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SEMANÁRIO

Leon Trótski: para atualidade radical do comunismo

João De Regina

Ilustração: Juan Chirioca | @macacodosul

Leon Trótski: para atualidade radical do comunismo

João De Regina

Neste artigo abordaremos alguns motivos que fazem do pensamento e legado político de Trótski e da IV Internacional, há 83 anos de sua fundação, se compreendido de forma integral - sem separações entre Trotski teórico, partidário e/ou estadista - incontornável para aqueles que buscam a atualidade do comunismo no século XXI. Propomos que deve ser em torno da reivindicação criativa dos pilares estratégicos, teóricos e políticos de Trotski, materializados na fundação da IV Internacional, que se encontra a possibilidade do comunismo se fundir com os movimentos de massas contemporâneos. Uma via oposta ao fenômeno do chamado neostalinismo que limita o signo do comunismo ao legado estéril dos diferentes socialismos burocráticos do século XX.

Trótski já possui um lugar na história como uma alternativa marxista às experiências stalinistas. Comumente lembrado pela complexidade e vastidão de sua obra, adquiriu um lugar de destaque entre os revolucionários. Temido e perseguido em vida tanto pelas burguesias de regimes capitalistas quanto por Stálin, seu nome está entre as grandes personalidades do século XX.

As condições adversas impostas a sua vida pessoal dedicada a revolução e seu assassinato a mando de Stalin 81 anos atrás faz de sua vida pessoal um exemplo de “tragédias impostas aos revolucionários” e o marcaram como uma personalidade excepcional.

Por outro lado, seu legado político, para além dos marxistas revolucionários que reivindicam a tradição do trotskismo, é pouco reivindicado e, por vezes, problematizado. Mesmo um dos principais biógrafos de Tróstki, Isaac Deutscher, considerou que a fundação da IV Internacional foi um ato voluntarista, devido à ausência de um ascenso da luta de classes, como haveria sido a fundação da III internacional. Deutscher diminui a importância da fundação da IV Internacional, segundo ele, “só uma pequena conferência de trotskistas celebrada na casa de Alfred Rosmer em Perigny, uma aldeia próxima de Paris, em 3 de setembro de 1938” [1].

O biógrafo de Trótski também foi um dos analistas mais profícuos para pensar a Guerra Fria tendo como eixo a percepção de que se tratava de um conflito entre dois sistemas sociais antagônicos. Porém, assim como considerou pouco necessários os esforços de Trótski para a formação programática, política e de quadros para a IV Internacional, Deutscher separou do legado trotskista a bandeira da revolução política nos países de socialismo burocrático. Considerou possível e provável existirem processos de reformas na própria burocracia da URSS. Assim, distancia-se da teoria-programa da Revolução Permanente e da dinâmica estratégica proposta pela IV Internacional, de articulação de revoluções nos países centrais, na periferia e revoluções políticas nos Estados operários burocratizados.

Em algum sentido, ao separar a importância da aposta estratégica de Trótski na fundação da IV internacional, Deutscher está expressando uma tendência forte dos marxistas no pós-Guerra que era o abandono da hipótese de que a vida dos Estados operários dependia do triunfo da luta de classes internacional. Não eram Estados alternativos que poderiam sobreviver autonomamente. Os resultados da luta de classes na arena internacional continuaram a intervir no futuro dos países operários. E as burocracias desses Estados foram fatores determinantes na derrota internacional do proletariado, logo, da própria futura restauração capitalista. O fato de que, em um período de menos de 50 anos, um mundo que parecia ter sua metade vermelha retornasse quase que inteiramente ao domínio do capital é um dos processos históricos que mais confirmam a teoria-programa da Revolução Permanente e a necessidade da reconstrução da IV Internacional.

As correntes trotskistas não conseguiram construir alternativas ao stalinismo no contexto da Guerra Fria:

A IV Internacional depois da II Guerra Mundial foi dizimada frente a perseguição do fascismo, do stalinismo e do imperialismo “democrático”. Neste marco se produziu uma quebra da unidade entre programa e estratégia. O resultado foi a adaptação a outras estratégias, como por exemplo, as guerrilheiras, que eram produto de revoluções onde primava o peso semiproletário dirigidos por partidos em forma de exércitos. [2]

A reivindicação de Trótski como um pensamento alternativo aos fracassos dos regimes socialistas não foi algo ausente dos debates teóricos após o fim dos Estados operários burocratizados. Para além do trotskismo, uma variedade de teóricos acadêmicos que pensavam a revolução reconheceram a importância das abordagens de Trótski. Em 1997, por exemplo, a Revista Zona Abierta apresentou alguns artigos sobre Trótski em que autores como Michel Buroway [3] e Leopoldo Moscoso [4] o reivindicam como um analista e teórico da revolução. Nesses artigos, encontra-se uma positividade no método e na dinâmica do pensamento de Trótski, mas uma recusa de seu papel revolucionário e dirigente no Partido Bolchevique. Também está negligenciada em tal leitura a importância de Trótski na construção de um partido que pudesse construir uma força social objetiva que materializasse a teoria da Revolução Permanente, a IV Internacional.

Trata-se de uma espécie de reivindicação fraturada na qual a agudez e sofisticação teórica de Trótski se separa de seu leninismo expresso como o fundador do Exército Vermelho, líder na Guerra Civil e na fundação da III Internacional, assim como na sua insistência em continuar o legado da tradição revolucionária em um partido, a IV Internacional, para que fosse força viva do Programa de Transição enfrentando os desafios revolucionários e se opondo à burguesia capitalista e à burocracia da URSS.

Neste artigo, abordaremos alguns motivos que fazem do pensamento e legado político de Trótski, se compreendido de forma integral - sem separações entre Trótski teórico, partidário e/ou estadista - incontornável para aqueles que buscam a atualidade do comunismo no século XXI. Propomos que deve ser em torno da reivindicação criativa dos pilares estratégicos, teóricos e políticos de Trotski, materializados na fundação da IV Internacional há 83 anos, que se encontra a possibilidade do comunismo se fundir com os movimentos de massas contemporâneos. Uma via oposta ao fenômeno do chamado neostalinismo que limita o signo do comunismo ao legado estéril dos diferentes socialismos burocráticos do século XX.

Ascensão e crise do pensamento “crítico”

O final do século XX foi marcado pelo refluxo do pensamento comunista causado pela derrota de um profundo ascenso da luta de classes entre 1968-1981. O triunfo do neoliberalismo, a restauração capitalista nos países do chamado "socialismo real", a convocação para partidos de origem operária e/ou socialista administrarem o capitalismo e a retumbante resignação expressa na tese do “fim da história” marcaram um momento da história global que chamamos de “Restauração Burguesa”.

No interior dessa etapa, as opções de esquerda se restringiram ao que a tradição radical de 1968 chamou de “miséria do possível”. Quando muito, mesmo as versões “radicais” haviam aceitado a ideia de mudanças localizadas, modos de vida nas fissuras do sistema e a convicção de que era possível uma outra vida evitando o confronto direto com o Estado capitalista.

Novas compreensões da transformação social se construíram como parte deste espírito de época. Os mais otimistas aceitaram que não seria necessário um momento de transição para o comunismo; e outros “assumiram” uma suposta impossibilidade de um projeto consciente de derrubada do capitalismo e construção de um novo modo de produção. No lugar, imaginou-se a construção de experiências de “contrapoder”, ligadas a movimentos sem identificação de classe que explorariam as brechas dentro do capitalismo ou de suas ruínas.

A esquerda frente a essa restauração burguesa circulou entre uma miríade de variações resignadas à hegemonia burguesa e sua democracia. Por diversas vias se escolheu negar a necessidade e possibilidade histórica de uma revolução: reivindicando somente a luta dentro da ordem e legalidade capitalista; buscando experiências nas fissuras dos sistemas; considerando uma luta revolucionária permanente ou temporariamente impossível de se inserir na história; considerando que a luta por outra hegemonia ocorre em âmbito discursivo e na articulação de lutas particulares; entre outras.

Podemos dizer que por diferentes formas se repetiu de maneira acentuada o ceticismo característico da Escola de Frankfurt entre as décadas de 50 e 60 com a noção clássica da revolução. Nesse contexto, não há dúvida de que foram variadas teorias críticas adversárias do marxismo que hegemonizaram o pensamento descontente. Teóricos embasando-se na teoria do “biopoder” de Foucault passaram a procurar o “paradigma da dominação”: hibridez entre democracia e totalitarismo; Estado de exceção; campos de concentração; guerra; guerra civil; ocupação colonial; entre outros.

Tais paradigmas variantes possuem em comum o fim das distinções entre guerra e paz e a conceituação epistêmica da dominação capitalista, sem substância, seus objetivos políticos ou domínios de classe. Em outras palavras, a hegemonia do pensamento crítico ocorreu em torno, por um lado, da negação da necessidade de uma estratégia revolucionária, e por outro, de uma valoração harmônica, por vezes conspirativa, do poder contemporâneo.

No momento atual, o mundo capitalista passa por uma nova efervescência. Existe um crescente pessimismo com a ordem global capitalista, agudização de contradições estruturais, novos ciclos da luta de classes com revoltas importantes das massas. Além de profundos processos de crises orgânicas, tanto nos países centrais quanto nos periféricos, e uma politização crescente, com fenômenos progressistas e reacionários. Nesta conjuntura, o marxismo não se encontra tão na defensiva como esteve no final do século XX. Como aponta o sociólogo Iuri Tonelo em seu recente livro, o pós-2008:

“com a entrada num período de interregno entre o momento de pré-crise de hegemonia neoliberal e o pós-2016, em que a crise orgânica atinge o coração do sistema e começa a disputa geopolítica entre Estados Unidos e China, os debates em torno do marxismo também vão sofrer um processo de transformações.”

 [5]

O crescente interesse pela obra de Marx, a simpatia da juventude estadunidense pelo socialismo, o retorno da palavra revolução são sintomas dessa transformação. O que, de fato, não significa fim da resignação. Porém, desde 2008, existem novas oportunidades para colocar o marxismo revolucionário na ofensiva e reabilitar o comunismo como um movimento real.

Mas, para isso, é necessário reabilitar a hipótese de que a classe operária possa emergir como sujeito político hegemônico do processo revolucionário e que sua organização enquanto classe dominante implique em um Estado de transição que, junto à revolução internacional, signifique seu próprio fim. É essa a importância do pensamento de Trótski para uma hipótese comunista do século XXI. E é este também o motivo de as experiências do chamado “socialismo real” reivindicadas de forma acrítica, resignada ou condescendente serem um empecilho para a atualização radical do comunismo em nosso tempo.

Crises de sujeitos e do comunismo

Em março de 2009, os filósofos Alain Badiou e Slavoj Zizek organizaram em Londres uma conferência intitulada “A ideia do comunismo”. Estavam presentes nomes como Terry Eagleton, Toni Negri, Michael Hardt, Judith Balso, entre outros. Os participantes possuíam como condição apresentar uma recuperação positiva da palavra comunismo. Para Badiou, o evento foi um sintoma surpreendente por apresentar de forma potente uma palavra condenada à morte por mais de 30 anos.

Em certo sentido, de fato a conferência pode ser um sinal de mudanças nas formas de circulação em torno das ideias do marxismo. A crise de 2008 implicou em um conjunto de mudanças fundamentais que questionaram profundamente as ideias críticas hegemônicas da etapa anterior. Como exemplo poderíamos citar a crise da União Europeia que trouxe de forma retumbante a centralidade dos Estados nacionais e das crises interestatais. E os processos da Primavera Árabe que trouxeram à primeira ordem das discussões públicas a palavra revolução.

Nesse sentido, é possível que, acompanhando os eventos após a crise de 2008, o renovado debate em torno do comunismo expressasse realmente certa turbulência na hegemonia do pensamento crítico dos anos 90. Porém, essa reivindicação da palavra comunismo no século XXI possuía no evento em questão, e ainda possui para muitos teóricos, muitos pontos de contato com teorias anti-estratégicas, em especial a negação de que o comunismo seja um movimento potencialmente inscrito na ordem social e protagonizado por uma classe social potencialmente revolucionária.

Um dos paradigmas das teses autonomistas em voga no fim do século passado foi estabelecido por Toni Negri. Segundo ele, as mudanças estruturais do neoliberalismo permitiram o aparecimento de sujeitos autônomos que, na forma de multidão, poderiam negar o capitalismo não no modo de um confronto, não dialeticamente, mas na forma de uma alternativa, o “comunismo aqui e agora”.

Alain Badiou, por sua vez, apresenta o comunismo como uma Ideia onde não existe confluência entre ela e os objetivos políticos. Para ele, nos encontramos em uma 3° fase da Ideia Comunista, que sucede a sua invenção e suas experiências estatais no século XX. A posição de Badiou é representativa de uma tendência de apresentar o comunismo como uma abstração dissociada de objetivos políticos. Segundo ele:

“a Ideia expõe uma verdade numa estrutura de ficção. No caso particular da Ideia comunista operante quando a verdade da qual se trata é uma sequência política emancipadora, diremos que ‘comunismo’ expõem essa sequência (e, portanto os militantes dessa sequência) na ordem simbólica da história. Ou ainda, a Ideia comunista é a operação imaginária pela qual uma subjetivação individual projeta um fragmento do real político na narração simbólica de uma História. É nesse sentido que é judicioso dizer que Ideia é (como já esperávamos”) ideológica. [6]

Dentro de uma teoria do “Evento”, a leitura de comunismo de Badiou é particularmente voluntarista. Não por acaso, ele rejeita a ideia de que o fim do capitalismo depende de uma potencialidade inscrita na ordem real, em uma classe que possa ser sujeito da revolução. Tal postura é uma rejeição da noção de “crítica da economia política de Marx” e a negação de que exista uma potencialidade revolucionária inscrita no próprio mecanismo objetivo do capitalismo: o proletariado.

[No século passado] supunha-se que a política de emancipação não era pura ideia, uma vontade, uma prescrição, mas estava inserida, e quase programada, na realidade histórica e social. Uma das consequências dessa convicção é a de que esse agente objetivo deve ser transformado em força subjetiva, essa entidade social deve se tornar um ator subjetivo. [7]

Ironicamente, essa mesma postura combina uma proposta, para o 3° período da Ideia comunista, por um lado subjetivista, mas, por outro, condescendente com as experiências burocráticas do socialismo no século XX. Badiou recusa tanto o instrumento partido, quanto a estratégia de um Estado socialista como instrumentos de realização da Ideia comunista. Porém, sustenta a Ideia de que comunismo ainda depende de uma subjetivação nominal que se apresenta na figura de líderes: “A ação anônima de milhões de militantes, insurretos e combatentes, por si mesma, irrepresentável, é reunida e contada como um no símbolo simples e poderoso do nome próprio.”[8] Não por acaso, a alternativa à “crítica” de Kruschov ao culto da personalidade de Stálin para Badiou é o Mao Tsé-Tung, especialmente o da Revolução Cultural.

Em síntese, Alain Badiou rejeita a possibilidade da organização da hegemonia proletária como volume de força em troca de uma abstração do comunismo em que o “nome próprio dos líderes” seja, não expressão de um movimento real da classe, mas a representação da Ideia do comunismo (infinito popular) em “uma finitude de nomes próprios”. O comunismo enquanto Ideia de Badiou é a resignação frente às derrotas das experiências reais dos Estados operários, a negação da necessidade de estratégia. O status do comunismo retorna a de um “projeto” desligado de um objetivo político concreto.

Podemos dizer que Antoni Negri e Alain Badiou ainda expressam muito de um paradigma do pensamento crítico pós-anos 70: a fuga do problema saída do Estado. Tal fuga é operada por Negri diluindo a política no social e reivindicando a ideia de que a globalização havia formado “redes globais do Império”. Alain Badiou, por sua vez, opera a fuga nos termos de um movimento para um terreno mais abstrato da filosofia.

Slavoj Zizek, por sua vez, busca contornar o paradigma da fuga do Estado. Conclamando que a esquerda volte a encará-lo, inclusive, propondo a ressurreição clássica de projetos marxistas como partido, ditadura do proletariado e violência revolucionária. Porém, o esloveno apresenta uma proposta de repetir Marx “sem a noção utópica do comunismo”. Segundo ele, em Marx a sociedade comunista aparece como “fantasia capitalista, ou seja, um cenário fantasmático para a resolução dos antagonismos capitalista que ele descreveu com tanta habilidade” [8]. Para Zizek, a força de noções marxianas como ditadura do proletariado se encontra mais em seu potencial formal disruptivo do que em sua substancialidade.

Aparentemente, com conclusões opostas à de Badiou, os dois apresentam a rejeição do sujeito potencialmente revolucionário no interior da estrutura capitalista. Nos dois filósofos, o comunismo está mais próximo de uma “noção de projeto” do que “o movimento real que supera o estado de coisas atual” [9]. E o motivo aqui também ocorre devido a recusa da Estratégia, mas também de um sujeito. Mesmo em Zizek a alternativa é uma visão de Estado mais hegeliana que marxista. Em resposta à utopia democrático-liberal, ele propõe o resgate de um projeto que envolva: povo-nação-partido-líder. Uma proposta política “marxista” sem classe.

Aqui, a influência foucaultiana também está presente nos dois autores. No calor de seu engajamento com a revolução iraniana, Foucault afirmou:

“Sabemos agora que não há um sujeito da história. A história não carrega em si esse sujeito, e esse sujeito não carrega em si a história. Creio que é isso que está se manifestando. Essa espécie de insurreição dos sujeitos que não querem mais ser assujeitados ao sujeito da história, é esse, creio, o fenômeno característico de nossa época.” [10]

A ausência da noção de classe como articulação subjetiva também está presente em Zizek quando afirma que "o verdadeiro marxista sabe que as ’classes’ não são categorias da realidade social positiva, ou partes do organismo social” [11]. Poderíamos nos perguntar qual o sentido da valorização das experiências revolucionárias para Zizek se ele não concorda com a ideia de que elas correspondam a um projeto de classe? Penso que a resposta esteja no fato de o que Zizek valoriza nas experiências socialistas não é a chamada “hipótese do comunismo”, mas fundamentalmente um aspecto formal, a possibilidade de instauração de uma nova ordem.

O perigo de tal disjunção é que, sem a classe social como substancialidade, o que ganha destaque no projeto emancipatório de Zizek é apenas o próprio Estado. No livro sobre Hegel, Menos que Nada, Zizek defende abertamente uma leitura de Estado hegeliana: uma máquina autônoma, com procedimentos próprios, sem “a ilusão de Marx” na qual o Estado representaria forças da sociedade civil. Nesse sentido, o Estado não é exatamente fruto do poder de alguma classe social, mas possui substancialidade própria. O risco aqui é evidente, o agente positivo de uma nova ordem social é o próprio Estado.

Tanto o “comunismo aqui e agora” de Negri, o “comunismo enquanto Ideia” de Badiou ou a “recusa da noção utópica de comunismo” de Zizek apresentam o ceticismo do comunismo como um movimento real. Os três autores chegam a conclusões teóricas distintas, mas compartilham a reivindicação da fissura entre o comunismo e o movimento histórico (ainda que não teleológico) da classe operária como sujeito. Longe de uma atualização do comunismo, eles expressam uma adaptação deste em um cenário intelectual crítico hegemonizado pelo pensamento pós-marxista e pela “democracia radical”, no qual a luta de classes é substituída pela articulação discursiva de lutas particulares em busca de uma nova hegemonia.

Após o “socialismo real”, qual Trótski?

Para os objetivos do presente artigo, Zizek é o autor que imprime a concepção mais expressiva. Frente ao desmoronamento da utopia democrático-liberal e ao aparecimento de uma ideologia "anti-establishment de ultradireita”, surge em setores críticos ao capitalismo uma revitalização positiva e resignada das experiências do chamado socialismo real.

Zizek possui uma leitura no mínimo particular sobre o fracasso da experiência do socialismo real. Segundo o esloveno, os Estados socialistas foram incapazes de criar uma verdadeira burocracia: uma máquina técnica despolitizada e eficiente. Longe da reivindicação clássica do socialismo como um Estado que se auto-extingue, Zizek argumenta que foi a não constituição de uma burocracia estatal autônoma o fracasso do socialismo. O Estado socialista deixa de ser um meio para ser um fim. Não é por acaso que o autor é bastante crítico sobre a possibilidade de generalizar experiências de democracia direta e autogestão dos trabalhadores.

Pela positiva, a proposta de Zizek é a “unidade simbólica povo-nação-partido-líder”. Tal volta ao Estado continua sendo um projeto reificado e expressa sua posição resignada frente aos Estados socialistas burocráticos. As experiências socialistas do século XX geraram uma ideia de defesa do socialismo não como um movimento transitório ao comunismo, mas como uma nova forma social não capitalista passível de ser reivindicada em si mesma. A proposta de Zizek continua dentro desse marco.

Na visão marxista, o novo Estado operário, que superaria o capitalismo, seria também, uma transição ao fim do próprio Estado. Tal instrumento político teria como base social a organização democrática da classe operária e o conjunto dos oprimidos, teria a função de defesa frente à contrarrevolução, ao mesmo tempo em que almeja colocar fim à burocracia estatal e ao monopólio das armas e garantir a planificação econômica. A proposta soviética de Trotski, por exemplo, que dava continuidade às teses de Lênin em O Estado e a Revolução, não se trata apenas de uma medida democrática, mas uma forma de real planificação da economia:

Sobre a base desta definição de Marx, de um Estado transitório que leva em si mesmo os germes de sua própria extinção, Lênin elaborou em O Estado e a Revolução sua concepção de “semi-estado proletário”, que após a derrubada da burguesia. Lênin demonstra como o desenvolvimento da técnica alcançado sob o capitalismo e o avanço cultural das massas, permitia simplificar ao extremo as tarefas de “controle da contabilidade” que o Estado devia desempenhar, e portanto punha a administração ao alcance da maioria dos trabalhadores. Para Lênin a redução da jornada de trabalho traria consigo a planificação democrática da economia, o programa democrático radical, baseado nos critérios de elegibilidade e revogabilidade de delegados, a liquidação dos privilégios materiais, e o armamento geral da população, iam garantir que o Estado se encaminhasse em direção a sua extinção. [12]

A proposta de Zizek ao prescindir da visão da classe operária enquanto sujeito revolucionário e substancial do Estado socialista abandona a própria hipótese comunista. É ilustrativa dessa posição a leitura que Zizek faz da figura de Trótski:

A figura de Trótski continua sendo crucial, na medida em que representa o elemento que perturba a alternativa “socialismo social-democrático ou totalitarismo stalinista”: o que encontramos em Trótski, em seus textos e em sua prática revolucionária nos primeiros anos da União Soviética, é o terror revolucionário, o domínio do partido e assim por diante, mas de um modo diferente do stalinismo. Portanto para permanecer fiel às realizações reais de Trótski, seria preciso refutar os mitos de um Trótski democrata e caloroso que protegia a psicanálise, misturava-se aos surrealistas e teve um caso com Frida Kahlo. [13]

Se as reivindicações de Trótski como teórico da revolução realizada na Revista Zona Abierta, por exemplo, recusava seu papel enquanto dirigente de Estado, acusando-o de período jacobino de Trótski. A proposta de Zizek é um Trótski estadista dissociado de sua vida política após a derrota da Oposição de Esquerda.

É verdade que Trótski é a figura principal de um marxismo não-stalinista. Pois foi o revolucionário que deu respostas mais realistas e radicais aos problemas da transição de “um novo ordenamento social e a questão de qual arquitetura almejada pela nova sociedade” [14]. Porém, os elementos que Zizek está descartando não são só “mitos românticos” em torno de Trótski, mas sua dedicação à constituição efetiva de uma direção revolucionária que pudesse encarnar a teoria da revolução permanente, incluindo o programa da revolução política na URSS.

Essa “reivindicação” de Trótski como estadista de Zizek se relaciona a uma convicção característica dos anos 60 e 70, sobre a possibilidade de regimes socialistas que se auto reformem para um “socialismo diferente”. Essa convicção, produto da percepção equivocada de que o “socialismo real” eram sociedades alternativas, influenciou o próprio movimento trotskistas e o próprio Isaac Deutscher, biógrafo de Trótski, como salientamos na introdução deste artigo.

A posição de Zizek antecipa por alguns anos a revitalização de legados stalinistas que assistimos recentemente. Mas, como o próprio esloveno confessa, suas posições estão bem longe de uma reivindicação substancial do comunismo, como fim das classes sociais e do Estado. Sua proposta de revolução está muito longe de elementos como a expropriação da burguesia, o controle operário e a planificação socialista, insurreição e forças armadas revolucionárias. Para ele, o potencial de conceitos como violência revolucionária, ditadura do proletariado e luta de classes está não na ordem objetiva do mundo, mas em seu potencial disruptivo enquanto Ideia.

Tal posição é expressiva e compartilha do que tem sido nomeado de “neostalinismo”: a reivindicação de uma ordem burocrática não capitalista inspirada de forma mais ou menos acrítica nas experiências deformadas do socialismo. Em outras palavras, a ilusão de que os regimes nacionalistas stalinistas pudessem ser sociedades estáveis alternativas ao capitalismo.

O combate a essa concepção foi um dos pontos chaves das batalhas de Trótski e de sua análise sobre a natureza do Estado soviético. Foi essa convicção que o permitiu compreender a relação entre o isolamento do socialismo na URSS e o papel contrarrevolucionário que a III Internacional progressivamente assumiu, especialmente após a vitória do nazismo na Alemanha. Por sua vez, tal leitura implicava na compreensão do papel contrarrevolucionário da URSS que resultava em traições no terreno internacional da luta de classes e na degeneração burocrática do Estado operário, que cedo ou tarde - sem o encontro da Revolução internacional - resultaria na sua restauração.

Na lógica estratégica de Leon Trótski, existe uma relação dialética entre o momento da tomada do poder em países específicos, a vitória global da revolução e o fim político do comunismo. Tal compreensão é radicalmente oposta ao significado das experiências socialistas da segunda metade do século XX, sejam as inspiradas no maoísmo, na burocracia da URSS ou no titoismo, que transformaram seus próprios Estados nacionais como fins em si mesmos.

O slogan, difundido por apologistas dos regimes burocráticos, de que “o pior socialismo é melhor que qualquer capitalismo”, expressa a incompreensão da natureza dos Estados socialistas deformados que nasceram das experiências socializantes da segunda metade do século XX.

Estado, classes e militarismo nas experiências revolucionárias do pós-guerra

A principal característica da conjuntura internacional na Segunda Guerra Mundial foi que o imperialismo, com ajuda da burocracia do Kremlin, conseguiu evitar a revolução em países centrais. Porém, o mesmo não aconteceu na periferia, onde movimentos nacionalistas e processos revolucionários irrompiam o cenário internacional com frequência. Tal conjuntura internacional, contraditoriamente, favoreceu correntes terceiro-mundistas, ao mesmo tempo em que incentivou um ceticismo na possibilidade de revoluções nos países centrais. Passaram a hegemonizar concepções de esquerda nacionalistas e militaristas.

De forma geral, as revoluções da segunda metade do século XX possuíram uma dinâmica na qual líderes de partidos-exércitos ou movimentos guerrilheiros, foram empurrados pelas circunstâncias mais do que eles próprios vislumbraram. Esse fenômeno em que nacionalistas, no curso da luta armada, avançavam para uma expropriação da burguesia e para a constituição de um Estado planificado de ideologia socialista pode ser compreendido no contexto internacional pós-Guerra, marcado por acordos, como Yalta e Potsdam, que estabeleciam um equilíbrio entre as potências que saíram vitoriosas da Segunda Guerra Mundial.

Mao Tsé-Tung formulou, em certo sentido, os contornos principais de um modelo estratégico de grande influência na segunda metade do século XX: a “Guerra Popular Prolongada”. Tal estratégia ganhou contornos específicos em diferentes processos. Mas a ideia de um partido-força militar com base social camponesa que progressivamente desenvolvia suas forças em zonas rurais, que deveria dirigir a luta e a construção de uma nova nação, é uma característica comum de revoluções como a chinesa ou a vietnamita.

Nessa estratégia, existem contradições centrais entre os objetivos iniciais nacionalistas e o curso socialista seguido pelos processos. Para Mao Tsé-Tung, por exemplo, a revolução colocada na China estava dirigida contra o imperialismo e o feudalismo, e não contra o capitalismo. Esse caráter se manteria por um longo tempo e possuía um conteúdo de aliança de classes, nomeada no seu pensamento de “bloco de quatro classes”. Estabelecida não só entre operários e camponeses, mas com setores da burguesia nacional e mesmo de latifundiários “sensatos”, ou seja, aqueles que se opunham aos objetivos do imperialismo japonês.

Este é o sentido “prolongado” da revolução no pensamento maoísta. Ele estava ligado não diretamente ao objetivo de uma revolução, mas, antes de tudo, à guerra que a China lutava contra o Japão. Em termos dos partidos políticos, tal aliança implicava uma frente com o partido nacionalista Kuomintang. Na prática, o pensamento estratégico de Mao imaginou que para a vitória da libertação nacional contra o Japão, era necessário colocar limites à revolução.

O desenvolvimento do processo revolucionário chinês foi distinto do que o imaginado por Mao Tsé-Tung. A guerra contra a ocupação japonesa acabou em 1945, produto também da derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial. Apesar da defesa de Mao da formação de um governo de unidade nacional com o Kuomintang, será somente depois de Chiang Kai-Shek iniciar a ofensiva de uma nova guerra civil em que Partido Comunista Chinês era o inimigo principal, que o Partido Comunista Chinês será obrigado a transitar da luta de libertação nacional para a expropriação da própria burguesia.

No contexto da Guerra Fria, muitas experiências socializantes foram realizadas em base a convicções características desta estratégia. Entre elas, a organização democrática da classe operária, em aliança com os camponeses e oprimidos, poderia ser substituída por partidos militarizados com lideranças pequeno-burguesas. O Estado não possuía qualquer auto-organização democrática. Eram ditaduras de partido único que glorificavam as lideranças guerrilheiras e desconfiavam da capacidade dirigente das massas. O Estado e sua burocracia eram vistos como os únicos dirigentes e modelo da “nova sociedade”. A experiência militar era o guia para toda atividade social, o princípio eminente de toda luta política que deveria subordinar todos os outros aspectos.

Uma característica comum dos stalinistas é apresentar os expurgos, processos repressivos e violência estatal como atividades necessárias da planificação econômica e das necessidades da revolução. Mas os Estados socialistas do pós-guerra estavam na contramão de uma liderança forte que pudesse garantir as conquistas da revolução. Tal argumento é uma reificação burocrática, um fetichismo militar, que ignora que assim quando as condições permitiram o Estado e a burocracia dirigente foi agente da restauração capitalista. Em alguns casos, a violência estatal, a coletivização forçada dos camponeses e os expurgos massivos foram meios utilizados para que a própria burocracia restaurasse o capitalismo, mantendo os “partidos comunistas” com o poder centralizado.

O contexto da Guerra Fria forjou direções que imaginaram a independência nacional mesclando noções “marxistas”, influenciadas pela URSS ou pela China maoísta com características nacionalistas burguesas. Muitos desses líderes buscaram alianças e articulações internacionais, alguns eram diretamente mais pró-blocos socialistas e outros pró-ocidente, e alguns buscavam manter posições mais neutras. As principais potências da Guerra Fria, por vias diplomáticas e de “ajuda”, buscaram instrumentalizar esses processos revolucionários que surgiam de acordo com seus próprios interesses.

Neste contexto, ainda que alguns processos revolucionários rumaram para tentativas socialistas, em sua grande maioria não foram além dos nacionalismos burgueses. Assim, podemos dizer que apesar da grande potencialidade revolucionária que se desenvolveu entre os anos 60 e 80 os processos congelaram-se e reverteram-se fundamentalmente devido às direções e estratégias adotadas por elas.

Um dos legados mais danosos das experiências dos Estados operários degenerados que se formaram, orientados por estratégia maoísta e/ou guerrilheiras, é a separação da estratégia militar dos objetivos políticos. No fundo, tal concepção implicava em limitar o objetivo político do comunismo. A reificação do aspecto militar, a ausência de um Estado baseado na planificação democrática da economia, a ditadura de um partido único implicava em obstáculos centrais ao comunismo e, fundamentalmente, após a vitória, o partido exército se transforma em Estado e os objetivos políticos passam a ser exclusivamente nacionais. O partido-exército constrói um regime bonapartista e burocrático com interesses políticos próprios que transforma a luta de classes, em luta de interesses de Estado.

Na arena internacional, o bloqueio ao objetivo comunista também se impõe. Uma das diferenças mais marcantes entre a Revolução Russa e a Revolução Chinesa é que esta não produziu nada próximo ao impulso de internacionalismo proletário que construiu a III Internacional. Não por acaso, na Guerra Popular Prolongada, a luta por uma revolução internacional foi substituída pelo nacionalismo e pela diplomacia burocrática. O apoio a outros processos revolucionários ocorriam dentro do conflito de interesses geopolíticos da Guerra Fria, e não como parte de uma estratégia global da revolução. Por vezes, a contradição entre nacionalismo-burocrático e avanço internacional da revolução foi tão agudo que ocorreram guerras entre Estados operários, como China e Vietnã em 1979.

A organização do partido em forma de exército, a ausência de democracia operária, o Estado socialista compreendido como um aparato burocrático-militar e os limites do socialismo nos interesses nacionais são características centrais dos socialismos da segunda metade do século XX. A reivindicação dessas experiências como modelos para saídas revolucionárias no presente são resquícios da ilusão de que tais regimes constituíram alternativas sociais ao capitalismo. E o grande prejuízo de tais reivindicações para a construção de uma Estratégia Revolucionária contemporânea é o abandono do comunismo como objetivo político. Não é à toa que o chamado neostalinismo continua vendo aliados socialistas no regime chinês, aliados não imperialistas na Rússia e repitam apoios aos mais variados experimentos de conciliação de classes.

“Grande estratégia” contra fetichismo militar

No decorrer da Guerra Fria, o conceito de “grande estratégia” obteve um intenso e variado desenvolvimento. Surgido nos Estados Unidos, para refletir a questão da segurança nacional, posteriormente ganhou muitos significados. De modo geral, o conceito busca relacionar esferas políticas distintas como a diplomacia, a estratégia militar, propaganda, a economia, política interna e externa, entre outros. Além da articulação de diferentes políticas para os tempos de paz e os tempos de guerras. Um aspecto central do conceito é a compreensão da estratégia militar como um dos componentes controlados pela “grande estratégia”.

No livro “Estratégia Socialista e Arte Militar”, Emílio Albamonte e Matias Maiello aproximam o conceito de grande estratégia e Revolução Permanente:

Se a estratégia revolucionária é aquela que liga os combates isolados (tática) com o objetivo político da tomada do poder pelo proletariado, a “grande estratégia” da revolução permanente é que liga globalmente o começo da revolução à escala nacional com o desenvolvimento da revolução internacional e seu coroamento a nível mundial, assim como a conquista do poder com as transformações na economia, na ciência e nos costumes, com o objetivo de uma sociedade de “produtores livres e associados”: o comunismo. [15]

Esta concepção está na contramão da compreensão desenvolvida pelas burocracias socialistas que substituíram a política da luta de classes pela política dos Estados Nacionais. O socialismo passou a ser visto como fim último, descartando o comunismo como objetivo político concreto.

É neste ponto que parece imperioso debater a importância do pensamento militar de Leon Trótski, um dos aspectos mais subvalorizados nas discussões entre marxistas. Não obstante, o valor de seus escritos militares foi reconhecido por historiadores como Neil M. Heymn, o militar norte-americano Harold Walter Nelson e do diplomata George Kennan.

Os escritos de Trótski sobre questões militares formam um conjunto impressionante. Desde suas reflexões sobre a guerra dos Balcãs entre 1912 e 1913, as reflexões que foram parte da preparação da insurreição de Petrogrado, seus escritos enquanto Comissário da Guerra e os documentos do Conselho Superior Militar de 1923 formam um corpo de imensa relevância.

Na Revolução Russa de 1917, o papel de Trótski foi fundamental tanto para a passagem da defensiva quanto para a ofensiva, na qual o Partido Bolchevique pode se adiantar e dirigir a insurreição e a tomada do poder. Quanto ao seu papel como fundador do Exército Vermelho, conseguiu, em uma velocidade impressionante, colocar de pé um exército de 5 milhões de pessoas, capaz de lutar contra 14 exércitos estrangeiros possibilitando consolidar a vitória. Porém, para Trótski nenhuma dessas vitórias foi produto da Estratégia militar pura, em abstrato, pois, para ele, o ponto decisivo é a luta de classes. Na concepção trotskista, a guerra civil é a continuidade violenta da luta de classes.

Trótski possuía o interesse em publicar uma história do Exército Vermelho, assim que iniciou seu exílio em Istambul em 1929. As condições de sua vida, a dedicação a construção da IV Internacional e seu assassinato o impediram de realizar essa tarefa que considerava de suma importância. Porém, Trótski sempre foi explícito na consideração da guerra como uma arte, ou seja, não como uma ciência com “uma doutrina fixa”. Para o fundador do Exército Vermelho a guerra é um fenômeno histórico e social e a ação dos revolucionários em torno dela se desprende da Estratégia Revolucionária entendida globalmente. A atividade militar não é um fim em si mesma.

Essa questão não é de menor importância. Um dos elementos mais interessantes da vida de Trótski é que ele foi um dos marxistas do século XX com maior êxito na atividade militar, sem desenvolver qualquer aspecto fetichista do militarismo. No pensamento estratégico de Leon Trótski, é fundamental a relação dialética entre a força do movimento revolucionário de massas e o papel consciente, conspirativo, de uma direção revolucionária. É desta relação que surge a ideia de uma “arte da insurreição”. A atividade militar nesse caso, ainda que decisiva, não implica uma natureza desligada do objetivo político do comunismo e das necessidades ditadas pela luta de classes. A própria atividade militar revolucionária, está conclamada a desaparecer junto ao Estado e as classes.

A subordinação da atividade militar à grande estratégia da revolução permanente é uma das grandes lições estratégicas de Trotski para os que querem a atualidade radical do comunismo:

Citando Clausewitz, dissemos que a guerra civil é a continuação da política por outros meios. Isto significa: o resultado da guerra civil depende somente 1/4, para não dizer 1/10, da marcha da própria guerra civil, de seus meios técnicos, da direção meramente militar, e os 3/4 restantes, senão 9/10, da preparação política. Em que consiste essa preparação? Na coesão revolucionária das massas, em sua liberação das esperanças servis na clemência, generosidade e lealdade dos escravistas "democráticos", na educação de quadros revolucionários que saibam desafiar a opinião pública oficial e que sejam capazes de exibir diante da burguesia, quanto mais não seja, uma décima parte da implacabilidade que a burguesia exibe diante dos trabalhadores. Sem esta têmpera, a guerra civil, quando as condições a impõem - e sempre terminam por impô-la -, se desenvolverá em condições mais desfavoráveis para o proletariado, dependerá em maior medida de acasos; e mesmo em caso de vitória militar, o poder poderá escapar das mãos do proletariado. Quem não vê que a luta de classes conduz inevitavelmente a um conflito armado é um cego. Mas não é menos cego quem, após o conflito armado e seu desenlace, não vê toda a política anterior das classes em luta. [16]

O caráter ativo da estratégia que liga objetivos particulares, a transformação do terreno político que se atua e o objetivo final do comunismo é um aprendizado necessário aos marxistas revolucionários de nossa época. Tal postura está muito distante da reificação e dos fetiches estatais e militaristas do "socialismo real".


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FOOTNOTES

[1Isaac Deutscher, O profeta banido. Ed. Civilização Brasileira, 2006.

[2Emilio Albamonte e Matias Maiello, Estrategia Socialista y Arte Militar, Ediciones IPS, 2017, p.139.

[3Michael Burawoy, Dos métodos en pos de la ciencia: Skocpol versus Trotski em em Zona Abierta N.° 80/81, Madrid, 1997;

[4Leopoldo Moscoso, El conspirador, la comadrona y la etiología de la revolución em Zona Abierta N.° 80/81, Madrid, 1997.

[5Iuri Tonelo, No entanto ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo, Boitempo / Iskra, 2021 P.214.

[6[6] Alain Badiou, A hipótese comunista. Tradução: Mariana Echalair. São Paulo: Boitempo, 2012. p.137.

[7Alain Badiou, A hipótese comunista. Tradução: Mariana Echalair. São Paulo: Boitempo, 2012. P. 34.

[8Slavoj Zizek. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético; Tradução: Rogério Bettoni. São Paulo Boitempo, 2013. p.100

[9Karl Marx e Friedrich Engels . A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes. Boitempo editorial, 2007. p.38

[10Michel Foucault, O Enigma da Revolta: Entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana, n-1 Edições, 2018. p. 36.

[11Slavoj Zizek, Vivendo no fim dos tempos; Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012. P.159.

[12Claudia Cinatti e Emilio Albamonte, Para além da democracia liberal e do totalitarismo.

[13Slavoj Zizek, Em defesa das causas perdidas, 2011, p.237.

[14Iuri Tonelo, No entanto ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo, Boitempo / Iskra, 2021 p. 251.

[15Emilio Albamonte e Matías Maiello, Estrategia Socialista y Arte Militar, Ediciones IPS, 2017, p.435.

[16Leon Trotski, ¿Adónde va Francia? / Diario del exilio, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP León Trotsky, 2006. p.67-68.
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João De Regina

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