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Crise na Argentina | Extorsão policial acaba, mas crise mais profunda se abre na Argentina

As tomadas de terras e o motim policial simbolizam o fim da ilusão de uma passagem pacífica da profunda crise argentina. Um governo mais fraco, que cedeu à chantagem armada, terá que lidar com mais reivindicações e oposição, no contexto de uma economia abalada e de uma pandemia cujo fim ainda é distante e incerto.

Fernando ScolnikBuenos Aires | @FernandoScolnik

sexta-feira 11 de setembro de 2020 | Edição do dia

Quando a maré das crises desencadeadas pelo motim policial e as tomadas de terras diminuir, terá permanecido no cenário político uma imagem muito diferente da que prevalecia há pouco tempo atrás.

Como a ponta do iceberg, essas duas frentes de batalha são apenas a expressão de uma crise muito mais profunda, e vão denunciar que na fortaleza que o governo de Alberto Fernández exibiu até recentemente, havia muito de aparência e provisório.

Nos primeiros meses da pandemia prevaleceu no clima nacional a ilusão de que haveria um bom manejo desde cima diante de uma situação muito complicada, e que se agregou à pesada herança macrista somada pelo imprevisto terremoto do coronavírus. As esperanças geradas pelo novo governo e as postagens de unidade com Horacio Rodríguez Larreta alimentaram o terreno para a tentativa de comunicar que desta vez um caminho muito difícil poderia ser cruzado com o mínimo de choques possível.

No entanto, tudo isso faz parte do passado. O enorme peso da crise sanitária e econômica, combinado com as decisões do Governo e o papel de outros atores políticos e sociais, surge em cena para nos lembrar que, como tantas vezes na história argentina, tudo será muito mais convulsivo.

Além das histórias, a realidade é que o cenário não poderia ser mais diferente do de 2003, quando a experiência do primeiro kirchnerismo começou com uma economia com vento soprando a favor. Hoje o país atravessa não apenas o terceiro ano consecutivo de declínio econômico, mas a magnitude de uma crise internacional, o peso da dívida e uma pandemia de final incerto sem vacina confirmada, um conjunto de grandes adversidades.

Pela direita se compreendeu rapidamente que a consequência desta realidade é que os interesses de cada grupo seriam defendidos com luta. Assim, em Vicentin, deu o sinal de partida aqueles que saíram às ruas para defender os interesses dos empresários que acumulavam fortunas a partir de manobras ilegais e fraudes estatais.

Desde então, o mais profundo que se viu emergir nestas semanas foi um governo em crise quando se aparenta enfraquecido. Essa é a saga que Vicentin abriu, quando o partido no poder, ao optar por voltar atrás com seu projeto de desapropriação, deu lugar a um cenário potencialmente convulsivo ao instalar a ideia de que cede quando a direita e os poderosos estão encorajados.

Assim foi visto pelos setores do “Juntos por el Cambio” (Juntos pela Mudança), que se animaram depois que Vicentin convocou novos “banderazos” (manifestações), para questionar o projeto de reforma judicial ou fazer valer seu peso na Câmara dos Deputados para condicionar fortemente a atividade legislativa.

Esta semana foi ainda mais grave com o motim da Polícia de Buenos Aires que interpretou corretamente, do seu ponto de vista, a situação. Depois de receber maiores poderes para o controle social durante a crise e quarentena (com grande crescimento nos casos de “gatilho fácil”*); de ter sido encoberta no caso Facundo Castro; de ter sido encorajada pelo oficialismo e da oposição de direita em um discurso de “mão pesada”; e de ter anunciado um plano milionário de reforço das forças de segurança; eles saíram para reivindicar suas demandas, com seus próprios métodos de chantagem armada.

*NdT: “Gatillo facil” é o equivalente aos “autos de resistência” da polícia brasileira, algo como “primeiro atira, depois pergunta”.

Embora as suas anteriores relações de forças (rodeando a Quinta de Olivos com porte de armas), permitissem ao presidente contar com apoio para questionar "os métodos" do motim, a realidade é que o anúncio desta quinta-feira pelo governador Axel Kicillof, cedendo a todas as reclamações, constitui um triunfo imponente para aquela força armada reacionária que se desdobra na província de Buenos Aires para criminalizar os protestos e a pobreza, mas que também domina o jogo clandestino, o tráfico de drogas e o contrabando de carros, entre tantos outros negócios obscuros.

Além disso, resta saber se este episódio terminou, ou ainda terá réplicas em outras províncias, nas quais outros uniformizados se "inspiram" no triunfo de Buenos Aires.
Paradoxos da história, ou nem tanto, a chamada ala progressista da “Frente de Todos” (de Kicillof) termina esta crise dando um enorme triunfo a uma força reacionária. São os custos de apostar em Sergio Berni (um dos grandes perdedores da crise, que o governador insistiu, essa quinta-feira, em manter no cargo), para tentar encontrar um equilíbrio impossível entre a gestão da “mão forte” e os valores democráticos que às vezes eles dizem que representam desde o partido no poder.
Para complicar ainda mais o cenário, todos concordam que precisam dessa força para reprimir a crise social, como fizeram no passado.

A capitulação de Alberto Fernández e Axel Kicillof diante da polícia pode fechar um episódio de uma crise, mas abre outra muito mais profunda: diante de um governo debilitado e submisso, é questão de tempo até que vários setores sociais, de esquerda e de direita, multipliquem saídas para reivindicar suas demandas.

Embora os dirigentes sindicais da CGT e da CTA tenham até agora se encarregado de impedir todas as reivindicações e ser muito menos combativos do que a direita, dando-lhes as ruas, um murmúrio ensurdecedor já se faz sentir: se a polícia corrupta e repressora conseguiu um aumento tão significativo, porque não trabalhadores, esses que são verdadeiramente essenciais, como médicos, enfermeiras, funcionários públicos, ou mesmo aposentados e, por trás deles, milhões de trabalhadores, homens e mulheres, que precisam urgentemente melhorar suas condições de trabalho e vida?

Dialeticamente, a fragilidade do Governo, evidenciada pela direita, pode também dar lugar a novas manifestações reacionárias, mas também a expressões de esquerda: as manifestações de setores da classe trabalhadora e da juventude que também querem sair e reivindicar suas demandas. Nesse caminho, será preciso se organizar para superar os entraves colocados à situação por um de seus elementos mais conservadores, a burocracia sindical.

As tomadas de terras que se espalham pela província de Buenos Aires são a primeira expressão disso, de quem não fica parado esperando. As milhares de famílias que se cansaram de esperar e se voltaram para a ação direta são uma prévia dos setores mais pobres que não querem mais continuar vivendo como antes, enquanto os que estão no topo começam a apresentar algumas fraturas e problemas. Uma das tarefas urgentes da hora é cercá-los de apoio contra as ameaças de repressão e exigir uma solução fundamental para este dramático problema.

Neste contexto, as declarações do “Juntos por el Cambio”, protestando contra o fato de Buenos Aires se apazigue pelo saque de fundos da CABA (Cidade Autônoma de Buenos Aires), são apenas uma antecipação de que o atrito político entre o Governo e a oposição de direita continuará a crescer, ainda mais quando se aproxima o calendário eleitoral de 2021 e não haja uma resolução simples à vista para a profunda crise que se atravessa.

Dentro dessas lacunas, as lutas dos explorados e oprimidos podem continuar a se infiltrar.

A crise econômica e as condições que o FMI vai colocar sobre a mesa nos próximos meses para renegociar a dívida, lembram o ponto central: que em tempos de vacas magras, mais do que nunca, a luta de classes decide. É por isso que nos preparamos para voltar às ruas.




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