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Entrevista com Flavia Rios: a esquerda e o movimento negro, institucionalização e racismo na ditadura militar

Renato Shakur

Entrevista com Flavia Rios: a esquerda e o movimento negro, institucionalização e racismo na ditadura militar

Renato Shakur

Entrevistamos Flavia Rios, professora de sociologia da UFF e pesquisadora do Afro/Cebrap. Rios centrou sua pesquisa no processo de institucionalização do Movimento Negro e suas entidades na década de 70, assim como as organizações de esquerda. Neste estudo refletiu sobre a relação entre o racismo e a ditadura militar brasileira, que perseguiu esses movimentos, e as redes de ativismo construídas por esses militantes ao longo da história. Flavia Rios também escreveu a quarta capa do mais recente lançamento das Edições Iskra, o livro Mulheres negras e marxismo, organizado por Letícia Parks, Odete Assis e Carolina Cacau.

Conforme a socióloga desenvolve abaixo e nós concordamos, houve um processo de burocratização nas organizações de esquerda que afetaram diretamente a forma como esses movimentos refletiram a atuaram com relação ao racismo e a luta negra, secundarizando, ou até mesmo negando, esse importante processo, inclusive levando ao rompimento pela esquerda de militantes negros de correntes do morenismo, como a Convergência Socialista, e do stalinismo, como o PCB. Porém, partindo deste acordo e de que o racismo não acabará apenas com a tomada do poder pelos trabalhadores e a derrubada do capitalismo, acreditamos que a estratégia capaz de acabar com o racismo e as opressões é a Teoria da Revolução Permanente, desenvolvida por Trótski, que prevê a dissolução tanto das classes quanto de todas as formas de opressão a partir da revolução socialista internacional.

O debate a respeito da relação entre raça e classe começou a ser desenvolvido ao longo do século 19 por Karl Marx, retomando uma tradição de luta dos comunistas ao longo da história. Parte deste extenso debate está desenvolvido nas duas obras que publicamos à respeito do tema: A revolução e o negro, organizado por Marcello Pablito, Daniel Alfonso e Letícia Parks, e Mulheres negras e marxismo, organizado por Letícia Parks, Odete Assis e Carolina Cacau.

Leia na íntegra a transcrição da entrevista com Flávia Rios, ou o vídeo com os principais pontos no final do texto.

Renato Shakur - IdE: Você trabalha com um conceito que é chave para entender a mobilização política do movimento negro, que são as “redes de ativismo”. Gostaria que você falasse sobre esse conceito e a importância dele nas suas elaborações. E, ainda no que corresponde à história do movimento negro, gostaria que você pudesse explicar como se desenvolveu o processo de institucionalização do movimento negro.

Flavia Rios: Esse é um trabalho que eu desenvolvi entre o mestrado e o doutorado na Universidade de São Paulo (USP). A ideia, na verdade, durante o mestrado, é que eu queria entender como as organizações negras, ou seja, como os movimentos sociais, na verdade, se tornavam organizações mais formalizadas, mais burocratizadas também, porque é inevitável (porque aí tem que ter CNPJ, tem que ter um espaço físico, etc.); eu achava esse processo muito importante porque a organização física institucionalizada é uma cristalização de uma ação coletiva, e isso é positivo. Justamente porque não fica tão informal, não fica tão fragmentado, não fica tão sem regras internas, enfim, fica mais consolidado no tempo e mostra que as organizações têm mais força, afinal de contas elas chegaram a um acordo de não só se movimentar coletivamente (por propósito, por objetivos, a irem às ruas, a lançarem panfletos, etc.) mas também concretizar uma vida comum, cotidiana, uma regra institucional, etc.

Então eu olhei mais para isso na sociedade civil, a minha pergunta era como os movimentos sociais brasileiros se institucionalizavam, se organizavam (muitas vezes como ONGs, porque essa era a forma jurídica mais comum até pela questão do financiamento e a questão da gestão mesmo da lógica do cotidiano do ativismo e da militância política). Eu me interessei por esse tema, investiguei várias organizações, e com uma delas eu me identifiquei mais, que foi a Educafro, porque achei interessante que era um movimento bastante popular na sua origem, junto dos PVNCs (Pré-vestibular para negros e carentes), desde os anos 80, que se inicia no Rio de Janeiro, na periferia, na Baixada Fluminense, e também ganhou uma institucionalização em São Paulo com a criação da Educafro nos anos 90. Então eu queria entender o que levava esse processo. É claro que aquela organização era muito singular, porque ela estava vinculada à Igreja, e isso também era uma curiosidade – porque afinal de contas toda a teoria dos movimentos sociais sobre a mobilização política no Brasil falava muito da Teologia da Libertação, que era tão central no ativismo dos movimentos no geral e do movimento negro no particular – então eu fiz esse estudo de caso: a história do movimento negro contada desde o final da ditadura militar e seu processo de institucionalização na sociedade civil.

No doutorado, eu me movimentei mais para entender essa institucionalização em direção ao Estado, porque afinal de contas era esse o processo que estava em curso com a ascensão do PT ao poder, ao governo federal; muitos movimentos sociais se institucionalizavam – já tinha um processo de institucionalização, é fato, via conselhos, via regras, convivências e experiências institucionais, caminhos de interações institucionais em algumas secretarias, coordenadorias, nos municípios, no estado e também no governo federal, onde a gente tem por exemplo a Fundação Palmares, criada desde os anos 80 no contexto do centenário da abolição. Então já havia formas organizacionais só que não havia uma forma organizacional como foi o caso da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), como foi também o caso das institucionalizações que se sucederam, por exemplo na Secretaria dos Direitos Humanos ou na Secretaria da Educação; então era muito importante entender esse processo de institucionalização e para isso eu queria olhar bastante também as interações com o parlamento, as interações com bancadas nele, que estavam se constituindo, as interações com a sociedade civil; então não era só a institucionalização por si mesma, mas quais são os impactos desse processo quando você também tem interações permanentes, porque afinal de contas nós estamos falamos de interações de um movimento social, dinâmico, e os grupos também são muito dinâmicos. E aí, em síntese, a ideia da institucionalização é um processo de profissionalização do ativismo político no Brasil, de cristalização de relações, seja na sociedade civil, seja no interior do Estado, e que tem por objetivo fomentar, problematizar e até garantir os direitos constitucionais para as populações negras, os direitos humanos de modo geral, então uma forma de que a agenda pública promovida pelo movimento negro durante décadas virasse de fato uma agenda de Estado. Então o processo de institucionalização tem esse lado de pautar a agenda por dentro também, não só como grupo de pressão de fora das instituições do Estado. Então esse que foi o processo que eu estudei nesse período democrático.

RS - IdE: Acerca da atuação do movimento negro durante a ditadura militar brasileira, gostaria que você falasse sobre a repressão e o racismo deste regime e a forma reacionária que os militares utilizavam o mito da democracia racial. Além disso, nesse processo de luta militantes que também vieram da esquerda passaram a conformar o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, gostaria que pudesse falar sobre esse processo também.

FR: Esse processo da experiência política organizada dos negros durante a ditadura militar é até mais complexo por questões de acesso a dados, é diferente quando a gente pesquisa processo democráticos em que as pessoas estão vivas para falar, isso é um fato importante. Em que as organizações não são clandestinas, em que as organizações querem dar visibilidade pública aos seus atos. Então é muito mais tranqüilo. Agora quando falamos de uma experiência traumática, inclusive em que as organizações para sobreviverem elas precisavam ser relativamente ocultas ou encobertas, um período ainda de bastante medo, insegurança mesmo sabendo que as organizações negras não eram revolucionárias no sentido que as organizações que se valeram de armas contra o regime militar. As organizações negras são, nesse contexto da ditadura militar, democráticas, em um sentido que elas não recorreram a armas para o desmantelamento do regime autoritário. Elas recorreram às formas constitucionais ou as lutas pela democracia via uma mudança constitucional, das instituições, do próprio estado, via eleições.

Então esse período, também por conta do próprio regime autoritário da ditadura que tem vários momentos, na verdade quando a ditadura se instaura o que acontece é que os movimentos sociais em geral e o movimento negro em particular sofre uma desestruturação e desorganização, justamente, porque a temática racial foi logo considerada um tema subversivo. Era um tema que não poderia ser tratado como um problema social, teria que ser tratado como uma solução. Afinal de contas nós vivíamos numa “democracia racial” e isso era uma solução para o mundo. Esse era o discurso oficial do Itamaratí, dos nossos diplomatas, ao longo das conferências da ONU, em todos os debates públicos. Representações públicas internacionais sobre o Brasil eram então de que nós não tínhamos racismo, não tínhamos preconceito, não tínhamos desigualdades, éramos um país de boa convivência. Isso também tem um impacto importante porque a própria ditadura militar que dialogava com países como os Estado Unidos, países africanos, especialmente a África do Sul em que os conflitos raciais eram muito flagrantes por conta do Apartheid. Então o Brasil figurava, se representava como país de democracia racial, isso significava que os movimentos sociais tinham pouco espaço para vocalizar assuntos que não fossem dessa natureza, de uma convivência, e mesmo assim eles fizeram, mas tiveram que fazer com linguagens próprias e tentando se reconfigurar no contexto da ditadura militar, uma vez que toda aquela mobilização política que veio no período democrático desde 1944-45 com o Teatro Experimental do Negro em diante até 64, sofreu esses balanços inclusive com exílios, com desorganização das entidade negras, da mobilização e até do debate conflituoso que era tão importante para a discussão, para o desenvolvimento do debate público.

Essas organizações passaram a tomar nomes culturais para inclusive se proteger contra qualquer ação da ditadura militar até quando se tem o fim ou a derrota das lutas armadas brasileiras em que esse movimentos sociais e novas gerações de jovens negros, alguns vindos de universidades privadas como a Cásper Líbero, Outros também de universidades públicas como a USP, universidade como a Cândido Mendes que é privada, universidades como a UFRJ, UERJ, etc. em Salvador, a UFBA.

Essas pessoas, essas novas gerações que nasceram ali em meados e finais dos anos 50 que já eram jovens cheios de energia e críticos ao sistema passaram a problematiza mais a questão racial, seja a partir de uma tradição que nós já tínhamos de mobilização, de organizações negras desde o século XIX, mas também a partir da recepção de reflexões internacionais sobre as independências dos países africanos e as lutas negras revolucionárias. A partir da literatura revolucionária, da poesia, dos romances, dos contos, a partir dos discursos, dos ensaios, a partir da circulação dos estudantes negro africanos que frequentavam também as universidades brasileiras na condição de estudantes. Mas também um fluxo importante que envolvia a casa de Portugal que era também uma instituição que vários africanos e brasileiros conviviam. Ali então você tem um trânsito entre Brasil, Portugal e países africanos de língua portuguesa. E também as mobilizações da representações que chegavam, das notícias que chegavam, a imprensa alternativa que noticiava os conflitos, que noticiavam os lançamentos de livros, que noticiavam as organizações, os debates, as independências. Enfim, todos esses temas eram lidos e refletidos. O próprio Franz Fanon circulava no Brasil, os livros dele Condenados da Terra e Peles Negras, Máscaras Brancas. Tudo isso teve um impacto importante nesse geração que passava a entender melhor o processo colonial a partir da experiência africana ou da relação África e Europa.

Por outro lado, agente também tinha a luta pelos direitos civis, nós tínhamos o próprio Panteras Negras que são tão relevantes e o Malcom X. Todo esse debate estadunidense sobre igualdade racial teve um impacto muito importante no Brasil, somado a tudo que nós tínhamos aqui. Essa geração passou a problematizar mais sobre o debate racial ao mesmo em que eles estavam em diálogo com a luta contra a ditadura militar que era a nossa experiência latino americana no cone Sul. Esses casos todos tinham impacto na formulação e nas redes sociais. Era muito pouco provável que você se apresentasse na política num contexto ditatorial sozinho, então você tinha que ter uma rede muito densa de proteção e de cuidado e também de vocalização dessas reflexões e debates. E aí você tem o trotskismo que foi uma corrente política tão influente no surgimento do movimento negro unificado (MNU). Vários militantes que foram fundadores do MNU tiveram uma experiência política e de ação dentro do trotskismo. Mas é importante dizer que surge dessa relação como disse um jornalista que eu gosto muito que é Bernardo Kucinski que escreveu aquele livro Jornalistas e revolucionários. Ele fez uma sistematização muito importante de como os jornais, as redações alternativas dos jornais, não era a grande imprensa, era a pequena imprensa, foram verdadeiros celeiros de ideias revolucionárias, contra culturais, ideias que f fizeram com que as militâncias feministas, militâncias LGBTs que formaram também, inclusive, o jornal Lampião de Esquina e o jornal Versus, um jornal tão importante que tava na base da organização do Movimento Negro Contra a Discriminação Racial com outros grupos também, judeus revolucionários, grupos islâmicos, movimento LGBT como eu falei, feminista também que estava emergindo ali, o movimento negro, a própria esquerda política organizada especialmente pelo trotskismo. Então você tem um linguagem, um trânsito, uma relação política entre raça e classe na formação do movimento negro contemporâneo, digo contemporâneo esse que surge ali no contexto da ditadura militar e nele nós temos de fato o trotskismo como uma das correntes principais. Tem também intelectuais, ativistas ligados ao partido comunista, mas para a formação mesmo, para a organização política que veio a gerar o Movimento Negro Contra a Discriminação Racial, o trotskismo foi muito, muito significativo. Os ativistas estavam vinculados a correntes morenistas, uma vertente do trotskismo de influência argentina que já fazia parte do debate intelectual, jornalístico, político e de organização política naquele contexto.

Nesse contexto que ainda era de luta armada, mas que não estavam se organizando para a luta armada, esses militantes estavam se organizando já pensando numa ação institucionalizada, no sentido de que era preciso estruturar uma luta ampla, um frente ampla contra a ditadura militar e que fosse civil, mas que não armada nesse sentido. É ali que surge a base desse movimento negro contemporâneo e que vai se diversificando ao longo do tempo. Mas só para não parecer que o movimento negro foi apenas essa versão ou essa principal corrente, tem muitas outras organizações negras no contexto da ditadura militar. E eu gostaria de destacar nesse tópico de ditadura militar que o movimento negro foi vigiado e lideranças negras como Lelia Gonzáles e Abdias do Nascimento têm verdadeiros dossiês que a ditadura produziu porque eles perseguiam não só as organizações, mas eles cuidavam de cada militantes que eles consideravam potencialmente mais perigosos ou que fossem muito mais influentes no debate público que de fato eles eram.

RS - IdE: Flavia, você tem um pesquisa de muito fôlego sobre a relação da esquerda e o movimento negro. Gostaria que você pudesse nos contar como se deu influência do trotskismo tanto na esquerda quando no movimento negro na década de 80 e 90, sobretudo no que corresponde às concepções e exploração capitalista. Em sua tese, você faz uma crítica bastante contundente a forma como o PT setoriza a questão negra e a subordina as instâncias superiores de decisão do partido, criando inclusive a comissão de negros do PT em 1981, forma esta que você mesma notou na Liga Operária. Gostaria que pudesse nos contar um pouco desse processo, dessa relação específica esquerda e movimento negro, de como esses militantes muitas vezes permeavam ambos os espaços e da influência que o MNU teve no partido dos trabalhadores.

FR: Essa pergunta é muito importante, de fato o que agente pode dizer sobre isso, eu gostaria de falar sobre a parte teórica disso, porque na parte de ação política o entendimento era de que o movimento tinha que ter essa dimensão da anti-discriminação da raça e da classe. Essa era a linguagem que se formulava na ação política, agora do ponto de vista teórico é preciso entender como isso estava estruturado no raciocínio e na argumentação dos militantes. A primeira e que na verdade eram leituras erradas era que se entendia que racismo era fruto do capitalismo, se era fruto do capitalismo uma vez superado o capitalismo nós também superaríamos como uma consequência o racismo, tese errada, mas essa era a tese que estava posta.

A outra tese que estava posta era que o racismo era um sistema de dominação enquanto o capitalismo era um sistema de exploração, tese errada, porque os dois sistemas são sistemas de exploração, o racismo também é um sistema que gera mecanismo de exploração econômica. Essas teses criavam uma relação de subordinação entre uma coisa e outra, de precedência, a ideia de que primeiro a gente enfrenta uma dimensão de classe, do próprio sistema capitalista, o sistema de exploração mais importante, o assunto mais importante e secundariamente nós enfrentamos outras dimensões relevantes a vida social, mas que não eram estruturais ou centrais. Essas teses erradas foram desenvolvidas, pensadas e formuladas no contexto da ditadura militar que criaram de fato alianças que tentavam, digamos assim, forjar uma linguagem comum, de unidade política, etc. Eram teses que criavam ruídos, quais ruídos se criavam (;) Eu vou colocar o caso, por exemplo, de um intelectual muito importante que eu estudei que meu colega Fabio Nogueira, um pesquisador muito importante estudou que foi o Hamilton Cardoso que era um ativista intelectual trotskista, um jornalista também. Trabalhou muito no jornal Versus, foi muito decisivo para a difusão do debate público sobre a questão racial, sobre o tema da raça e da classe no debate público não só da pequena imprensa, mas também dos grandes meios de comunicação. Ele trabalhou na TV Cultura, na Folha de São Paulo, então boa parte da produção que nós vemos, podemos pesquisar na Folha de São Paulo, principalmente, nos anos 80 passou pelas mãos de Hamilton Cardoso. Hamilton Cardoso foi um daqueles que tentou demonstrar que essa tese de que o racismo tem um lugar secundário na explicação da exploração. Então, ele tentou expressar seus descontentamentos com essa tese, justamente, a partir dos casos empíricos de contextos que passaram por revoluções ou de casos de socialismos, de experiências socialistas em que a experiência do racismo ainda se fazia presente, ou seja, não era correto imaginar que uma vez superado o capitalismo o racismo desapareceria num passe de mágicas. Ou seja, existem mecanismos próprios no enraizamento cultual, político e econômico que mereceriam um enfrentamento próprio, uma luta própria, não necessariamente desarticulada da classe, porque os militantes negros socialistas nunca abdicaram da classe. Isso não é verdadeira para os militantes brancos socialistas, eles abdicaram do debate da raça, eles menosprezaram o debate da raça durante muito tempo e até hoje a gente vê isso.

Esse comprometimento dos militantes negros, dessa geração de 1970, essa geração que se forjou ali, ela queria solucionar num sentido de tornar esse argumento da relevância daquilo que todo mundo chama hoje de racismo estrutural, eles entendiam que o racismo era estrutural que o racismo tinha uma relação de interdependência entre racismo e capitalismo, de tal modo que era muito difícil separa-los como o pensamento da esquerda ocidental tentava fazer. É muito importante que esse entendimento, essa tese da subordinação, do gênero, da classe e até da sexualidade e outros temas, tendo a classe sobre essas outras dimensões foi muito, inclusive para autonomia dos movimentos sociais. Os movimentos sociais negros se tornam autônomos, justamente, porque eles não comungavam da mesma tese da esquerda política, uma vez que ela subordinava essas ações e não era possível subordina-las, era preciso dar visibilidade públicas a ela e ter uma organização autônoma. Não é por acaso então que esse movimentos emergem porque eles queriam politizar mais, dar mais centralidade, o lugar devido ao debate colonial, o debate racial. Eles estavam muito bem orientados do ponto de vista das teorias anticoloniais no mundo, teorias africanas, teorias desenvolvidas também nos EUA, na América Latina, no Caribe, em Cuba, se agente lembra por exemplo de autores que estavam pensando, formulando a partir dessa tensão, desse grande problema do século XX, desse grande problema teórico do século XX eu é posicionar o debate sobre raça e classe, mas também posicionar o debate sobre dominação e exploração. Isso ganha força durante todo os anos 80 e do ponto de vista prático como as organizações partidárias que foram se constituindo ainda que populares, com bases populares, elas também foram constituídas a partir de uma esquerda com essa visão que acabei de falar, de hierarquização das pautas e nessa forma de pensar a hierarquização das pautas, essa forma se concretizou na organização política partidária e daí a ideia de setorização. A setorização é um jeito de acomodar demandas secundárias no interior do partido político, o partido dos trabalhadores adotou essa estratégia, assim como próprio trotskismo já tinha adotado, de separar nas suas organizações clandestinas e semiclandestinas nos anos 70 os espaços do debate específico, então a especificidade. Esse debate não é estrutural, ele é específico, precisamos falar do gênero, o gênero não é estrutural no debate, ele é algo quase cultural, de costumes que precisam ser superados etc., mas não é um debate que permeasse toda a organização política. Esse é um enfrentamento que as mulheres, os negros e as populações LGBTs, indígenas também tiveram que enfrentar porque todos viraram setoriais, a até hoje as organizações dos partidos se formam assim, por segmentos específicos. Ora se tem um problema de desigualdade e se tem um problema racial dessa magnitude de um colonialismo e de um patriarcalismo é preciso que toda a organização se mova para superar isso justamente, porque se tem um proposta para a sociedade, se a gente quer reformar a sociedade de um modo geral é preciso que as nossas próprias organizações progressistas sejam reformadas, temos que começar por nós, por nossas formas organizacionais. Isso realmente não acontecia, isso era apresentado para fora como ideais, como projetos, como discurso, mas para dentro as organizações eram e ainda seguem sendo muito hierarquizadas e eu argumento, essa hierarquização está diretamente relacionada a uma forma de pensar, aquelas teses que eu apresentei no começo dessa resposta.

RS - IdE: Na sua tese você também elabora sobre as questões de raça, classe e gênero, a participação ativa de mulheres, negras, em todo esses processos de que você falou. Eu gostaria que você pudesse falar um pouco de intelectualidades importantes nesse momento, de militantes importantes, nesse contexto geral do debate de raça, classe e gênero.

FR: É muito importante essa pergunta porque até então a gente falou de modo geral sobre a questão racial nos regimes políticos, os desafios que esses ativistas tiveram tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista da ação política, das suas formas organizacionais. Sobre a questão do gênero é muito importante também, porque quando nós estávamos vivendo esses cenários que foram objeto da minha investigação no mestrado e doutorado, a organização de vários sujeitos políticos, uma grande tese que foi elaborada pelo Sader, falando dos novos personagens que entram em cena, mas na verdade eles não eram novos. De fato, era um uma reconfiguração dos personagens, de atores e atrizes políticas na cena brasileira, da ação política brasileira. Mas não só brasileira, latino-americana e também do ponto de vista mundial você tem uma reorganização dos ativismos internacionais e com o Brasil não foi diferente, o que era diferente era nossa experiência autoritária. Então nós temos na formação do nosso feminismo negro recente, esse contemporâneo, que emerge no contexto da ditadura militar, o segmento de mulheres negras que atuaram nas organizações clandestinas, em partidos políticos comunistas, em partidos trotskistas. Todos eram clandestinos, afinal de contas durante a ditadura havia o bipartidarismo, então todos os outros “partidos”, todas as outras organizações partidárias estavam na ilegalidade, elas viviam uma forma clandestina, ou também se organizavam em redes; então nós temos, por exemplo, uma Thereza Santos, que é uma militante política comunista que foi presa no Rio de Janeiro, que trabalhou no teatro, que trabalhou em organizações da cultura, no samba, organizando a classe trabalhadora, organizando a população periférica, moradora dos morros, a partir da linguagem popular, a partir do samba, a partir das suas formas expressivas e culturais, negras, e esta ativista é uma das (não só ela) mulheres negras que constituíram a base desse feminismo negro contemporâneo, ela também foi uma mulher que atuou, ela se exilou em África com receio de ser presa aqui no Brasil, porque também participava dessas redes anticoloniais com intelectuais e revolucionários, ativistas revolucionários, militantes, africanos, especialmente de Angola, onde ela ficou bastante tempo. Depois voltou no final dos anos 70, tornando-se uma das figuras mais importantes da formação do movimento de mulheres negras.

Nós temos, por exemplo, a própria Lélia Gonzalez, que teorizou sobre essa relação entre raça, classe e gênero (na época a palavra gênero não circulava ainda no país, mas sim a dominação e a hierarquização sexual). Ela tem a sua tese sobre as mulheres negras, levando em consideração a dimensão colonial da escravização, até o período do capitalismo periférico. Lélia Gonzalez era uma autora que de fato era uma ativista, que se relacionou também com essas redes progressistas e de esquerda política, mas ela também era uma acadêmica, o lugar dela era também o lugar da academia, dos grupos de estudos, da recepção dos teóricos, intelectuais, mas ela não era uma intelectual de escritório, ela era uma intelectual de rua, de militância, uma intelectual orgânica, pública. Tem um aspecto importante nessa autora, ela realmente desenvolveu teses e argumentos muito teoricamente sustentados, e também empiricamente sustentados, com base na bibliografia da produção historiográfica, sociológica, antropológica, conectando o marxismo à psicanálise, conectando as ciências sociais e a filosofia, para pensar essa relação entre raça, classe e gênero, então é muito importante saber que a gente tem uma autora do corte da Angela Davis no Brasil, pensando nessa conexão e essa interdependência entre três temas, de dominação patriarcal, colonial e o capitalismo, e pensando não só como essas formas de exploração e dominação se inter-relacionam, mas também pensando em formas de emancipação, quais são os caminhos e as possibilidades de emancipação, quais são as formas de subversão desse sistema do ponto de vista das experiências das lutas sociais concretas. Então, além da sua atuação política, ela também tinha essa atuação e essa produção intelectual, esse legado intelectual tão contemporâneo e atual para o debate no Brasil recente.

Eu também chamaria atenção para outras mulheres que buscaram outros referenciais teóricos, como a Sueli Carneiro, que foi buscar na teoria do poder do Foucault para pensar uma micropolítica, uma biopolítica, o epistemicídio, a forma do colonialismo, mas em uma outra linguagem, do biopoder, do conhecimento, da reflexão sobre o conhecimento e sobre os discursos. Então tem essa produção intelectual que eu acho muito vigorosa, assim como tem uma produção intelectual de mulheres negras que sustentaram e sustentam o debate até hoje, via psicanálise, de uma recepção muito sustentada das teses fanonianas, também pensando a clínica, que é uma dimensão tão importante, o social, a sociologia e a clínica, como a Neusa Santos, naquele livro clássico Tornar-se negro. Então nós temos muitas autoras e intelectuais, como Luiza Bairros, uma mulher revolucionária, de ação, também de refletir sobre o Brasil e a organização das mulheres negras, então é muito importante que essas mulheres tenham pensado sobre grandes temas, temas centrais da convivência social, da política e da economia, mas também estavam pensando em formas de solidariedade, de resistência, em formas de organização da vida no cotidiano mas também da vida política, da comunidade política. Então nós temos por exemplo a Luiza Bairros, que eu acho que é uma autora fenomenal, uma ativista do MNU (Movimento Negro Unificado), fundamental, que vai também, na organização política e nos espaços da política, colocar na ação essas ideias sobre as quais ela refletia e desenvolvia, e era um legado que ela trazia e refletia também no campo da práxis.

Então eu poderia passar aqui a manhã toda, a tarde inteira falando de tantas mulheres intelectuais e ativistas, mulheres ação, da política, da organização social. E eu queria falar e dar destaque também para as mulheres que não tiveram essa visibilidade, e que fazem parte desse pensamento feminista negro, e também do movimento negro, dar visibilidade para as mulheres, entre muitas aspas “anônimas”, as mulheres que precisam ser descobertas pela historiografia, pela sociologia, pela antropologia, que são mulheres que atuaram no cotidiano dessas organizações, são mulheres das periferias, dos morros, que ensinaram que o pensamento feminista negro que se constituiu não é só um pensamento teórico, produzido por uma teoria acadêmica, ou uma teoria das organizações de esquerda mais tradicionais, é também um pensamento muito ancorado na produção de um saber popular, no saber, como eu falei da Thereza Santos, dos morros, dos sambas, dos mestres, um saber de um pretuguês, como a Lélia González elaborou, é um conhecimento a partir dessas mulheres, dessas vivências dessas mulheres, muitas delas sem alfabetização alguma, mas que tinham experiências da concretude, da vivência, das formas de solidariedade, e também das tradições africanas recriadas nas Américas, e que tornavam essas mulheres autênticas também no que diz respeito às suas reflexões sobre o mundo.

É interessante que essas teorias do feminismo negro não negligenciam nem hierarquizam saberes, elas procuram trazer essas contribuições como contribuições para o pensar, para o refletir, para refletir tanto sobre as formas de emancipação como também sobre as formas de dominação e exploração. Então eu chamaria atenção também para essas experiências da prática. Ou seja, são essas mulheres, por exemplo, que vão colocar na cena pública a nossa agenda que talvez seja a mais importante, que é o genocídio da população negra, a violência de Estado. Porque essas mulheres foram às ruas e não tiveram medo, ou foram denunciar a morte dos seus maridos, buscar saber sobre o corpo, deixar na história o registro dessas pessoas com quem o Estado simplesmente desapareceu, não reconhecendo como tendo feito parte ou sendo responsável por aquelas mortes ou pelo próprio desaparecimento de crianças, de companheiros, etc. Então essas mulheres que colocaram na agenda um tema central do debate público contemporâneo. Então o feminismo negro sempre esteve muito atento a essa forma de elaborar, porque afinal de contas é uma forma de elaborar em favor da humanidade, em favor da humanização dos grupos sociais que são desumanizados porque racializados. Então esse é um tema muito importante no debate do feminismo negro brasileiro, latino-americano e também mundial.


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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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