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CRÔNICA | Há exatamente um ano o capital tentava me puxar a vida pelo braço

Leo AndradeCampinas

terça-feira 24 de março de 2015 | 21:00

Há exatamente um ano o capital tentava me puxar a vida pelo braço. Com a fibra e a solidariedade da classe, quebramos os dentes de aço do patrão. É como se pequenas situações limites individuais e particulares concentrassem toda uma história de séculos da luta irremediável de classes. E pequenas vitórias individuais podem servir de lição para a construção de uma sociedade sem exploração e opressão, com a vitória de toda a classe operária.

Meia noite e quinze, de domingo para segunda, mal se iniciava o vinte e quatro de março de dois mil e quatorze. Biologicamente era horário de descanso do corpo. Materialmente, era horário de janta do meu companheiro de trabalho e horário de batalhar sozinho com aquela estrondosa máquina que lutava diariamente para me impor o domínio e a exploração. O capital bagunçou a biologia para aumentar o seu lucro; personificou em trambolho de aço o ritmo do nosso corpo e impôs a nova métrica da vida pelo compasso da produção e do cartão de ponto – “Pobre te vê a ti, tu a mi empenhado; Rica te vi eu já, tu a mi abundante; A ti trocou-te a máquina mercante; que em tua larga barra tem entrado” (trecho de A cidade da Bahia de Gregório de Matos, musicado por Caetano Veloso em Triste Bahia), batia o relógio e pulsava o sangue. O patrão ignorou, entretanto, que entre o operário e a máquina se concentra também toda a luta de classes.

Descompassado com o ritmo da máquina - a caixa registradora do patrão - tentou-me punir e arrancar a vida, o sangue como vitória final do lucro. Preso na gigante de ferro, foram vinte minutos de luta de classes. De um lado o patrão não apenas com a máquina, mas com toda a sociedade funcionando a seu favor, particularizado naquele galpão vazio. De outro, minha carne, sem armas nas mãos, mas carregava toda a fibra da classe, a solidariedade dos companheiros de trabalho e de toda a classe que me empurravam para não me entregar aos dentes de aço.

Ainda preso ao ventre da máquina consegui ligar para os companheiros que descansavam para a renovação da jornada de trabalho que se iniciaria na manhã seguinte. Em particular, havia um grandioso camarada que dividia o teto da fábrica comigo, uma injeção de ânimo compartilhada pela libertação humana. Chegando ao hospital, me esperavam já aqueles da fibra de minha fibra.

Uma semana na cama do hospital. Entre uma cirurgia e outra, uma semana de solidariedade de classe organizada e concentrada pelos corredores. Os que entravam pela porta do quarto, traziam nos olhos a dor compartilhada, mas, sobretudo, o ódio de classe compartilhado. Em fila na frente do hospital, colocavam o patrão na parede, deixavam histéricos os gerentes desacostumados a perder. Minha mãe uma espécie de “mãe coragem”, como escrevia Brecht, enfrentava o patrão com a fúria nos olhos. Vencemos e o punho segue estendido.

Mas como dizia o grande revolucionário Leon Trotski, “toda catástrofe individual ou coletiva é sempre uma pedra de toque, pois desnuda as verdadeiras relações pessoais e coletivas” (O grande sonho). A crônica dessa situação limite individual é na verdade o esforço de colocar a olhos nus a luta de classes e a necessidade da vitória da classe operária.

Infelizmente não estou só. Somos no Brasil 750 mil trabalhadores golpeados por acidentes de trabalho a cada ano (apenas os que são registrados, deixando o Brasil em quarto lugar no ranking de acidentes de trabalho no mundo). Segundo a Organização Internacional do Trabalho (ligada à ONU) são 2,3 milhões de trabalhadores mortos por acidente de trabalho ou por doenças ligadas ao trabalho a cada ano em todo o mundo (860 mil sofrem algum ferimento no trabalho todos os dias em todo o mundo), ou seja, são 4,38 mortos por minuto pelas mãos diretas do capital – são números muito superiores aos de uma guerra. As instituições de classe da burguesia calculam esses números para saberem os prejuízos “causados” pelas indenizações (e de fato fazem esse cálculo: os gastos diretos e indiretos com acidentes de trabalho chegam a 2,8 trilhões de dólares por ano no mundo).

Nós operários calculamos os acidentes para construir a vingança organizada: em nome de cada mutilado, de cada ferido, de cada morto e de cada enlouquecido pelo capital construiremos nossa vitória de classe com a tomada do poder das mãos da burguesia, retirando-lhe os meios de produção e colocando-os a serviço da vida, elevando os trabalhadores ao poder político como forma de elevar a massa da população às condições necessárias para uma vida sem acidentes, mutilações, mortes, uma vida plena de sentido.

Um ano depois, a fibrose de minhas cicatrizes são na verdade o acréscimo da fibra da classe operária, estar posto à serviço da elevação da consciência e da organização de classe diante de sua tarefa histórica da libertação humana de todas suas amarras.

Foto: Agência EFE




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