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Independência de classe: condição do triunfo sobre a extrema-direita

Seiji Seron

Independência de classe: condição do triunfo sobre a extrema-direita

Seiji Seron

As eleições brasileiras de 2020 estão ocorrendo depois de importantes revezes da “Internacional direitista”: a acachapante derrota eleitoral dos golpistas, na Bolívia; o rechaço dos trabalhadores e do povo chileno à Constituição pinochetista, em um plebiscito imposto à Piñera pela força das ruas; e, finalmente, a derrota de Trump nas eleições presidenciais estadunidenses. Se estes recentes acontecimentos enfraquecem o bolsonarismo, este, evidentemente, não está derrotado e, por causa da pandemia, o ódio e o desejo de enfrentar essa extrema-direita têm se concentrado na via eleitoral, apesar de o coronavírus não ter sido capaz de matar a luta de classes, que não espera a vacina para, por exemplo, rechaçar o racismo e a repressão estatal e privada.

Mas, para triunfarmos contra a extrema-direita, a independência de classe é condição sine qua non, inclusive, no terreno das eleições. Para os marxistas revolucionários, a independência de classes é um princípio da estratégia. “Princípio” não significa um imperativo moral, um purismo, uma recusa infantil e estéril a todo e qualquer compromisso. A independência de classe é um ensinamento da história do movimento operário, de quase dois séculos de experiências, mais que suficientes para concluirmos que as alianças, acordos ou frentes políticas entre o proletariado e a burguesia nunca resultam naquilo que os seus “pragmáticos” proponentes alegam, mesmo quando são feitas a pretexto de um objetivo prático e imediato, da derrota de um “mal maior”. Mais cedo ou mais tarde, a conciliação entre burgueses e proletários sempre se volta contra estes últimos e termina fortalecendo os mesmos reacionários que se pretendia combater.

A seguir, tentaremos apresentar uma pequena parte dessa história. Obviamente, o mundo mudou muito desde então, e os séculos não passam em vão. Mas escolhemos estes eventos, e não outros, justamente porque contém as lições que consideramos mais valiosas. Tais lições se reatualizam na exata medida em que se aprofunda a crise capitalista, que foi, neste seu 12º ano de irresolução [1], agravada pela pandemia, e deverá se agravar ainda mais em um futuro pós-pandêmico.

Marx e Engels: organizar a classe em partido político

Os fundadores do socialismo científico, Marx e Engels, viveram na época de desenvolvimento das premissas da revolução socialista, uma época situada entre o “já não mais” das revoluções burguesas e o “ainda não” das revoluções proletárias. O Manifesto do Partido Comunista é publicado às vésperas das Revoluções de 1848. É nesta cena que a classe trabalhadora faz a sua primeira aparição independente no palco da história. No Manifesto, Marx e Engels defendem a organização do proletariado como classe, ou seja, em um partido político [2], tarefa a que se dedicaram a vida toda, e não só teórica, mas também praticamente, construindo organizações revolucionárias, entre as quais, a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) ou, como será conhecida posteriormente, a Primeira Internacional.

Esta organização, é verdade, era composta não só por seguidores de Marx e Engels, mas também pelos lassaleanos, pelos trade-unionistas ingleses, pelos anarquistas e pelas mais diversas vertentes do socialismo utópico, embora não sem uma contínua luta teórico-política de Marx e Engels contra essas expressões de atraso e de influência de outras classes sobre o pensamento socialista. Nessa época, o modo de produção capitalista ainda não tinha completado a sua expansão mundial e, mesmo na Europa, tal expansão era entravada pelos resquícios do feudalismo, contra os quais a própria burguesia ascendente tinha de lutar a fim de “criar um mundo à sua imagem” (Manifesto). O desenvolvimento do capitalismo era, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do proletariado, isto é, do sujeito da sua derrocada; por isso, o Manifesto chamava os trabalhadores a apoiarem a burguesia em sua luta revolucionária contra as velhas classes dominantes sem se esquecerem, contudo, do antagonismo irreconciliável que os opõe à própria burguesia.

As Revoluções de 1848, entretanto, tornaram necessária uma retificação: amedrontada por aquela primeira aparição independente do proletariado, a burguesia preferiu pactuar com as antigas classes dominantes contra os trabalhadores ao invés de lutar consequentemente por seu próprio poder político apoiada por estes, e tornou-se, assim, uma classe reacionária. Esta retificação é feita na Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas, de 1850, na qual Marx e Engels escrevem que a pequena burguesia alemã poderia tentar realizar as tarefas da revolução democrática, às quais a burguesia renunciou, e que, neste caso, o proletariado deveria preservar a sua independência política e organizativa, construir comitês operários e armá-los, de modo a que pudessem disputar com o Estado capitalista o exercício efetivo do poder político em cada localidade, além de, caso houvessem eleições, apresentar sempre candidaturas próprias, independentes não só da burguesia como também da pequena burguesia. Além disso, os operários:

têm de levar ao extremo as propostas dos democratas, que não se comportarão em todo o caso como revolucionários mas como simples reformistas, e transformá-las em ataques diretos contra a propriedade privada; por exemplo, se os pequeno-burgueses propuserem comprar as estradas de ferro e as fábricas, os operários têm de exigir que essas estradas de ferro e fábricas, como propriedade dos reacionários, sejam confiscadas simplesmente e sem indenização pelo Estado. Se os democratas propuserem o imposto proporcional, os operários exigirão o progressivo; se os próprios democratas avançarem a proposta de um imposto progressivo moderado, os operários insistirão num imposto cujas taxas subam tão depressa que o grande capital seja com isso arruinado; se os democratas exigirem a regularização da dívida pública, os operários exigirão a bancarrota do Estado.

De Marx e Engels à época imperialista

A Mensagem... é o texto marxista em que surge, pela primeira vez, a expressão “revolução permanente”, e a semelhança entre a dinâmica revolucionária que aquela descreve e os acontecimentos da Revolução Russa é assombrosa. O primeiro triunfo revolucionário do proletariado ocorre, 67 anos mais tarde, não onde o capitalismo era mais desenvolvido, mas em um país economicamente atrasado, cuja população era majoritariamente camponesa, a despeito da alta concentração operária em uns poucos centros urbanos. Isto foi possível porque as transformações do capitalismo entre o final do século XIX e o início do XX acarretaram uma mudança de época. Na época de Marx e Engels, o capitalismo ainda era capaz de desenvolver as forças produtivas, o que implicava que os trabalhadores dos países avançados ainda podiam conquistar reformas duradouras e, pouco a pouco, melhorar seu nível de vida [3]. Já em nossa época, esse gradualismo já não é mais possível. Ainda que possam haver períodos de crescimento, o capitalismo tornou-se um regime econômico e social decadente; suas crises são cada vez mais maiores, mais frequentes, e menos superáveis de maneira estritamente “cíclica”, isto é, degradam cada vez mais as condições de vida das amplas massas. É esta a que Lênin se refere como a época imperialista do capitalismo.

A época presente é revolucionária, não porque a revolução possa ser feita a qualquer hora e em qualquer lugar, e sim porque mudanças súbitas da situação política são a sua característica primordial, de modo que a atuação em greves e lutas específicas, nos movimentos sociais e em organizações de massa, como sindicatos, etc., e até nas eleições burguesas, precisa ser encarada como uma tarefa preparatória estreitamente vinculada aos objetivos revolucionários e, portanto, como combates pela independência de classe, contra a influência da burguesia entre os trabalhadores. Na Rússia do começo do século XX, a independência de classe foi necessária, antes de mais nada, para a derrubada do reacionário regime dos tsares. Estabelecer, no lugar deste regime, uma república democrática era um objetivo compartilhado por todos os marxistas russos daquele tempo, ainda que divergissem em relação ao papel histórico desta.

Na contramão da experiência de 1848, os mencheviques supunham que a derrocada revolucionária do tsarismo teria de ser encabeçada pela burguesia liberal. Mas bastou que, durante a Revolução de 1905, o tsar anunciasse a criação de um “parlamento” que ele podia dissolver quando bem entendesse para que essa burguesia liberal renunciasse às “suas” tarefas revolucionárias. A essa orientação estratégica dos mencheviques, Lênin contrapôs prontamente a aliança dos operários e camponeses, que teria de conquistar a república democrática contra a burguesia liberal-“democrática”, atada por mil e um laços ao à nobreza latifundiária e ao capital estrangeiro, de que dependia a industrialização do país. Trótski, por sua vez, foi ainda mais longe: por causa dessa comunhão de interesses entre o capital e as antigas classes dominantes, os operários seriam compelidos a, tão logo derrubassem o tsarismo e assumissem o poder de Estado junto aos camponeses, tomar medidas de caráter socialista a fim de defender da reação feudal a própria revolução democrático-burguesa.

O partido de Lênin (e Trótski)

Este é o cerne da primeira formulação da Teoria da Revolução Permanente (TRP) de Trótski, que a experiência posterior demonstrou ser generalizável a todos os países atrasados, entre os quais, o nosso [4]. Não só a conquista de liberdades e direitos democráticos formais mas, sobretudo, tarefas como a reforma agrária, a nacionalização das riquezas nacionais (petróleo, etc.) e a superação da dependência e da sujeição econômica e política ao capital estrangeiro, só podem ser realizadas pela classe trabalhadora, mediante uma política de independência de classe, que alce o proletariado à cabeça da nação e, assim, oponha as massas populares ao conjunto das classes dominantes, incluindo a burguesia local. O que aquela primeira formulação da TRP não continha, contudo, eram as implicações organizativas dessa orientação estratégica. A fim de batalhar para que o proletariado possa contrapor-se à burguesia como classe dirigente da nação, é preciso construir um partido capaz de lutar pela independência política e organizativa do movimento operário, ou seja, contra as burocracias sindicais, que são uma verdadeira “polícia política” da burguesia dentro dessas organizações operárias.

Foi Lênin quem primeiro concebeu um partido deste tipo, um partido de combate, que não é capaz de organizar, em seu interior, a totalidade da classe trabalhadora, mas cujos membros são trabalhadores politicamente ativos, militantes que não apenas lutem aguerridamente contra a exploração e o despotismo patronal em seus respectivos locais de trabalho como também saibam se tornar “tribunos do povo” e, fazendo de todo e qualquer episódio de opressão e de injustiça uma oportunidade de explicar aos demais ao seu redor porquê somente a revolução proletária pode pôr fim a esses sofrimentos, elevar a consciência política de toda a classe trabalhadora. Lênin, porém, só pode construir tal partido através de infindáveis lutas políticas, primeiro, contra os economicistas, que se abstinham do combate contra a demagogia da oposição liberal ao tsarismo alegando que a defesa das reivindicações relacionadas a salários e condições de trabalho basta para aumentar a consciência política dos operários; depois, contra os mencheviques, que se opunham a que as portas do partido fossem abertas somente aos membros ativos.

A princípio, Trótski divergia da concepção leninista de partido, mas, em 1917, reconhece que uma organização deste tipo seria indispensável para o triunfo da Revolução e, logo, adere ao partido que Lênin tinha construído a duras penas ao longo dos 14 anos precedentes, o Partido Bolchevique. E Lênin, ao retornar a Rússia, reorienta estrategicamente o Partido, na prática, aderindo a concepção permanentista de Trótski. No momento decisivo, foi a defesa da independência de classe que uniu os dois maiores dirigentes da Revolução Russa e possibilitou que a classe trabalhadora fosse vitoriosa naquela ocasião, vitória esta que permitiu a fundação da Terceira Internacional, ou Internacional Comunista (IC), visando organizar os grupos revolucionários rompidos da Segunda Internacional, cujas partidos, ao longo dos anos precedentes, atrelaram-se aos seus respectivos Estados nacionais cada vez mais até que, finalmente, traíram o princípio do internacionalismo proletário, defendendo cada um a sua própria burguesia e condenando os trabalhadores do mundo à carnificina da Primeira Guerra Mundial.

Frente única ou frente popular?

Os primeiros quatro Congressos da IC foram uma grande escola de estratégia e tática revolucionárias. Uma de suas mais valiosas lições é a tática da Frente Única Operária. Esta visa mobilizar toda a classe trabalhadora em torno de um objetivo prático, por exemplo, contra uma medida de austeridade ou ajuste fiscal, ou de flexibilização dos direitos trabalhistas, ou ainda contra um golpe de Estado, ou seja, não é uma frente programática ou eleitoral, e sim no terreno da luta de classes. A condição de conformação da Frente Única é que haja liberdade de crítica entre as organizações que a integram. “Nenhuma bandeira, nenhum cartaz, nenhuma publicação em comum! Marchar separados, golpear juntos! Pôr-se de acordo única e exclusivamente em relação a quem e quando golpear” era como Trótski expunha, simplificadamente, a Frente Única. Através desta, os revolucionários poderiam não só unificar os trabalhadores contra uma ofensiva do capital como também debilitar as burocracias sindicais e os partidos reformistas ao demonstrar, através da experiência prática dos próprios operários em luta, seja que os revolucionários lutam de maneira mais consequente contra os ataques do capital, caso se estabeleça a frente única, seja que são quem mais decididamente atua em prol da unidade das fileiras operárias, caso as direções reformistas e burocráticas neguem o chamado à Frente Única.

Esta tática é, portanto, a antítese das políticas de Frente Popular, isto é, as coligações entre organizações do proletariado e da burguesia, através das quais esta ata as mãos daquela classe quando um ascenso revolucionário ameaça a propriedade privada. A Frente Popular que governou a república espanhola durante a Guerra Civil é o exemplo paradigmático disso. Tal Frente foi formada a pretexto da luta contra o fascismo, mas o que conseguiu foi facilitar a vitória de Franco ao reprimir o processo revolucionário que transcorria desde o início da década de 1930. A disposição de combate das tropas franquistas, cuja composição também era predominantemente operária, era fortemente debilitada pelas expropriações e coletivizações que os operários e camponeses realizavam do lado republicano, às quais as organizações de esquerda que compunham ou apoiavam o governo frente-populista frequentemente se opunham. A unidade necessária para derrotarmos a extrema-direita é a da classe trabalhadora em luta. A unidade entre organizações operárias e burguesas, porém, só se estabelece se a burguesia puder, deste modo, conter a luta de classes. A renúncia à independência de classe não fortalece, e sim impede a derrota da extrema-direita.[5]

Já que é preciso concluir...

Quando estas linhas forem publicadas, o segundo turno das eleições estará ocorrendo em 57 municípios brasileiros, incluindo São Paulo, onde Guilherme Boulos disputa a prefeitura com o atual prefeito e candidato a reeleição, o neoliberal Bruno Covas, do PSDB, partido que governa a cidade e o estado há anos, sucateando e precarizando a educação, a saúde e o transporte, atacando o funcionalismo público, privatizando e terceirizando, e usando despudoradamente da repressão estatal contra os trabalhadores, o povo pobre e a juventude, sobretudo, negra. Por isso, compartilhamos de todo o rechaço e o desejo de derrotar Covas e Dória, além de Bolsonaro, o “centrão” e todo o regime do golpe institucional.

Mas, seja quem for o vencedor, será preciso lutar contra a lei de responsabilidade fiscal e todos os demais mecanismos que atrelam o orçamento ao pagamento da dívida pública, e ao enriquecimento de seus credores, a fim de que a crise capitalista seja paga pelos próprios capitalistas, e não por nós, a maioria da população. O apoio de “empresários e investidores” e economistas como Monica de Bolle, os compromissos com os barões do comércio de São Paulo, o anúncio de que participarão de seu governo, caso eleito, partidos como PSB, PDT e Rede, que votaram a favor do golpe institucional e das reformas da previdência federal e municipal (Sampaprev), visam justamente que isso não aconteça e que fique inerte a força da classe trabalhadora, a única que é realmente capaz de “virar o jogo”.

Pouco a pouco, o PSOL reproduz a conciliação petista, que não pôde transformar estruturalmente o país e que, tendo pactuado com as figuras mais reacionárias da política brasileira em prol da “governabilidade”, fortaleceu a mesma direita que foi responsável pelo golpe institucional e que rapidamente desfez as poucas concessões e melhorias que, aliás, só foram possíveis porque as presidências petistas puderam se aproveitar de um período excepcional de crescimento da economia. A possibilidade de que, futuramente, essa tragédia se repita é mais uma prova de que a defesa da independência de classe é, hoje, tão necessária quanto há dois séculos atrás, assim como o é a construção de um partido revolucionário para tanto.

Notas
1 Desde a quebra do banco de investimentos estadunidense Lehman Brothers, em setembro de 2008.
2 “Essa organização dos proletários em classe, e com isso em partido político, é a todo momento rompida pela concorrência entre os próprios operários. Mas ela ressurge sempre de novo, mais forte, mais sólida, mais poderosa.” (Manifesto do Partido Comunista)
3 Diga-se de passagem que o desenvolvimento econômico daqueles países foi conseguido, em considerável medida, à custa da opressão colonial.
4 Aliás, não apenas aos países atrasados. Nesta formulação posterior, a TRP é uma teoria geral “sobre o caráter, o nexo interno e os métodos da revolução internacional em geral.” Cf. o cap. 7 de Albamonte, Emilio; Maiello, Matías. Estratégia socialista e arte militar (São Paulo: Edições Iskra, 2020).
5 A luta de Trótski contra o stalinismo também é parte importante da história do princípio da independência de classe.


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Seiji Seron

Bacharel em Ciências Econômicas (PUC-SP), mestrando em Desenvolvimento Econômico (Unicamp)
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