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Era Digital, direitos virtuais: um debate com Marcio Pochmann

Iuri Tonelo

Era Digital, direitos virtuais: um debate com Marcio Pochmann

Iuri Tonelo

“Fôssemos nós o que deveríamos ser, e não haveria em nós necessidade de ilusão”, escreveu o Alberto Caeiro. O verso nos abre uma janela para pensar o Brasil de várias formas, as “imperfeições” do poema em questão, mas não como coisas boas. E dentre as questões que poderíamos tomar, a proposta aqui é concentrar em um ponto, que embora particular, revela muitas coisas sobre a realidade brasileira: a generalização do trabalho precário como traço característico do Brasil.

A precarização do trabalho condensa muitas coisas, mas especialmente uma estrutura herdeira da colonização: seja pela “relação com a metrópole”, que sempre quis que aqui tudo fosse primário e rudimentar, seja pela caráter escravocrata da elites e do capital financeiro, que em pleno século XXI mantém o elevado grau de exploração, embasado na opressão racista, como um dos pilares de acumulação do país.

Jovens sem direitos trabalhistas em cima da bicicleta enfrentando sol escaldante ou chuva torrencial retratam algo de continuidade com essa tradição indesejável da formação do capitalismo brasileiro. Daqui que qualquer resposta política do campo da esquerda deve passar por esse ponto, e o economista Marcio Pochmann sintetizou a sua resposta numa chamativa expressão: “por uma CLT da Era Digital” [1]. A proposta parece atrativa, mas a verdade não se encontra na superfície. O economista não diz o que isso significa programaticamente, e acredito que desvelar seu conteúdo indique uma das chaves do projeto que se anuncia com a chapa Lula-Alckmin.

A linguagem comum do problema

Distintas matrizes de pensamento têm ressaltado algo de comum no diagnóstico brasileiro, muitas ideias as quais Pochmann também desenvolve, por vezes em acepção crítica. No artigo citado, que vamos tratar neste texto, o economista reflete sobre o desmonte das bases econômicas do país sob a égide neoliberal, partindo da flexibilização da legislação trabalhista nos anos 1990, ligada à forma como o país se integrou à economia mundial nas últimas décadas, como um grande consumidor de serviços digitais e exportando produtos de baixo valor agregado, um eco da estrutura passada da qual falávamos e que o autor explicita, incluindo a entrega de todos os recursos ao capital financeiro, com os leilões do 5G, com total dependência e sem qualquer soberania tecnológica. Ou seja, dentro desse marco de demonstrar a subordinação da economia brasileira e sua dependência, integra a reflexão com a temática da precarização laboral. Num outro texto chega a usar uma expressão crítica até mais forte, dizendo que “Ao ser concebido por relação individual, o empreendedorismo de si próprio configura na Era Digital como a terceira fase da escravidão” [2], uma terceira fase depois dos três séculos do Brasil colônia e uma segunda fase no período imperial. Daqui que denuncia a reforma trabalhista espanhola e a “deforma de Temer” de 2016 no Brasil.

Até aqui uma crítica que parece contundente, mas vejamos que às vezes o conteúdo vai além da frase. Nesse caso, a característica curiosa do diagnóstico crítico é que seu fundamento acaba por distorcer a própria denúncia, e o segredo aqui é que não é por um acaso que Pochmann está usando a expressão Era Digital com essas letras maiúsculas.

Qual o problema de se definir uma Era Digital?

Antes de falarmos da abordagem do autor que estamos debatendo, é preciso dizer que sobre as transformações que estão ocorrendo no capitalismo contemporâneo impera uma enorme propaganda no mainstream econômico: a ideia que estamos vivenciando uma quarta revolução industrial. O fundador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, desenvolveu a propaganda oficial segundo a qual estamos entrando na era de comunicatividade, robótica, internet das coisas (IOT), tecnologias de big data e inteligência artificial, que estariam reformulando todas as relações de trabalho (e em algumas versões, dando um novo adeus ao trabalho), tendo como modelo o desenvolvimento na Alemanha da indústria 4.0, as fábricas inteligentes, automatizadas, funcionando com machine learning (máquinas que aprendem com os dados gerados e otimizam os processos).

É claro que estamos vivenciando mudanças tecnológicas e transformações no mundo do trabalho, não podemos deixar de ver as mudanças. Mas olhando para além das lentes interessadas do marketing alemão para atrair investimentos na indústria no pós-recessão de 2009, podemos dizer que internacionalmente nunca estivemos tão distantes do “fim do trabalho”. A Organização Internacional do Trabalho hoje contabiliza ao redor de 3,4 bilhões de trabalhadores [3]. O gráfico a seguir mostra o crescimento exponencial da classe trabalhadora nos últimos anos (só freado pela pandemia):

Sim, vale repetir que a classe trabalhadora nunca foi tão grande absoluta e relativamente, com a urbanização das últimas décadas. Mas o que, mesmo entre os meios de esquerda, é pouco ressaltado é que estamos igualmente distantes de uma sociedade pós-industrial. Se tomarmos os dados da OIT novamente, aponta-se que 22% dessa força de trabalho internacional está alocada na indústria, o que dá um número de impressionantes 750 milhões de trabalhadores. Claro que se pode apurar um pouco o dado, mas é possível já ter uma dimensão: olhemos o mapa mundial, seria equivalente a que toda a população da Europa, ou do que toda a população da América Latina e mais uns milhões, estivesse trabalhando em fábricas e no setor industrial (!). Essa é a sociedade “pós-industrial” da atualidade.

Aqui começam os equívocos do fundamento de Pochmann. Como bom economista, sabe utilizar os dados, parte de fenômenos objetivos como a desindustrialização brasileira e a diminuição do emprego formal, mas compra um pouco os argumentos de autores como Schwab para falar que, “em virtude disso, assiste-se à marcha da desproletarização no interior do mundo do trabalho, cuja relação débito-crédito tem-se fortalecido no país em plena condição de consumidor na Era Digital” [4]. A dialética é a filosofia das proporções, e errar a medida aqui pode ser perigoso. Isso porque quando estamos na barricada a nossa denúncia é incisiva contra a “uberização” e a destruição ou devastação do mundo do trabalho. Mas os limites disso é que 41% do trabalho no país é formal e o Brasil possui um proletariado industrial, em termos absolutos, cerca de 9,4 milhões (segundo dados da CNI) [5]. Por fim, não estamos diante de um fenômeno de desproletarização, mas de uma nova morfologia do mundo do trabalho, na conhecida expressão de Ricardo Antunes.

Pode parecer um jogo de ênfases, mas para compreender melhor a questão é preciso perceber que Pochmann se distingue de outros economistas em um ponto: é um intelectual orgânico do PT. E o que há de coerente no seu pensamento com seu período de economista dos governos petistas que ajuda a explicar a proposta atual?

O “realismo” anterior de Pochmann diante do fenômeno da terceirização

Para compreender a proposta atual, vale retomar o debate que fez Pochmann durante o começo da década de 2010, durante o governo Dilma Rousseff. Isso porque havia no período uma ampla difusão, nos marcos do gradualismo lulista, de que estava se conformando uma nova classe média, por vezes também chamada de classe C.
Pochmann então rebateu essa ideia entre outros textos no seu livro “Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira” em que argumentava, demonstrando com dados, que o que se chamava de “classe média” era na verdade a classe trabalhadora, de modo que concluía que “está em curso uma crescente polarização entre os dois extremos com forte crescimento relativo: os trabalhadores na base da pirâmide social e os detentores de renda derivada da propriedade” [6]. Ou seja, o que estava crescendo não era uma classe média com critérios de renda superficiais das agências de estatística, mas era a classe trabalhadora – uma maneira de dizer que os governos do PT estavam recompondo essa classe.

Mas não se pode negar que na argumentação Pochmann não tenha sido honesto com o “realismo” de tal recomposição. Diz o autor que “do total líquido de 21 milhões de postos de trabalho criados na primeira década do século XXI, 94,8% foram com rendimento de até 1,5 salário mínimo mensal” [7], que ele retomando a literatura internacional chama de working poor [trabalhadores pobre]. Isso significa, sem meias palavras, dizer que a forma de recomposição laboral proposta pelo PT, trazendo o “pobre para o orçamento”, teve como componente implementar de maneira generalizada o aspecto crucial da reestruturação produtiva neoliberal no Brasil: a terceirização do trabalho. FHC conseguiu durante o auge neoliberal implementar a terceirização no Brasil; mas foi durante os governos do PT que vimos um salto, atingindo, em 2014, o número inacreditável de um quarto do emprego formal no Brasil, 12,4 milhões de empregos. A “virtude” do lulismo original foi converter a explosão de informalidade sob FHC em formalização com baixos salários e direitos subtraídos - via de regra, pela terceirização.

A mensagem da política do passado é clara: para recompor o trabalho, teremos que reconhecer as novas condições, atuar de forma “realista”, e ir avançando progressivamente na base da pirâmide, o que naquele caso equivalia a considerar correta a generalização da terceirização como parte da política de “recompor” o mundo do trabalho. E agora, o que significa?

Era digital, direitos virtuais

O quadro concreto do significado de “uma CLT da Era Digital” está montado. A verdade é que a “Era Digital” significou a implementação da uberização do trabalho em escala global, das distintas alas do capital financeiro (incluindo as “democráticas”), mas talvez com ainda mais velocidade nos governos reacionários, não por acaso na Europa a Inglaterra foi uma das campeãs nas novas modalidades de precarização, seja com o zero hour contract [contrato de zero hora], seja com a uberização, durante os tempos de Brexit e Boris Johnson. Nos Estados Unidos de Donald Trump vimos outro pólo desse processo. E aqui no Brasil, um laboratório da precarização laboral com o governo Bolsonaro. Fala-se hoje em 5 milhões de trabalhadores uberizados, um salto alucinado desde a reforma trabalhista em conformar uma massa de trabalhadores escravizados pelo capitalismo de plataforma e a gestão algorítmica.

No caso brasileiro, Lula durante o encontro com Alckmin e as centrais desenvolveu o projeto em sua “apresentação” do novo projeto de “adequar a legislação trabalhista a nova realidade” [8], com o exemplo da cooperativa de Araraquara. Nessa cidade, instalou-se um aplicativo, o Bibi Mob, que é uma empresa com CEO em estudos a partir do Vale do Silício dos Estados Unidos e que criou um projeto de “App da cidade”, que funciona como uma franquia, mas com a relação contratual com a prefeitura e gerida por uma cooperativa. Isso significa que o aplicativo da cidade passa a ser esse, mas a apropriação da tecnologia é privada (e toda sua gestão algorítmica) [9]. A vantagem propagada aos quatro cantos e com centralidade no discurso de Lula é que os motoristas ficariam com 90% dos ganhos das corridas, e uma taxa ficaria para manutenção do aplicativo. A conclusão é que então toda a legislação passada pode fenecer para eles, e se desse “exemplo” de trabalhadores com um repasse um pouco maior, mas continuando por fora de toda a legislação trabalhista e trabalhando com tecnologias privadas como o que deve ser generalizado. Então nosso horizonte máximo passa a ser “melhores repasses para os trabalhadores”, mas o que se faz na prática é aceitar e legalizar o modelo uberizado - uma tentativa que Tabata Amaral já havia feito no seu PL, legalizando o trabalho sob demanda [10].

Esse projeto de “oposição com governabilidade” traduzido na chapa Lula-Alckmin, do qual Pochmann é expressão ideológica, atua diante dessa situação com o mesmo realismo de outrora: é necessário perceber que o mundo se desproletarizou, que a indústria teria ido para o museu e que agora estamos numa Era Digital. Então, cabe ao progressismo (varguista?) reconhecer e legalizar essa nova realidade, uma “CLT da Era Digital”. Era digital, direitos virtuais. Diz Luiz Guilherme Schymura da FGV: “É necessário que a legislação trabalhista e o sistema de proteção social se adaptem para oferecer algum grau de proteção a esses trabalhadores, com os motoristas de Uber e os entregadores vinculados a aplicativos sendo os exemplos que mais chamam a atenção” [11]. Não é irônico que a escola do IE-UNICAMP e a FGV tenham se abraçado nesse projeto?

Mas a verdade é que ao contrário de a solução vir dos governos e da gestão do capitalismo, o novo proletariado de serviços e uberizado tem protagonizado importantes lutas ao redor do mundo. Se olharmos atentamente, o Brasil foi palco em meio à pandemia e governo Bolsonaro, em 2020, de uma grande paralisação dos entregadores (uma das maiores do mundo na categoria), em várias capitais, tomando em São Paulo a ponte estaiada, com cartazes de que “nossas vidas valem mais que o lucro deles” – além de ensaiar primeiras articulações internacionais, já que a greve ocorreu em outros lugares na América Latina.

Mas para onde devemos nos ater sem dúvidas é no que ocorreu recentemente nos Estados Unidos: Washington Post argumenta que está surgindo uma geração U, de Union (sindicato), no país, com jovens querendo se sindicalizar e conquistar direitos. E a expressão mais importante disso foi que recentemente esses jovens conquistaram o primeiro sindicato dos trabalhadores da Amazon, depois de meses e mesmo anos de batalha. O representante dos jovens sindicalistas na sua declaração agradeceu a Jeff Bezos, porque enquanto “ele estava no espaço, aqui embaixo os trabalhadores estavam fazendo o primeiro sindicato”.

Em suma: o fenômeno da uberização do trabalho rasgou em uma tacada toda a legislação trabalhista. Agora nossa proposta tem que reconhecer isso e readequar a legislação trabalhista? Férias, décimo terceiro, seguro-desemprego, o que tem de “arcaico” nisso? A situação é tão sufocante com Bolsonaro que podemos nos confundir e começar achar que o mínimo é o máximo, que o piso é o teto. Antes nós falávamos que a batalha dos sindicatos deveria ser por incorporar trabalhadoras e trabalhadores terceirizados ao quadro efetivo de funcionários, com todos os direitos. Igual trabalho, igual salário. Por que agora vamos aceitar a separação dos uberizados e a legislação especial?

Uma batalha que muitos dos que pensam ligados à classe trabalhadora têm feito é de denunciar visceralmente o fenômeno da uberização, do falso empreendedorismo, das modalidades selvagens de exploração laboral na atualidade. Não renunciemos a isso de forma alguma, não readequemos a legislação. É necessário lutar sem mediação pela revogação completa da reforma trabalhista, que levantemos a consigna de empregos com direitos para todos (trazendo os jovens trabalhadores uberizados para dentro da legislação trabalhista com todos os direitos) e que busquemos, diante do desemprego, levantar a consigna que está sendo agitada pela Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT) na Argentina de redução da jornada de trabalho sem redução salarial, com distribuição dessas horas entre empregados e desempregados.

Conciliar e remendar aqui equivale a legalizar a uberização e prestar um belo serviço às sanhas de espoliação 4.0 do capital financeiro em sua nova reestruturação produtiva em curso.


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FOOTNOTES

[3Gráfico extraído do Banco Mundial, com dados da OIT, podendo ser acessado em: https://data.worldbank.org/indicator/SL.TLF.TOTL.IN.

[6Marcio Pochmann. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo, Boitempo, 2012. P. 22

[7Idem, p. 27

[8Ver discurso de Lula no encontro com Alckmin e as centrais: https://www.youtube.com/watch?v=J9bzv-B_aUw&t=676s

[9Sobre esse tema, ver artigo de Rafael Grohmann: O aplicativo de Araraquara e a soberania digital. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2022/02/09/aplicativo-de-araraquara-e-soberania-digital/

[10Ver texto de Vitória Camargo: “Trabalho sob demanda”: um novo marco legal que avança na uberização. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Trabalho-sob-demanda-um-novo-marco-legal-que-avanca-na-uberizacao.
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Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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