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MUNDIAL DA RÚSSIA 2018 | História do futebol na Rússia: da era soviética ao grande negócio para a nova burguesia

Uma breve trajetória pela história do futebol na nação sede da atual Copa do Mundo, desde os princípios nos anos da Revolução de 1917 passando pelos preconceitos e fraudes da era stalinista até o futebol comandado pelos magnatas milionários da atualidade.

quinta-feira 14 de junho de 2018 | Edição do dia

Um país que durante mais de 70 anos teve uma liga amadora sediará a partir desta quinta o evento esportivo de maior repercussão a nível mundial. Na Rússia, o futebol profissional já não se resume a “uma expressão das sociedades burguesas”, como considerava o regime que governou o país até 1991. Segundo cifras oficiais, o governo de Vladimir Pútin investiu 14 bilhões de dólares na organização da Copa do Mundo. O futebol russo está hoje nas mãos de magnatas do petróleo, do aço e do gás, que gastam milhões de dólares em jogadores estrangeiros. Um presente muito distinto de sua tradição, em que não se pagavam salários aos jogadores de futebol, em que não se cobrava entrada para ir ao estádio, nem se vendiam os direitos de televisão.

O futebol chegou a terras russas ao fim do século XIX através de comerciantes ingleses. Inicialmente, o jogo se restringiu às classes altas, ainda que de imediato os jovens se interessaram pela prática do esporte. O desenvolvimento da indústria favoreceu o crescimento da população nas cidades e a organização de ligas. Entretanto, em 1936 foi criado o campeonato oficial que reunia as equipes dos diferentes torneios regionais.

Após a Revolução de 1917, o Estado fomentou o desenvolvimento do esporte e favoreceu a formação de clubes, que em sua maioria estavam vinculados aos sindicatos. Assim, nasceu o Lokomotiv, que agrupava aos trabalhadores ferroviários; o Torpedo, que representava os trabalhadores do setor automobilístico; o CSKA, que se relacionava com os membros do exército; o Dínamo, que se vinculou ao Ministério do Interior e os serviços secretos. As fábricas e instituições estatais alimentavam as esquipes.

O Spartak era o único clube que não pertencia a nenhuma organização. Chamado de “O Clube do Povo”, já que representava as classes mais baixas. Esta equipe vencia frenquentemente os times patrocinados pelo Kremlin, como o CSKA e o Dínamo. Os irmãos Starostin, fundadores e jogadores do Spartak, sofreriam perseguições e seriam logo condenados a prisão.

Partida de exibição entre o Spartak e o Dínamo na Praça Vermelha, 1936. Foto: DP.

Para os ideais comunistas do regime burocratizado durante a era stalinista, o futebol era um esporte associado aos ideais burgueses. Não se contratavam jogadores estrangeiros. Os jogadores não podiam receber dinheiro para jogar, ao menos legalmente. A palavra futebol foi substituída por “bolapé”.

Distintos testemunhos mostram que, durante esses anos da União Soviética, o campeonato nacional era um espaço recheado de fraudes, apostas e subornos. Na década de 1970, um árbitro se tornou conhecido por não aceitar subornos. Era diretor de uma empresa de transportes e não necessitava de dinheiro. No livro Futebol como o inimigo, o jornalista Simon Kuper viaja no início da década de 90 por distintos países do Leste Europeu. Kuper comenta uma pesquisa em que foi perguntado a 18 treinadores russos da época se na liga era comum a combinação de resultados. Todos responderam que sim. Quando foram perguntados se seus clubes estavam envolvidos nesses acertos, todos responderam que não.

Nas tribunas, os ideais estatais da burocracia governante também se faziam visíveis. O Estado incentivava a “identidade operária” dos indivíduos, dessa forma as forças de segurança impediam nos estádios de futebol qualquer manifestação alternativa, como a referencia a identidade regional ou religiosa.

Mas o futebol constitui um terreno privilegiado para a afirmação das identidades coletivas e dos antagonismos locais, regionais ou nacionais. Na época soviética, muitas regiões, hoje países independentes como Georgia, Lituânia, Estônia e Armênia, tinham apenas uma equipe na primeira divisão. Quando esses times venciam equipes de Moscou, afloravam os cantos nacionalistas nos estádios.

Na Lituânia, Kuper recolhe testemunhos de distintos torcedores que recordam que ao final de algumas partidas saíam do estádio cantando com tochas e iam ao centro da cidade, onde lhes aguardavam os guardas de segurança. O futebol se apresentava como a única oportunidade de se identificar com uma comunidade e de se expressar com uma certa liberdade. O esporte não parecia ser o ópio do povo, pelo contrário era um espaço em que afloravam diferentes sentimentos. Como bem afirmou o antropólogo francês Christian Bromberger, “cada partida oferta aos espectadores um suporte para a simbolização de alguns dos aspectos de sua identidade”.

Foto: O Torpedo de Moscou ao fim dos anos 60.

O férreo controle que tentaram impor os distintos governos do Leste Europeu nem sempre era vivido dessa forma pelos fanáticos. “Quando nos reuníamos, o regime comunista nos metia, de imediato, 24 horas na prisão. E a equipe que montamos nos estaleiros de Gdansk era uma via para ser livre e intercambiar impressões políticas. Para o regime era muito difícil nos controlar nos eventos esportivos. Supostamente o esporte está fora da política, mas, na realidade, estão muito relacionados” recordou Lech Walesa – presidente da Polônia entre 1990 e 1995 – numa entrevista ao diário espanhol El País.

O fim da União Soviética em 1991 marcou uma nova era também para o mundo do futebol. Os empresários que usurparam muitas das companhias estatais direcionaram suas ganâncias ao mundo do futebol. O Spartak foi adquirido por Leonid Feldun, proprietário de Lukoil, a maior petroleira privada do país. Muitos apontam a Roman Abramovich como o verdadeiro dono do CSKA. Grazpom, a maior empresa de gás, é dona do Zenit de São Petersburgo.

Entretanto, nem todos são milionários. Em 2011, uma pesquisa da União Mundial dos Jogadores (FIPro) revelou que entre os 2.258 jogadores profissionais de futebol de 14 países do Leste Europeu, era comum a falta de cumprimento dos contratos, a falta do pagamento de salários, a violência, a intimidação e o racismo em relação aos jogadores. Na pesquisa 41,4 por cento dos jogadores afirmaram que seus clubes não pagavam os salários a tempo e ao redor de 5% estiveram sem receber seus salários durante mais de seis meses. Uma porcentagem de 11,9 por cento dos jogadores afirmaram que lhes foi pedido que considerem arranjar resultados de partidas, enquanto que 23,6 por cento conheciam situações de combinação de jogos na sua liga.

A FIFA pouco parece se importar com isso, e espera na Russia arrecadar lucros ao redor de mais de 6,4 bilhões de dólares, um montante recorde para as Copas do Mundo. A entidade multinacional que conduz o suíço Gianni Infantino hoje parece dar a razão a velhos preconceitos da URSS dos anos de Stálin a respeito do futebol.




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