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Extrema-direita, militarização e reformadores da educação: os elos da tragédia escolar

Danilo Paris

Extrema-direita, militarização e reformadores da educação: os elos da tragédia escolar

Danilo Paris

Este artigo parte, antes de mais nada, de prestar sua homenagem à professora Elisabeth Tenreiro que perdeu sua vida trabalhando aos 71 anos, e às professoras Rita de Cássia Reis, Ana Célia Rosa e Jane que evitaram uma tragédia maior. Vocês são parte daquelas grandes personagens da história da educação, muitas vezes esquecidas pela história oficial dos dominadores. Apontaremos em um ensaio explicativo as condições que levam a tragédias escolares como essa. Publicamos este artigo como parte do Dossiê especial 59 anos do golpe de 1964 pelo semanário teórico-político Ideias de Esquerda.

O terrível ocorrido na E.E. Thomazia Montoro, na zona oeste da capital paulista, pautou a opinião pública e reascendeu uma série de debates sobre a educação pública brasileira. Diante de um caso tão bárbaro e brutal, muitas são as interpretações e propostas de resolução que surgem dos mais variados setores da sociedade. No entanto, o problema é profundo e entrecruza diversos âmbitos da vida social.

No espectro da extrema-direita, a resposta, como não poderia deixar de ser, é mais policiamento e militarização das escolas. No contexto da data do golpe cívico-militar no Brasil, esse é um debate fundamental, que atravessa aspectos estruturais da realidade educacional brasileira, em particular, a intervenção de uma corrente político-ideológica que elegeu os professores e a educação como inimigos prioritários.

A suposta solução militarizante é o desfecho de um política que possui muitos elos, muitas vezes ocultos, mas que só podem ser compreendidos em sua conexão. Vamos a eles.

Antes mesmo de Bolsonaro chegar ao poder, a extrema-direita encontrou um nicho para se popularizar através do Escola Sem Partido. Importando a ideia dos reacionários movimentos revisionistas e islamofóbicos dos EUA, a extrema-direita passou a disseminar a ideia que a ameaça aos costumes tradicionais estava nas salas dos professores, em particular da educação pública. Parlamentares, o lobby fundamentalista religioso, ideólogos, youtubers e o próprio Bolsonaro constituíram uma engrenagem inquisitória e policialesca, que perseguiu e atacou diversos professores por todo o país.

Aliciamento para ideias comunistas, abortistas, conversões de gênero, rituais satânicos e até mesmo a fatídica mamadeira de piroca compuseram o arsenal daqueles que buscavam criar uma psicologia social de pânico e terror que ameaçava o ideário cristão da "família brasileira". Na campanha presidencial de 2018 essa foi uma marca indelével, que contou com Bolsonaro agitando a assim chamada "cartilha gay" na sabatina do Jornal Nacional. O livro em questão nem sequer havia sido adquirido pelo Ministério da Educação, mas isso pouco importava para os seus objetivos.

E isso não é sem motivos. Além de usar esse discurso para mobilizar setores conservadores e fundamentalistas, a extrema-direita buscava desmoralizar um setor da classe trabalhadora que sempre protagonizou importantes lutas e que poderia ser uma linha de contenção ao seu avanço.

Essa agitação permanente contra os professores, produziram um caldo social de um parcela da sociedade, que ainda que reduzida, resguarda sentimento de repulsa aos professores.

E isso promoveu graves consequências. Um estudo da Unicamp contabilizou 23 registros de ataques com violência extrema em escolas no Brasil nos últimos 20 anos. O que chama atenção é que 7 deles, ou seja, quase um terço, ocorreram do meio de 2022 para cá. Há um padrão nessas ações, promovida por indivíduos que propagam ideias reacionárias e um conjunto de preconceitos, como racismo, machismo, misoginia, homofobia e etc. Conforme repercutido na imprensa, o estudante de 13 anos da escola na Vila Sônia, utilizava o sobrenome "Taucci", o mesmo do garoto que abriu fogo contra colegas na cidade de Suzano, em sua conta do Twitter.

A conclusão, por óbvio, é que não é possível dissociar o que ocorreu na Vila Sônia em São Paulo, da existência de uma política de extrema-direita, que ainda que tenha perdido força no último período, cultivou uma base social própria. E aqui está um primeiro mecanismo dessa pérfida engenharia política. Os mesmos que incentivaram que os pais e alunos identificassem nos professores uma ameaça, agora correm para dizer que a única salvação para a segurança escolar é ampliar a militarização e o policiamento nas escolas.

Provoca náusea a hipocrisia de figuras como Tarcísio de Freitas, e seu secretário da educação, Renato Feder, impulsionadores de primeira ordem da política que semeou violentamente o ódio contra os professores. Tarcisio, ao passo que cancelou o programa de assistência psicológica nas escolas tão logo assumiu, agora já declarou que pretende contratar policiais da reserva para ficarem permanentemente nas escolas.

Ainda, no contexto da data que marca o golpe cívico-militar de 1964, é importante considerar que as Forças Armadas também são cúmplices dessa situação. Foram sustentadores do governo Bolsonaro, e não por acaso, apresentaram em seu programa [1] para o país a intenção da ampliação da militarização das escolas. Em sua resolução 17, sobre a educação básica, afirma o documento de metas para serem alcançados até 2035: “estudar as vantagens de disseminar o modelo das escolas cívico-militares, no tocante às normas de disciplina, respeito, higiene, civismo e práticas pedagógicas, sem que, necessariamente, os estabelecimentos de ensino, sejam transformados nesse modelo escolar".

Programa esse que encontrou no governo Bolsonaro uma grande oportunidade. Nesse momento foi implementado o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, cujo objetivo era implementar centenas de escolas militares no país. Argumentavam que o desempenho nessas escolas é superior à média das escolas regulares, mas escondem que nelas há quase o triplo de recursos por aluno. Mais do que isso, é importante pensar qual o ensino que é proposto? Um ensino completamente contaminado pelos valores cultuados e difundidos pelos meios militares, que são justamente aqueles que incentivaram que ações como a ocorrida na Vila Sônia ocorressem.

A pretensa maior segurança que haveria em escolar militares cai por terra mesmo analisando os últimos casos desses episódios. Em Barreiras, município da Bahia, um aluno invadiu e assassinou uma estudante, em uma escola na qual a gestão era feita pela Polícia Militar, e a arma utilizada no atentado era de um policial, pai do atirador.

Há algumas experiências internacionais que podem auxiliar na reflexão sobre o caso brasileiro. Pesquisas com informações coletadas e sistematizadas nas escolas dos EUA lançam luz sobre a farsa do argumento que defende a militarização - ou a presença ostensiva de militares na escola - como uma resposta para uma maior segurança da comunidade escolar. Um relatório feito pelo Institute for Policy Studies, intitulado “Reimaginando a segurança escolar”, detalha os efeitos da presença da polícia nas escolas americanas. Segundo o relatório:

“Após o tiroteio em 2018 em Parkland, Flórida, muitos distritos escolares se apressaram em contratar mais policiais armados para suas escolas. Mas uma grande quantidade de pesquisas mostra que a presença desses policiais armados, que podem prender e usar a força contra estudantes, teve um impacto devastador nas populações de estudantes vulneráveis ​​- especialmente estudantes de baixa renda, estudantes negros e pardos, estudantes LGBTQ + e alunos com necessidades especiais.”

No Brasil não é diferente, são inúmeros os casos de denúncia de violências, abusos, assédios, perseguições e até mesmo tortura nas escolas militares. Um desses casos que ganhou repercussão foi de um professor que recusou assinar um livro de ocorrências e por isso sofreu agressões dentro da unidade escolar. “Lá, sofri tortura física e psicológica. Fui empurrado, tive arma apontada para a minha cabeça e fui chamado de ‘professor de merda” é apenas um dos relatos desse professor.

Além disso, o mesmo relatório traz outra importante constatação: o incremento das verbas destinadas para a presença de policiais, em detrimento de outros profissionais como psicólogos e assistentes sociais. Segundo o relatório: “ [...] 1,7 milhão de alunos têm policiais em suas escolas, mas nenhum orientador escolar; 3 milhões têm policiais, mas não têm enfermeiras; 6 milhões têm policiais, mas nenhum psicólogo escolar; e 10 milhões têm policiais, mas não tem nenhum assistente social. [...] O orçamento de “segurança escolar” de US $33,2 milhões alocado para 2021 em Washington, D.C. poderia financiar até 222 psicólogos, 345 orientadores ou 332 assistentes sociais. O orçamento de “segurança escolar” de US $15 milhões aprovado para 2021 em Chicago poderia, em vez disso, financiar até 140 psicólogos, 182 orientadores ou 192 assistentes sociais. O orçamento de “segurança escolar” de US $32,5 milhões alocado para 2021 na Filadélfia poderia financiar até 278 psicólogos, 355 orientadores ou 467 assistentes sociais.”

Aqui também reside um debate fundamental. Assim como nos EUA, a resposta militaresca para o aumento da violência nas escolas públicas busca negar a necessidade da promoção de mudanças estruturais no quadro dos profissionais e nas duas condições de trabalho. Não há psicólogos, assistentes sociais, e mesmo agentes escolares, que cuidam da organização da escola, não são suficientes em inúmeras unidades escolares. É um sistema que não tem como objetivo oferecer atenção a problemas de saúde mental ou comportamental. Além disso, os próprios professores, não são preparados para identificar e atuar em casos desse tipo, e ainda precisam lidar com uma sala lotada que impede qualquer atenção detida às particularidades dos alunos.

Essa constatação revela que existem duas tendências que operam simultaneamente, cuja articulação é determinante para compreensão do que ocorreu na Vila Sônia. A política da extrema-direita é um polo, e o avanço do neoliberalismo na educação é outro. É um processo que não se inicia agora, mas que no Brasil avançou aos saltos nos últimos anos.

A reforma do Ensino Médio foi um passo importante nesse caminho. É um projeto que, em suma, pretende aprofundar um sistema dual na educação brasileira. Às escolas particulares, fica garantido todos os recursos privados para manutenção de um ensino de maior qualidade, ainda que com adaptações curriculares. Para a escola pública, o que resta é um currículo aligeirado e permeado de conteúdo neoliberal, com matérias que incrivelmente chegaram ao absurdo de oferecer a possibilidade de ensinar como se tornar um milionário. Para além do sintoma mais grotesco, é um modelo que valoriza o ideário empreendedor, que na prática serve como justificativa para escamotear que essa juventude estará, na melhor das hipóteses, trabalhando nas plataformas da servidão assalariada, como a Uber e o Ifood.

Acompanhado dessa perspectiva, está a precarização das condições do trabalho pedagógico. As salas estão superlotadas. Em várias delas são 45 alunos, amontoados em salas com péssimas condições estruturais. Ventiladores que não funcionam, janelas quebradas, infiltrações, entre milhares de outros problemas compõem o ambiente supostamente onde deveria ser desenvolvido o processo de ensino aprendizagem.

Os professores com jornadas extenuantes e uma remuneração que está entre as mais baixas do mundo. O que leva a um acúmulo de trabalho para conseguir contornar os baixos salários, o que por consequência, gera uma série de efeitos em cadeia, como adoecimentos (físico e psicológicos), falta de tempo para preparo e formação pedagógica, entre muitos outros.

Nesse quadro, é que se insere o aumento dos casos de violência extrema e deliberada nas escolas. A escola, está cada vez mais ausente de sentido social, de um significado, de um propósito educacional que envolva toda a comunidade escolar. Na realidade, o atual projeto é o oposto. É a encarnação da proposta neoliberal no mundo escolar. Aplica-se um modelo que propaga a maravilha dos indivíduos atomizados, cujo único propósito é sua satisfação pessoal através da competitividade. Aos professores resta o cumprimento de metas, prazos e uma carga da responsabilização caso algo não ocorra conforme o planejado.

Ademais, a escola reflete o contexto histórico-social ao qual ela está inserida. A precarização das condições de vida, que perpassam problemas de moradia, transporte, alimentação, lazer, entre tantos outros. Em especial, destacamos um processo agudo e acentuado de superexploração do trabalho que retira qualquer perspectiva formativa do horizonte escolar, constituindo uma dinâmica que deságua em um processo de reificação e brutalização da vida.

Considerando essa perspectiva, o arco daqueles que arquitetaram esse projeto de educação não se restringe apenas à extrema-direita. Estão com a digital naquela cena trágica e terrível todos os reformadores e fundações privadas que persistentemente atuaram para a implementação dessa agenda. Do Todos pela Educação, até a Fundação Lemann - que estiveram presentes no governo de transição - passando pelos representantes da "Escola de Sobral" como Camilo Santana, todos estão nesse comboio que arrasta a educação para os interesses de grandes grupos econômicos privados, e que portanto mutilam e destroem a escola pública.

Se é verdade que a militarização das escolas encontrou em Bolsonaro seu legítimo representante, também é verdade que ele não foi o único a se entusiasmar com a proposta. Rui Costa, atual Ministro da Casa Civil, é um deles – implementou a militarização de 83 escolas na Bahia quando ainda era governador. Do mesmo modo, não é possível desconsiderar que foi Geraldo Alckmin, o governo que esteve à frente por nada menos que 16 anos do comando de São Paulo, promovendo ataques sistemáticos para que a educação paulista chegasse nessa atual situação.

O que ocorreu na Vila Sônia foi a síntese dessas determinações complexas que não se resumem a um único fator. A militarização é a resposta mais grotesca frente ao ocorrido, e é a conclusão de uma política que foi pensada para esse fim, com a disseminação do ódio contra professores, mulheres, negros e LGBTQIA+. Deve, portanto, ser frontalmente combatida e desmarcada. No entanto, sem considerar que a escalada desses casos é uma expressão da decomposição capitalista, estaremos eximindo poderosos grupos econômicos que são artífices dessa situação atual. Sem uma reversão completa das reformas que atacaram a escola pública, como a reforma do ensino médio, e as outras que atacaram as condições de vida dos alunos e da comunidade escolar, como a reforma trabalhista, a escola seguirá sendo ausente de sentido, e portanto, um espaço de conflito e palco de novas tragédias. A palavra de ordem “o Estado é responsável” tem seu significado no massacre que ocorreu em São Paulo.


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FOOTNOTES

[1O “Projeto de Nação – o Brasil em 2035 “, elaborado pelos militares dos institutos General Villas Boas, Sagres e Federalistas e apresentado ano passado pelo então vice-presidente General Hamilton Mourão
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Danilo Paris

Editor de política nacional e professor de Sociologia
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