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A seção “Esquerda em Debate” está aberta aos ativistas críticos à chapa de Lula e Alckmin, à política de conciliação de classes do PT e à diluição do PSOL com Alckmin e Marina Silva. Trata-se de uma tribuna aberta a militantes do PSOL e ativistas e intelectuais independentes. Nela, publicamos posições do MRT, mas também de setores da esquerda em um campo mais amplo com o intuito de cultivar o debate franco e aberto na esquerda brasileiro. As posições contidas no texto são de responsabilidade dos firmantes e não refletem as posições do MRT. Envie também seu texto para essa seção aberta.

terça-feira 19 de abril de 2022 | Edição do dia

Imagem: Contrapoder

A crise do sistema de representação política, que se manifestou de maneira contundente nas Jornadas de Junho de 2013, expôs de maneira irrefutável o estado terminal da Nova República. Por ausência de bandeira e partido para dar um norte consequente às manifestações, o que começou pela esquerda terminou pela direita. A operação Lava Jato, o golpe parlamentar de 2016 e a ascensão de Bolsonaro foram momentos decisivos desse vendaval reacionário. A contraofensiva das classes dominantes aos pleitos da juventude por mais democracia e políticas públicas reforçou a autocracia, levou à criminalização das lutas sociais, à restrição do espaço político-institucional dos partidos de esquerda e ao aumento exponencial da repressão política e policial. À reforma trabalhista, que afetou a capacidade de representação e a sustentabilidade financeira dos sindicatos, sucedeu-se a restrição da representação política dos trabalhadores pela reforma eleitoral de 2017. Conduzida por Eduardo Cunha, a mudança estabeleceu draconianas cláusulas de barreira que dificultam e mesmo impedem o acesso ao fundo partidário e à propaganda gratuita.

O sentido das reformas é inequívoco: reforçar o poder das oligarquias partidárias – exatamente o oposto do que seria necessário para recuperar a credibilidade dos partidos políticos junto aos brasileiros. Para contornar as crescentes dificuldades eleitorais e a perda de capacidade representativa dos principais partidos da ordem, a reforma eleitoral procurou garantir o mínimo de “governabilidade” e sustentação partidária para os governos espúrios que assumiram o poder central. A intenção é matar dois coelhos de uma cajadada só: limitar o raio de liberdade da pequena fisiologia, colocando um mínimo de ordem no balcão de negócios que rege o funcionamento do poder legislativo; e restringir o espaço político-institucional da esquerda, coagindo-a a se adaptar às novas exigências da ordem.

No entanto, a profundidade da crise política brasileira é de tal monta que a reforma eleitoral de Eduardo Cunha se mostrou totalmente incapaz de recompor minimamente o sistema de representação política. Não logrou impedir fragmentação partidária ainda maior nem barrar o avanço avassalador da corrupção e do fisiologismo. Partidos “de aluguel”, particularmente de extrema-direita, adquiriram maior força e passaram ao proscênio do jogo político, barganhando apoio em troca de verbas, cargos e negócios escusos e verbalizando os interesses particularistas de segmentos não hegemônicos do bloco no poder. Sem bases reais para se tornar realidade, a lei da cláusula de barreira não pegou. Se a cláusula de barreira estivesse vigente nas últimas eleições municipais, parte considerável dos partidos de direita teria severas dificuldades para atingir o limite mínimo de votos exigidos pela legislação. Dos 33 partidos registrados nas eleições de 2020, apenas 17 superariam a cláusula de barreira, dos quais 6 por pequena margem. Dos 16 restantes, 9 são partidos de centro-direita ou extrema-direita. A saída encontrada por alguns partidos para evitar a degola foi a fusão com outras agremiações, como demonstram as fusões recentes entre o PC do B com o PPL, o Patriota com o PRP, o Podemos com o PHS, e o DEM com o PSL (União Brasil).

Para acomodar a crise aberta pela perspectiva de degola generalizada de pequenos partidos, o Congresso Nacional tirou da cartola a bizarra figura da “federação partidária” – um agregado político híbrido, gerado em conchavo eleitoral de ocasião. O novo dispositivo que regula a vida partidária brasileira prevê que os partidos federados sigam como um bloco no processo eleitoral e nos parlamentos, contabilizando os votos conjuntamente e funcionando como uma bancada única nas negociações e votações. Em total convergência com o espírito da reforma eleitoral de Eduardo Cunha, a solução para a sobrevivência de partidos ameaçados pela cláusula de barreira reforça o mandonismo decisório dos grandes partidos e impõe alinhamento programático forçado, favorecendo o fisiologismo e limitando ainda mais a crítica e o debate democrático.

Assim, a nova jabuticaba da legislação eleitoral engessa ainda mais o sistema partidário, dificultando a emergência de agremiações que abram novos horizontes para a solução dos problemas nacionais. Trata-se, na verdade, de uma tentativa institucional heroica de recomposição “pelo alto” do sistema de representação política para “salvar” os partidos de direita e forçar os partidos de esquerda a composições ao centro. Para as organizações políticas comprometidas com a defesa dos interesses dos trabalhadores, a federação partidária representa uma ameaça insuperável ao princípio da independência de classe, sem o que é impossível conceber a emergência dos trabalhadores como sujeitos políticos.

Por seu caráter particularmente aberrante, o caso da federação entre o PSOL e a Rede é emblemático. Sem debate público de caráter programático, sem transparência e sem qualquer tipo de consulta às bases, a direção do PSOL surpreendeu seus filiados com a decisão de uma federação partidária com o partido de Marina Silva. Mais do que uma manobra tática circunstancial, trata-se, na verdade, de uma irreversível refundação partidária que compromete irremediavelmente qualquer possibilidade de independência de classe. Pelas parcas declarações e justificativas dadas pelos burocratas, o objetivo estratégico seria criar as condições para a superação da cláusula de barreira de 2026!

A nova agremiação é um casamento de tatu com cobra. A incongruência programática entre as duas agremiações fica patente no abismo que separa o ecocapitalismo de Marina Silva do ecossocialismo do PSOL. O capitalismo é um sistema insaciável de acumulação de lucro e vive da exploração do trabalho e da natureza. O golpe nos militantes que se dedicaram a construir uma alternativa socialista que superasse a adaptação do PT à ordem burguesa não poderia ser maior. Ao se mancomunar com a Rede, que ostenta relações carnais com o Banco Itaú, o PSOL renuncia inapelavelmente à possibilidade de se afirmar como um instrumento da auto-organização dos trabalhadores, a premissa fundamental da luta pelo socialismo e pela liberdade que o originou.

A crise de credibilidade das instituições representativas não será resolvida com conchavos das oligarquias partidárias que controlam com mão de ferro o sistema político brasileiro. Sem uma mudança substancial na correlação de forças, a ofensiva avassaladora contra os trabalhadores e o meio ambiente não arrefecerá. O mandonismo elitista que transforma o circuito político num monopólio da plutocracia só serve aos donos do poder. A única esperança de uma solução democrática para a total desmoralização das instituições repousa numa reforma partidária alicerçada numa intervenção popular que questione pela raiz as bases do padrão de acumulação e dominação que a reforma política de Eduardo Cunha procura eternizar.

Contrapoder, 11 de abril de 2022

Publicado originalmente aqui.




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