organizações da sociedade civil empresariais que patrocinam shows de artistas populares e da classe média). Assim, artistas e grupos mais autônomos em relação à indústria cultural e ao médio e grande capital são mantidos de algum modo mais próximos da rede de domínio ideológico e editorial da burguesia - a exemplo de artistas críticos politicamente que realizam apresentações e entrevistas em espaços de comunicação na TV, como a Globo, em eventos musicais divulgados ou organizados por esta.

Ao mesmo tempo os artistas e grupos populares mais autônomos, apesar dessa influência, também buscam por audiência e espaço de divulgação em meios de maior alcance, parte dos quais financiados e estruturados por setores do capital.

Na atualidade, pegando o exemplo do manguebeat em suas diversas expressões, que contribuiu para a ideia da pernambucanidade como identidade, percebemos como ultimamente o caboclo de lança do maracatu transformou-se em símbolo dessa pernambucanidade, e como não poderia deixar de ser, também foi apropriado pela burguesia. Logo, percebemos reportagens mostrando eventos em Nazaré da mata ou destacando o dia nacional do maracatu, enquanto por outro lado ainda pouco se sabe sobre o que significam os personagens do maracatu rural. Elementos dessa cultura popular são alçados à pernambucanidade e utilizados em propagandas diversas de marcas comerciais e empresas locais, apropriadas pela indústria do turismo e de eventos. Por outro lado as manifestações populares mais genuínas e autênticas também buscam pelo espaço de audiência para angariar recursos e visibilidade. Tomam esses espaços como parte da disputa pela sua sobrevivência, reprodução e desenvolvimento no circuito da cultura.

A burguesia apropria-se e tenta tirar sua parte em forma de lucro e domínio (mantendo os setores mais críticos e progressistas próximos de seus aportes econômicos), ao passo que podemos compreender que as organizações culturais do proletariado mais autônomas, críticas e progressistas também não devem abrir mão dos espaços propiciados na contradição, podem buscar afirmar-se neles, mas buscando ao máximo produzir sua cultura com autonomia e independência dos interesses corporativos do capital. O movimento dos setores organizados do proletariado, partidos e movimentos sociais, deve ser também o de se aproximar dos diferentes grupos e artistas populares no sentido do desenvolvimento de uma contra-hegemonia socialista, formar politicamente os atores sociais envolvidos na cultura popular, trazendo-os - ou fortalecendo-os - para o espectro da esquerda no terreno da sociedade civil.

É uma relação assimétrica (por isso de dominação), ao passo que na apropriação dos fenômenos da cultura popular a indústria cultural da música, publicidade e eventos consegue os maiores recursos provenientes das festas (os fundos públicos do são joão e carnaval, por exemplo), os maiores cachês. E, por outro lado, que os brinquedos, folguedos e mestres de cultura popular também disputem esse espaço e consigam alguns dividendos (muito menores que os destinados aos empresários da cultura e publicidade) para sua sobrevivência e fortalecimento enquanto manifestações legítimas e autônomas da classe trabalhadora.

O necessário, no âmbito das festas populares nacionais e regionais é maior financiamento público de eventos , com regulamentação de critérios através dos quais o fundo público da cultura possa financiar os artistas e grupos populares autônomos em relação ao campo milionário da cultura, pelo fortalecimento dos setores populares independentes do nicho empresarial do médio e grande capital.

IdE: Você é um pesquisador da cultura e da música pernambucana, eu gostaria que você pudesse nos contar acerca da questão da pernambucanidade e como ela foi se relacionou ao longo do tempo com movimentos culturais como o movimento manguebit e o regionalismo freyriano.

Leonardo Barbosa: Em nosso estado, o senso comum de “pernambucanidade” existe na forma de um bairrismo muito forte entre a população. É comumente vinculado a uma “mania de grandeza”: temos o melhor, mais autêntico e diverso carnaval; o maior bloco carnavalesco do mundo; o maior espetáculo teatral ao ar livre do Brasil (a Paixão de Cristo de Nova Jerusalém). Um dito popular diz que é no Recife onde o Rio Capibaribe junta-se ao Rio Beberibe para formar o Oceano Atlântico. Dissera Cícero Dias, “eu vi o mundo, ele começava no Recife”. Muitas músicas do estado cantam nossas ruas, bairros e cidades. Foi de Pernambuco que Luiz Gonzaga partiu e ganhou o Brasil como expressão cultural nordestina. Nas redes sociais, páginas de humor e entretenimento enaltecem esse sentimento de “identidade pernambucana”. É adotado em instituições públicas (como secretarias de Turismo) e privadas (de igual modo, na indústria do Turismo), em ações promovidas pelo Estado, pela indústria cultural, a mídia televisiva e do rádio, artistas independentes. No carnaval, essa ideia tem amplo destaque.

E esse tipo de imaginário social não existe por acaso, tem relações com a literatura e as artes em geral, com forte contribuição da música. Neste sentido, a questão da identidade pernambucana assume relevância, pois, presente de modo constante no imaginário cotidiano das pessoas, é um campo muito aberto para abordagens críticas. Por vezes é apropriado por grupos de “cultura popular”, sendo também utilizado como estratégia política e cultural das elites regionais.

É difícil rastrear a origem desse imaginário regionalista. Contudo, acreditamos que não seja difícil aceitar que na década de 1920 ele ganhou certo relevo na conjuntura socioeconômica e cultural brasileira, sendo colocado em pauta pelos regionalistas nordestinos. E aqui se destaca a figura do intelectual Gilberto de Mello Freyre. No curso do século vinte, esse imaginário passou por uma série de reapropriações em diferentes contextos, como aconteceu na década de 1950, com o discurso desenvolvimentista nordestino, que falaremos mais para frente.

Em outro momento, por exemplo, pode-se dizer que o movimento mangue que emerge na década de 1990 assume determinados valores de reforço de aspectos da cultura local com influência desse imaginário; ainda que de outro modo, buscando explícita e diretamente uma fusão dos elementos locais, tidos como regionais, com a cultura pop estrangeira. Algo novo, local, mas também universal, com ingredientes globais. Em comum com o regionalismo presente desde o Manifesto Regionalista, os mangueboys que surgem na década de 1990 procuram mostrar que no Recife ou em Pernambuco existe produção cultural expressiva, rica, que merece atenção e destaque. Numa perspectiva de resgate da “autoestima da cidade”, mostrar o que aqui estava sendo produzido, chamar a atenção para um polo de cultura diferente do centro nacional (Centro/Sul/Sudeste). Esse sentimento de “Pernambuco falando para o mundo” presente no movimento mangue atravessa a história cultural e musical do estado no último século, sendo apropriado pelos órgãos públicos e privados como estratégia de propaganda, como expressão de “identidade pernambucana” criada e reforçada em cada situação.

Sobre a pernambucanidade, também não saberia dizer o momento exato em que essa ideia surge. Entretanto, o que se sabe é que o termo aparece no Manifesto Regionalista, na seguinte passagem:

Homens, todos esses, com o sentido de regionalidade acima do de pernambucanidade - tão intenso ou absorvente num Mário Sette - do de paraibanidade - tão vivo em José Américo de Almeida - ou do de alagoanidade - tão intenso em Otávio Brandão - de cada um; e esse sentido por assim dizer eterno em sua forma - o modo regional e não apenas provincial de ser alguém de sua terra - manifestado numa realidade ou expresso numa substância talvez mais lírica que geográfica e certamente mais social do que política. Realidade que a expressão “Nordeste” define sem que a pesquisa científica a tenha explorado até hoje, sob o critério regional da paisagem [1] (FREYRE, 1996, p. 47).

No trecho destacado, Freyre está buscando articular uma noção de pertencimento a uma região maior, que transcende as fronteiras e os limites locais das províncias. Trata-se de dar “conteúdo cultural” à recém-surgida região “Nordeste” enquanto ponto colateral, delimitado em 1919 pelo IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas), para demarcar a região afetada pelas secas. Isso, por outro lado, não quer dizer que a sociabilidade entre as “províncias do Norte” não existisse antes da “invenção do Nordeste”. As “identidades provincianas” se formaram muito antes da própria ideia de uma “identidade nacional”, de um “ser nacional”. Com efeito, o que houve foi uma transferência de valores já existentes para algo que agora parecia mais palpável e mais bem recortado temporal e espacialmente, com o reforço do traçado geográfico no território. Em linhas gerais, este é o horizonte mirado pelo Manifesto Regionalista, escrito por Gilberto Freyre e, segundo ele, lido na ocasião do I Congresso Brasileiro de Regionalismo, realizado em 1926, em Recife. Alguns analistas suspeitam disso. O manifesto, entretanto, só foi tornado público em 1952.

As críticas ao Manifesto Regionalista pontuam aspectos diversos, com interpretações de analistas que chegam a divergir. Destacarei apenas dois pontos. Uma dessas críticas, talvez a mais forte, é a da “visão senhorial”, da casa grande, atribuída sobretudo às interpretações de Gilberto Freyre, associadas a um projeto político ligado aos interesses das elites agrárias nordestinas. Um certo contraponto ao modernismo da semana de 1922 (apesar de existirem pontos comuns). Por outro lado, há quem reconheça certa atualidade em alguns temas abordados no manifesto, como é o caso da forma como as expressões populares tradicionais aparecem com certo destaque, evidenciando as contribuições indígenas e negras para a constituição da cultura brasileira, tratando-as como “valor positivo”. Visão que ia de encontro ao paradigma cientificista vigente da virada do século dezenove para o século vinte.

Sendo uma identidade cultural, a identidade pernambucana é permeada de contradições. Em muitas ocasiões, os diferentes grupos sociais que dela se utilizam reforçam elementos essencialistas. Por isso mesmo ela não é uma “coisa em si”, mas é algo pelo que se luta, algo que se constrói e que, portanto, está em constante movimento. Quando reivindicada, por qualquer que seja o grupo, ela se revela como um projeto. E como toda identidade cultural, a sua construção é fruto de um processo histórico de disputas na sociedade.

Como se sabe, a capitania de Pernambuco foi, por séculos, uma das mais ricas e bem sucedidas do país. Na virada do século dezenove para o século vinte, as “oligarquias nordestinas” assistiram ao levante modernizador do Sul, que colocava em prática o seu projeto nacionalista particular. Por esse motivo - e aqui vai uma hipótese ainda pouco trabalhada -, para compensar a consecutiva perda de poder, se gestou aquilo que os pernambucanos reconhecem como “mania de grandeza”, aquilo que se aprende desde cedo e que é reforçado cotidianamente: exaltar as coisas que Pernambuco tem de “melhor e mais autêntico” em relação ao resto do país e até mesmo do mundo (ainda que se possa questionar alguns parâmetros utilizados na aferição). Mesmo sendo desmentido, o(a) bom(boa) pernambucano(a) diria que o que importa é o que está no coração. Pelo menos no seu.

Outras manias de grandeza que todo(a) pernambucano(a) se gaba: a igreja e a capital mais antigas do país, o primeiro núcleo econômico do país, o primeiro tratado de História Natural do país, o primeiro grito da república, o mercado público mais antigo do país, o jornal em circulação mais antigo da América Latina, a cultura mais rica e diversa do país. E a lista não para por aí. Além disso, podemos destacar as características tão bem reforçadas por muitos folcloristas no século passado, de que as verdadeiras raízes nacionais poderiam ser encontradas preservadas no Nordeste, intocadas pelo concreto da indústria, que tudo padroniza. É tanto que a Missão de Pesquisa Folclórica (1938), projeto organizado e liderado por Mário de Andrade, quando diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, realizou uma expedição no Nordeste com a finalidade de registrar as expressões folclóricas.


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FOOTNOTES

[1“Manifesto Regionalista”, Gilberto Freyre, 1996 [1926], p.47.
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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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