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Homem de letras, homem de ação: Trótski sobrevive aos assassinos da memória

Afonso Machado

Ilustração: Isadora de Lima Romera | @garatujas.isa

Homem de letras, homem de ação: Trótski sobrevive aos assassinos da memória

Afonso Machado

México, agosto de 1940. Leon Trótski foi brutalmente assassinado por um agente stalinista. Este crime, no entanto, não representa um capítulo final: a luta revolucionária sempre abre novos parágrafos na história.

Quando se comete um assassinato político, se procura não apenas cessar a respiração, interromper a circulação do sangue e parar o coração de alguém. No caso de Trótski em particular, a eliminação física veio acompanhada da tentativa de cortar os pulsos da lembrança revolucionária, sepultar os feitos históricos de um líder, cremar os escritos de um autor que saiu para fora de si e fez do verbo carne ou corpo que narra a luta de classes.

O leitor não pode ser ingênuo e supor que aquilo que denomina-se atualmente “fake News” aplica-se apenas a eventos e personagens recentes da história. O stalinismo e o fascismo já mobilizavam a maquinaria militar, policial e publicitária para adulterar fatos e tentar arrasar moralmente e fisicamente as lideranças revolucionárias da classe operária. Mas os assassinos da memória falharam: Trótski vive. O fato do pensamento político de Trótski não fazer concessões à burguesia e a evidência do seu internacionalismo não ser ficção literária, mas a confirmação objetiva do movimento heterogêneo da história, levam hoje os representantes da ordem burguesa e os empregadinhos do capital a tentarem a assassinar Trótski todos os dias.

Lev Davidovich Bronstein, judeu advindo do meio rural ucraniano e que ficaria mundialmente conhecido como Trótski, combateu pela bandeira do socialismo revolucionário até o fim. Diferentemente de muitos marxistas de hoje em dia, o revolucionário russo foi feito de um outro barro. Desde muito jovem foi implacavelmente perseguido e teve uma vida sem o apoio das almofadas. Trótski formou-se intelectualmente no interior de presídios e nas penúrias dos exílios, sempre lendo, estudando, escrevendo, agindo. Apesar de todos os esforços para passar uma borracha na imagem de Trótski, suas palavras escritas e faladas retumbam atualmente no fundo daqueles que sabem ouvir a necessidade histórica da revolução proletária. Assim o foi nos tempos da Revolução de Outubro de 1917 e durante os duros anos da Guerra Civil na Rússia (1918-21), quando operários, soldados e marinheiros encontravam nas palavras do Pena, apelido que Trótski recebeu dos seus camaradas, grandiosas expressões literárias das exigências da história. O stalinismo tentou inutilmente arrancar da memória do movimento operário o teórico da Revolução permanente, o Presidente do Soviete de Petrogrado, o Chefe do Comitê Militar Revolucionário, o General e organizador do Exército Vermelho, o opositor que se tornou uma pedra no sapato da burocracia soviética.

Trótski ainda está por aí e pode-se dizer que para os guardiões do capitalismo ele é uma figura profundamente indesejada, talvez até mais do que no século passado.
Na dialética entre a caneta e o fuzil, Trótski vislumbrou as guerras revolucionárias internacionais como o início da luta pela emancipação humana. Ele acreditava que a implementação dos governos operários envolve o pressuposto histórico capaz de gerar condições políticas e materiais para que ocorra a elevação cultural do proletariado. Uma nova humanidade apoiada em sólidos laços de solidariedade irá nascer deste processo: os trabalhadores poderão apropriar-se da cultura historicamente acumulada e, como Trótski sonhou, possibilitar que o homem comum atinja a estatura intelectual de um filósofo como Aristóteles ou de um poeta como Goethe. Para um liberal de plantão, isso é desclassificado como “utopia”. Mas qual é o grilo? Por que deveríamos aceitar que o humano continue a ser cretinizado, continue a trabalhar cada vez mais para viver cada vez menos? Por que acreditar que o futuro de um trabalhador esteja na aceitação da exploração? O que faz supor que o proletário seja o eterno alvo dos religiosos espertalhões? A vida cultural dos trabalhadores será a eterna repetição dos produtos dos meios de comunicação de massa, que não raramente convertem a mente em mingau e o coração em deserto? Não, o humano pode ser muito mais, pode ser o senhor do seu corpo, dos seus meios materiais de existência, o autor da cultura, o autor da sua vida.

A estatura histórica de Trótski não cabe num museu. Pode-se embalsamar um corpo, mas se um pensamento se encontra com as necessidades históricas de uma classe explorada, ele orienta de maneira pulsante a militância política revolucionária. Não existe nenhum espanto quando os enfadonhos intelectuais conservadores afirmam que o socialismo “não deu certo” e que Trótski, com seu trágico destino, seria uma demonstração disso. Não percamos tempo com essa gente que gagueja e fica estrábica quando demonstramos com fatos históricos que o capitalismo nunca deu certo, que a miséria e a exploração são intrínsecas a ele. É para aquele jovem trabalhador que se dirige para um sebo e pergunta ao livreiro “o que você tem do Trótski aí?”, que devemos dirigir nossas atenções. Se os Partidos Comunistas orientados pelo stalinismo tapearam no século passado muitos trabalhadores produzindo mentiras e difamando Trótski e seus seguidores, hoje o desafio talvez esteja em apresentar aos trabalhadores o personagem histórico: diante da amnesia política de inúmeros trabalhadores, Trótski pode contribuir efetivamente com a construção de uma memória histórica revolucionária.

Algum camarada sem conhecimento de causa poderia se confundir: estamos falando de um escritor ou de um revolucionário? O trotskista é um fã de Trótski ou alguém que orienta suas práticas políticas de acordo com o legado marxista do autor? Trótski pertenceu a uma geração de intelectuais marxistas em que escrever e agir politicamente não eram coisas dissociadas. Esses intelectuais, que possuem hoje herdeiros políticos legítimos, embora marginalizados (como poderia ser diferente?), pretendiam fazer com que seus escritos influenciassem a realidade política (e, não por acaso, estes mergulharam no jornalismo militante). Mesmo para alguém que não seja marxista, é perfeitamente possível sentir admiração por Trótski, que além da sua referida atuação política, destacou-se como jornalista, teórico marxista, orador, crítico literário e tornou-se o mais emblemático historiador da Revolução russa. A admiração é até comum, mas existe algo a mais.

Trótski não é um cavaleiro encantado que arranca suspiros dos militantes revolucionários. Ele é um líder e autor cuja concepção materialista da história nos leva a compreender que são as massas quem movem o enredo: Trótski, assim como Marx, nos ensina que o proletariado, este personagem coletivo, é o novo e o último herói revolucionário da história das civilizações. Tal como ele expõe na sua trilogia A História da Revolução Russa (1931-1933), a trajetória de uma revolução consiste na irrupção violenta das massas que, derrubando as barreiras que até então as separavam da vida política, assumem o protagonismo da história. Trótski não dá muita bola para o seu destino pessoal: para ele o importante é ter perspectiva histórica, é compreender os rumos da revolução. Enquanto revolucionário profissional e escritor marxista, o objetivo de Trótski foi sempre o de procurar compreender as transformações psicológicas das massas em épocas revolucionárias. É diante de acontecimentos históricos excepcionais que o proletariado aumenta a sua musculatura política e dirige o espetáculo da revolução.

Trótski, ator e autor da história. Sua figura e seu pensamento imprimem um relâmpago capaz de iluminar os atores políticos que não entraram em decomposição. Os assassinos da memória quebraram a cara e os seus senhores capitalistas podem algum dia darem com os burros na água. Cabe ao proletariado orientado por um programa político revolucionário, arremessar a burguesia para o seu devido lugar: a lata de lixo da história.


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