Na Itália, onde a pandemia do coronavírus expôs a crise do sistema de saúde, produto do constante esvaziamento, a história de duas enfermeiras se converteu em viral nas redes. Através de suas redes sociais elas contaram sua experiência, que hoje já ultrapassa as fronteiras.
segunda-feira 16 de março de 2020 | Edição do dia
FOTO: imagem que correu o mundo, de Elena Pagliarini, enfermeira do Hospital Cremon na Itália.
A crise sanitária que acompanha a chegada do coronavírus se faz sentir em todo o mundo. Com os sistemas de saúde privatizados, sem investimentos ou com seus serviços completamente terceirizados há décadas, a situação, por óbvio, se agrava.
E diante do colapso que golpeia particularmente os hospitais públicos - precisamente onde se atende a enorme maioria da população - são as trabalhadoras e trabalhadores, os e as profissionais da medicina, as enfermeiras, as trabalhadoras que se ocupam da limpeza e da higiene do lugar, que realizam os maiores esforços para garantir os atendimentos.
No entanto, quem cuida daqueles que cuidam da saúde da população? A experiência de duas enfermeiras italianas, Alessia Bonari e Elena Pagliarini, cujas histórias se tornaram virais nestes dias, expuseram este questionamento diante de uma crise de magnitude como a que vive esse país, onde milhões seguem expostos a condições insalubres, sem as garantias sanitárias básicas, e as pessoas mais velhas são diretamente condenadas a morrer sem atendimento.
Elas, as trabalhadoras desse setor altamente feminino - que segundo dados da OMS representam 74% em todo o mundo - são de fato as que enfrentam com solidariedade e valentia as consequências da negligência e das negociações que aprofundaram nestas últimas décadas os governos, as direções sindicais, os patrões e as instituições de Estado em todo o mundo.
“Quis agradecer com essa fotografia”
A primeira a furar as paredes do hospital com sua história foi Alessia Bonari, uma jovem enfermeira que contou sua experiência em seu perfil de Instagram, desde o hospital onde trabalha. Frente a em espelho, com seu celular, colocou sua imagem com um texto em que conta como vive a propagação da enfermidade: “estou fisicamente cansada, o uniforme do laboratório te faz suar e uma vez vestida já não posso tomar banho ou beber durante seis horas”, contou, e ainda destacou que “da mesma foram como todos os colegas, que têm estado na mesma situação durante semanas, estou psicologicamente cansada”. “Isto não nos impedirá de fazer nosso trabalho, como sempre temos feito”, afirmou.
“Sou enfermeira e agora mesmo me enfrento a uma emergência sanitária. Também tenho medo. Temo porque a máscara pode não aderir bem ao rosto, ou posso ter acidentalmente tocado a máscara por luvas sujas, ou talvez os óculos não cubram completamente meus olhos e assim algo possa ter ocorrido”, escreveu no post na rede social, junto à imagem que ela mostra com as feridas que deixam as máscaras em sua pele, nas imediações dos olhos pelos óculos, além das feridas causadas por outras medidas preventivas.
Elena Pagliarini também é enfermeira. Tem 43 anos e sua história também se tornou viral. Uma imagem sua, dormindo sobre o teclado de um computador numa oficina do hospital onde trabalha, correu pelo mundo e também expôs o que escondem os governos, as instituições estatais, as direções sindicais e os grandes meios de comunicação: para aqueles que combatem do outro lado do continente a pandemia, que ali se desenvolve há várias semanas, não há tempo nem para voltar à casa.
“É uma grande profissional. Nestes dias de emergência me impactou sua sensibilidade. Quando a vi descansar 5 minutos depois de horas correndo de um paciente a outro, tratando de ajudar a outro paciente que tinha febre e insuficiência respiratória, a olhei e quis abraçá-la, mas preferi capturar esse momento de trégua… com as luvas descartáveis,tira do queixo e uniforme ainda vestidos”, contou à Cadena 100 da Espanha Francesca Mangiatordi, a médica da sala de emergências que tirou a foto que fez sucesso nas redes sociais. “Vê-la com as lágrimas nos olhos enquanto atendia os pacientes me comoveu e quis agradecê-la com esta fotografia”, disse.
“Eram seis da manhã. Mas essa noite passou de tudo”, contou Elena enquanto o governo italiano pedia “responsabilidade social”. Uma vergonha.
Primeiro nossas vidas
As desigualdades sociais, baseadas na distância entre aqueles que podem realizar as medidas de prevenção e de alerta que são necessárias para combater a pandemia, e aqueles que não podem fazê-lo por falta de dinheiro, expressam diferenças enormes: para quem tem serviço social ou podem ser atendidos em centros de saúde privada, a realidade sempre alarmante é uma. Para quem não pode acessar esse serviços, para a ampla maioria das famílias trabalhadoras e para as famílias mais pobres de todo o planeta, a situação é outra.
E quem mostra uma atitude verdadeiramente solidária, quem mais ocupados e preocupados estão por garantir o acesso a este direito elementar, como os cuidados em saúde, são, como acontece todos os dias, aqueles que sustentam este sistema atravessado por essas políticas de ajuste, de cortes orçamentários, de esvaziamento de serviços e de terceirização no atendimento, fatores que aprofundaram nas últimas décadas os governos de todo o mundo.
Os protestos nos lugares de trabalho, as greves e a auto-organização que estamos vendo em numerosos países, como na Itália e hoje na Espanha, são uma resposta necessária para enfrentar a prepotência dos empresários e dos governos, e para começar a debater que medidas são necessárias para enfrentar a pandemia, há de começar por destinar todos os recursos necessários ao sistema público de saúde, por garantir o descanso e as condições de trabalho de quem sustenta o sistema cotidianamente, pôr à disposição de toda a população os recursos primordiais através da abertura dos hospitais privados, garantir a entrega de medicamentos e de insumos de prevenção gratuitos para toda a população, as licenças remuneradas para todas e todos os trabalhadores, sem afetar o salário, e, por fim, proibir as demissões durante o tempo que se mantenha a situação de emergência.
“Primeiro nossas vidas” tem que se converter num grande lema em todo o planeta para impor essa saída.