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LITERATURA | Experimento Surrealista 3

Esse texto faz parte da série Experimentos Surrealistas de Afonso Machado.

sábado 8 de maio de 2021 | Edição do dia

Capa do livro Nadja, de André Breton.

Nota do autor: os textos que integram a série “ Experimentos Surrealistas “ obedecem a um conjunto de reflexões e investigações poéticas realizadas no final da década de 2000. Dadas as circunstâncias da redação destes textos o leitor deve considerar que nestes as realidades do sonho e da vigília confundem-se intencionalmente, sendo que seria pura perda de tempo procurar saber se os acontecimentos narrados são “ factuais “ ou “ verídicos “. Do ponto de vista político, os escritos que integram esta série exprimem segundo sua estrutura delirante um profundo sentimento anticapitalista.

Em que estrada desembocam os passos? Esta simples pergunta remete naturalmente a uma hipótese geográfica. Todavia os espaços externos estão entrelaçados com as trilhas do cérebro. Dentro das possibilidades do caminhar pelas ruas existem paralelamente passos internos dados nas costas de nuvens passionais, passos que rasgam com facas floridas nebulosas pradarias em que encontramos caixas de marimbondos fazendo fronteiras com casebres nos quais os mortos jogam baralho. Os campos da mente não se contentam por muito tempo com o gesto funcional: esta é uma constatação suficientemente materialista porque remete aos caminhos do desejo, cujas raízes estão no corpo humano. As matas do cérebro ainda não foram devidamente desbravadas neste mundo feito de telas adestradoras de gente.

O desbravamento ultrajante do colonizador europeu dos séculos XVI e XVII nos obriga a refazermos os nossos passos. O bandeirante, este herói de Saint Hilaire que o considerou como parte de uma “ raça de gigantes “, permanece como uma gigantesca estátua de giz que assombra o povo. Uma estátua que bebe numa taça feita de chifre de unicórnio o sangue dos povos indígenas e dos quilombolas. Em nome de Palmares e da Confederação dos Tamoios devemos recusar as imagens da classe dominante e alterar o pensamento de acordo com outros possíveis passos históricos: é no tempo desejante que podemos promover uma expedição libertária que carrega o passado no presente. Uma outra história passa a ser relatada por mil olhares desvairados, olhares da liberdade.

O desejo dos oprimidos do ontem conquista cada palmo da mente: aquilo que “ foi “ age politicamente sobre aquilo que “ é “. As realidades contraditórias se fundem numa nova: os lugares externos perdidos no tempo passado e no tempo presente iluminam os lugares internos. O verbo alquímico pede passagem. É a partir desta concepção já brilhantemente esboçada por Rimbaud e outros intérpretes do delírio, que podemos nos filiar a uma tradição que visa quebrar a louça toda.

Perante os monumentos históricos que registram os feitos das classes proprietárias ao longo de nossa história, interessa saber aquilo que está atrás do ídolo opressor petrificado: trata-se por exemplo de um bosque recheado de olhos amarelos...Que outro delicioso mistério pode ser comparado a este? Uma cidade desconhecida nos espera todos os dias. Imagens que não possuem serventia comercial profanam o comércio. As sagradas palavras dos loucos tornam-se declarações de guerra contra os administradores do espírito. Um navio em chamas conduzido por ancestrais sublevados que juraram vingança, ameaça aportar na terra daqueles que rezam, matam e exploram.

Deixei a cidade de São Paulo por volta das 10 h da manhã. A noite em claro fundiu-se ao sol que esparramava sorridentes cacos de luz numa vegetação seca e sem dentes. Cheguei em Campinas com o desejo de atravessar planetas paralelos, de penetrar numa nova atmosfera nos mesmos locais conhecidos. Durante os fins de tarde de setembro eu observava o centro da cidade com a sensação de que tudo seria engolido por um olhar novo, um olhar descolonizado. O prenúncio disso se deu nas rodovias que levam até o centro da cidade.

A janela do ônibus inclina a minha visão para os dedos grudentos de uma arvore com folhas lacrimosas. O movimento de um ônibus sempre revela do lado de fora a língua secreta que poucos conseguem ouvir . É como se o movimento deste transporte substituísse o eixo da terra. O corpo entra em um novo movimento: a velocidade do veiculo impõe um outro ritmo ás coisas que habitam o mundo fora da janela e o mundo dentro da mente. É impossível colocar coleiras nos relâmpagos que surgem ao longo do itinerário.

A rotina é retomada ao longo dos dias da semana. Porém, as livres imagens do
pensamento travam uma batalha interna em que a vida rotineira torna-se uma pele que se soltou do corpo, uma casinha confortável aonde moram somente os imbecis. De dentro do ônibus, busco na paisagem notícias sobre a minha vida. Com os olhos quase cerrados após um duro dia no trabalho, veio a minha mente um túmulo com o número 41 lapidado no seu centro. Alguns instantes depois adormeço e sonho com um medalhão em queda livre: o formato deste envolve um pequeno coração prateado. Até então apenas visões curiosas. Mas após chegar ao centro da cidade, sofro uma violenta alteração nos meus sentidos: em frente a uma lotérica uma mulher exclama "É 41!".

Mais tarde no início da noite, após perambular sem destino por vários bares, resolvo entrar numa cafeteria. Aquele acontecimento fúnebre da tarde não larga o meu pensamento. Sentado ociosamente numa mesa ao fundo do estabelecimento, sou tragado por um desenho que alguém abandonou na mesa ao lado. Pego o desenho com uma curiosidade febril: é o desenho de uma bela mulher de perfil cujos delicados traços remetem a algum tipo social do século XIX. A mulher do desenho possui olhos azuis, cabelo claro e preso num delicado coque. Ela segura uma rosa vermelha e possui mais outras duas no cabelo; ao fundo do desenho uma paisagem cuidadosamente polvilhada por formas desenhadas com giz de cera. Observo aterrorizado que a jovem do desenho usa um medalhão no seu pescoço, um medalhão que possui o formato de um coração. Atordoado pelo desenho tive uma certeza esfumaçada: a mulher do desenho sabia o segredo daquele medalhão e a data da minha morte.




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