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ENTREVISTA | Estudioso de Caio Prado Júnior compara obra deste autor com a de José Carlos Mariátegui

Yuri Martins Fontes, aqui entrevistado pelo Esquerda Diário, é formado em filosofia e engenharia pela USP, onde se doutorou em história econômica com a tese “O marxismo de Caio Prado e Mariátegui – formação do pensamento latino-americano contemporâneo”. Aqui ele estará sendo entrevistado a respeito daqueles dois autores do campo marxista. Yuri é atualmente pesquisador de pós-doutorado (Depto. Filosofia–USP), desenvolvendo o trabalho: “Outros saberes – a cultura indígena e o marxismo latino-americano diante da crise civilizacional”. É também membro do Conselho Editorial da Revista Mouro–Núcleo de Estudos d’O Capital, e do Laboratório Economia Política e História Econômica da USP.

quarta-feira 7 de outubro de 2015 | 00:00

ED - Quais as suas principais conclusões – no terreno da revolução social – ao comparar o pensamento de Caio Prado Júnior com o de José Carlos Mariátegui?

É notório no pensamento dos dois autores a atenção dada à conscientização popular, à luta por mínimas condições de trabalho, à educação, ou ao que poderíamos chamar de certa hegemonia social – no sentido gramsciano – como passo para a revolução nacional. Aliás, C. Prado e Mariátegui em muito convergem entre si, e com Gramsci, quanto a suas análises da questão nacional, e este é um dos aspectos da “originalidade” de seu marxismo ao mesmo tempo militante e insubmisso. Segundo eles, suas revoluções nacionais (brasileira e peruana) se deram “pelo alto”, segundo uma via “não-clássica”, diferente dos casos europeus nos quais se baseava a análise comunista da época, ainda limitada por arraigado eurocentrismo e positivismo.

Ademais, há em ambos uma atenção à centralidade da práxis, à ideia de que o marxismo é o ponto alto do pensamento de nosso tempo – como vemos em Sartre, Florestan, etc –, pois que não se reduz a “pensar o mundo”, mas se coloca a serviço da transformação da história. Isto se dá para ambos, em um processo dialético, em que ao se agir historicamente, apreende-se a história modificada para se agir de novo. É um processo de várias frentes, que conjuga propostas de reformas políticas imediatas, com propostas estruturais, o que, a seu ver, somente deve advir em mais longo prazo, pois que para tanto cabe antes ao comunista dedicar-se à conscientização da população – tarefa lenta, processual.

Contudo, embora ambos defendessem que o caminho ao socialismo deveria ser a revolução aos moldes leninistas, opondo-se aos social-democratas, é certo que os dois autores desenvolveram pouco questões sobre a luta armada.

Quanto a suas propostas de reformas, relativas ao que consideram os temas mais urgentes de sua conjuntura (por exemplo, a questão dos camponeses indígenas com suas tradições socialistas, no caso peruano, ou trabalhadores rurais sem direitos trabalhistas, no brasileiro), é curioso notar que suas proposições políticas de curto prazo são muito semelhantes. O peruano, nos itens programáticos de seu Partido, exige reconhecimento do direito de greve “a todos os trabalhadores”, jornadas de 8 horas na agricultura, aumento do salário na “indústria” e “agricultura”, gratuidade no ensino, etc; enquanto Caio defende a extensão das leis trabalhistas ao campo, aumento salarial geral, ensino gratuito, etc...

2 - Considerando a importância de Caio Prado como inovador no pensamento sobre a formação brasileira, que Influência ele pode ter tido a partir do pensamento trotskista dos anos pré-II Guerra? Como se deu sua relação epistolar com quadros trotskistas ligados à Oposição de Esquerda Internacional?

Parece-me importante ressaltar que, se cabe se falar de “influências” em Caio Prado, isto se dá antes como relação de afinidade, ou mesmo conflito, de que como algum tipo de filiação. A obra de Caio não foi meramente intelectual, mas escrita no calor dos enfrentamentos sociopolíticos que ele viveu, de modo que em grande parte de seus escritos percebe-se seu veio polemista.

Se Caio foi “influenciado” por trotskistas – ou por alinhados ao stalinismo –, estas “influências” devem ter se dado em um sentido dialético – no confrontamento de opiniões distintas. Acredito que seus escritos, tanto historiográficos como filosóficos, são fruto de disputas que ele considerava vitais ao pensamento marxista – algumas públicas, outras “caladas”, introspectivas, mas que acabariam de algum modo por aflorar em sua obra.

Veja-se um exemplo: logo de seu ingresso no PCB, nos anos 1930, em uma de suas primeiras manifestações de independência intelectual, foi acusado pelo Comitê Regional de SP de ter se ligado a “elementos trotskistas” para supostamente fundar um jornal “pequeno-burguês” – o que seria um “desvio tático”. Ele se defende afirmando que a linha editorial do periódico seria “nitidamente marxista-leninista”, e que sua intenção era atacar a “demagogia” dos ditos “tenentes”. Porém, enquanto procura mostrar seu alinhamento partidário, ele ironiza o CR, perguntando se eles se julgavam como “antigos sacerdotes egípcios, únicos iniciados na ciência e capazes de entender o marxismo?”.

Severo crítico de posturas sectárias, seria sempre um pensador com autonomia, que do calor das polêmicas tirava seus discursos mais potentes. Nos anos 1940, em seus “Diários Políticos” (Arq. IEB-USP), em meio a críticas ao que considerava uma excessiva “verborragia” de L. C. Prestes, ele cita dois congressos sindicais realizados em 1946 – um promovido pelo Movimento Unificado dos Trabalhadores e apoiado pelo PCB, e outro convocado pelos “sindicatos oficiais” (pelegos) –, observando com simpatia que os trotskistas apoiavam o “Congresso Sindical”, aliando-se portanto aos comunistas.

Para ele, a saída – o sentido da revolução –, era este: construir um amplo movimento popular, não reduzido por quaisquer sectarismos; e ainda, que este movimento fosse erguido por trabalho junto às massas, e não pautado em discursos dissonantes da realidade conjuntural, pois que “declarações infelizes”, como as de Prestes ao falar da posição bélica que os comunistas deveriam ter em caso de guerra com a União Soviética, sem ter por detrás respaldo popular, somente seriam “pretexto para larga propaganda anticomunista” – como se daria.

Vale notar também que apesar de sua convicção no caminho bolchevique, Caio Prado, desde o começo dos anos 1930, já se mostrava aberto às críticas plausíveis de Trotski e da Oposição de Esquerda, considerando a possibilidade de que a crescente burocratização do Estado e do Partido bolchevique pudesse afetar a Revolução – preocupação aliás que o próprio Lenin manifestava. Caio enxergava como um “perigo” a constituição de uma “oligarquia dirigente”: “a burocracia”. Todavia, observa realista que o “resultado da luta” contra essa “tendência à degeneração” – como acusada pela ala dissidente de Trotski –, “depende de se saber qual tendência se mostrará mais forte”.

No entender do pensador brasileiro, o caminho ao comunismo só se constrói e delineia na luta histórica, e sempre haverá riscos neste trajeto, posto que se trata de promover uma “organização futura”, de que hoje conhecemos só o “caráter geral”.

Para isto, ele destaca a importância da “reeducação dos homens numa base de solidariedade social” – antes do que, o comunismo de fato “fica adiado”. Veja-se novamente aqui sua atenção à conscientização das bases e à disputa ideológica no campo da cultura.

Curiosamente, Mariátegui, em 1929, pouco antes de sua morte, teve indagações bastante próximas, acerca da “burocracia”, também motivadas pelas críticas de Trotski. Porém, à semelhança de Caio, o peruano, embora simpático a Trotski, declara que “até o momento” as qualidades dele não lhe pareciam suficientes em sua intenção de “substituir o governo”, naquele momento delicado em que era crucial a “capacidade objetiva de realização do programa marxista”, pois “faltava-lhe vinculação sólida” com a equipe leninista, com quem antes da Revolução manteve relações “muito pouco cordiais” [“El exilio de Trotski”). Mariátegui, também forte crítico do sectarismo, ressalta como Caio a importância da solidariedade como valor comunista – o que ele percebe presente nas sociedades “socialistas agrárias” dos incas.

Quanto à relação epistolar de Caio com trotskistas, merece menção sua carta a Lívio Xavier, do grupo de Mário Pedrosa, quando da publicação de “Evolução política do Brasil” (1933). Lívio, da Liga Comunista Internacionalista, ligada à Oposição de Esquerda, em crítica publicada no jornal paulistano “Diário da Noite”, saíra em defesa da interpretação “etapista”, afirmando, em sintonia com a tese que vigorava no PCB, que no Brasil colonial havia um “modo-de-produção feudal”. Caio Prado o contestará, dizendo ser um critério “absolutamente errado” procurar enquadrar “artificialmente” a história brasileira dentro de “esquemas que Marx traçou para a Europa” – e que estando “preocupado com as árvores”, o crítico não vira a “floresta”. O que interessa, diz Caio, é o “conjunto” da “evolução”, não os “fatos particulares” – é o “movimento dialético geral da história” [“Carta a L. Xavier”, 1933].

3 - Tratando-se de um pensamento arrojado, especialmente nos marcos do que foi o PCB, na sua opinião, Caio Prado conseguiu romper com o pensamento estratégico do PCB em termos da Revolução Brasileira?

É preciso frisar antes de tudo que uma leitura parcial de Caio Prado tem levado a interpretações por vezes incoerentes de sua obra. Por exemplo, Caio não era contra a Reforma Agrária, como disseram alguns, mas pelo contrário, defendeu uma reforma ampliada, moderna, que não só distribuísse terras mas que desse condições ao camponês para plantar, produzir, competir com latifundiários – algo próximo ao que viria a ser reivindicado depois pelo MST. No campo da filosofia, Caio não foi um neopositivista, como parte da direita intelectual o quis acusar; ele jamais buscou “naturalizar” a história, mas sim, fez o oposto: reconheceu que também a “natureza” tinha sua “história”. Embora ele desse muita atenção à objetiva metodologia do conhecimento, ele não descuida de frisar a todo momento a importância da práxis: o papel subjetivo “revolucionário” que põe em prática o conhecimento objetivamente pensado, reorientando assim o “sentido” da história, e portanto, ao modificar seu “objeto”, precisando ser repensado – segundo um ciclo histórico-dialético.

Mas estritamente quanto ao ponto que você levanta: Caio de ceto modo rompe sim com a estratégia pecebista: não confia em alianças de classes. E não é verdade que Caio Prado se colocou “contra” a luta armada. Como mencionado, o jovem Caio defendia a Revolução Soviética e Cubana (sendo inclusive um entusiasta de Fidel, enquanto estrategista). Nos anos 1930, ele recusa claramente o socialismo parlamentar e defende o método insurgente soviético: “o socialismo só será realizado pelo partido que seguir as pegadas dos bolchevistas, pela insurreição armada, pela tomada violenta do poder, como na Rússia, e não pela via pacífica da conquista parlamentar, como quer a social-democracia” [“URSS: um novo mundo”].

É certo que ele não voltaria a defender abertamente a revolução armada, pois não via possibilidades de êxito imediato desta forma de luta naquele contexto de repressão aguda. Contudo, antes do golpe de 1964, ele já denunciava como sendo uma ilusão o “aliancismo” – o “pacto populista” defendido pela direção do PCB.

Com a capitulação, ganha força sua tese de que não havia nenhuma “burguesia nacionalista” – mas apenas interesses de classe – e que as elites em verdade se identificam mais com o estrangeiro que com o povo brasileiro.

Em 1967, em entrevista aos alunos da Filosofia–USP, é questionado sobre qual a “via” para a conquista do poder; ele, sagaz, afirma acreditar que existem ambas as possibilidades, pacífica ou armada – conforme seja a superioridade de forças populares quando se efetive o momento –, mas que o importante não é “discutir a forma de luta, e sim começar a lutar”. Mantendo seu sonho (como diz Lenin) sempre pautado pela realidade –, ele completa dizendo que as “contingências” indicam a “espécie de luta”: “[se há] em S. Paulo, 30 ou 40 mil trabalhadores dispostos a pegar em armas e tomar o poder, é evidente que nossa tarefa é arranjar armas para estes operários”, “mas não adianta programar a luta armada, se não existem os elementos capazes de concretizá-la”.

Pode-se enfim dizer que a tática caiopradiana era defensiva. Para ele, o alicerce era a conscientização popular, as melhores condições laborais.

Porém, tal leitura não necessariamente leva ao reformismo passivo. Como lembra o ex-guerrilheiro da ALN, Takao Amano, em seu livro “Assalto ao céu” (2014), Marighella, ao reunir em torno de si um amplo espectro de forças políticas – trabalhadores urbanos, do campo e intelectuais – acaba por efetivar na prática revolucionária o discurso “antialiancista” de Caio.

4 - Quais os alcances e os limites do pensamento de Caio Prado, na sua avaliação?

Caio Prado, a meu ver, como Mariátegui, tem a virtude de conceber a “totalidade” como categoria central do marxismo. Por um lado, essa visão totalizante inclui um aspecto cognitivo – no sentido de que o marxismo deve se ater tanto à “análise” do mundo, nas perspectivas das diversas ciências, quanto à síntese, ou seja, à visão do “sentido” do processo histórico como um todo.

Por outro lado, há um aspecto ontológico nesta visão total: a de que o ser humano é ao mesmo tempo objeto e sujeito da história, devendo transformá-la para compreendê-la, compreendê-la para transformá-la, reorientando-a, transformando-se.

Já os limites de seu pensamento me parecem ser aqueles de seu próprio momento histórico. São os limites de um militante um tanto pragmático que não ousou pensar aspectos existenciais que estivessem mais além do que de imediato urgia ser solucionado em uma conjuntura de miséria e opressão generalizada.

Como ele sugere em “O que é filosofia”, cabe se resolver os problemas sociais mais urgentes para a ampla maioria da população, antes de se dever enveredar por especulações filosóficas ligadas a questões da existência individual, pois a possibilidade desta, depende do ambiente proporcionado por aquela.

De todo modo, ainda que se possa compreender seus porquês, é uma pena que um pensador de seu calibre não nos tenha contemplado, com sua agudeza de espírito, com uma reflexão sobre “formas” de lutas diretas e em curto prazo pelo poder – sobre a guerra de movimentos, a luta armada.

Outros sim, sinto falta em Caio de um maior aprofundamento nas questões psicológicas, que ele pioneiramente abordou, mas não desenvolveu – tema fundamental ao questionamento das estruturas ideológico-culturais que sustentam o poder político. Neste aspecto, Mariátegui foi mais fundo, ao trazer ideias de Freud, Unamuno e Nietzsche ao marxismo, além de tratar da arte e do movimento surrealista.

E isto é bastante atual em um mundo em que tantos que se colocam como marxistas, abstém-se de agir politicamente, encastelando-se em seus confortáveis cargos ou academias, em uma pobre atitude apenas “professoral”. Ou ainda, supostos “marxistas” afeitos ao excessivo conforto, aos “finos restaurantes”, que se usam do carro individual de modo vulgar, enfim, que vivem, na prática, segundo os mesmos pressupostos consumistas, insustentáveis, daquela elite que criticam – não percebendo que suas atitudes pessoais também devem ser revolucionárias.


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