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Entrevista com Denise Pimenta: O Ebola na África e a situação das mulheres

Entrevista com Denise Pimenta: O Ebola na África e a situação das mulheres

Reproduzimos abaixo entrevista com Denise Pimenta, pesquisadora e doutora em Antropologia pela FFLCH/USP, realizada por Grazi Rodrigues, professora da rede municipal de São Paulo e militante do Quilombo Vermelho e do Pão e Rosas, diretamente para o Ideias de Esquerda.

Denise Pimenta é pesquisadora e doutora em Antropologia, autora da tese O cuidado perigoso: tramas de afeto e risco na Serra Leoa (a epidemia de Ebola contada pelas mulheres, vivas e mortas), defendida pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, como resultados de pesquisas que incluíram 9 meses em campo em Serra Leoa, entre 2015 e 2017. Quando foi para Serra Leoa pela primeira vez, em outubro de 2015, a antropóloga encontrou o país em estado de alerta. Embora a região do oeste da África já estivesse perto de superar a epidemia do ebola, oficialmente contida em 2016, a situação ainda era de precaução máxima, inclusive militarizada.

Ideias de Esquerda: Em uma de suas entrevistas ao Jornal da USP, sobre os custos sociais das pandemias, você aponta que situações como essas atingem grupos distintos de maneiras diferentes, o que a formulação feita por você resume e ilustra bem: “Epidemias e desastres ambientais têm gênero, raça e classe.” Como você vê esse processo em relação à população de nosso país e em especial sobre os setores já oprimidos da classe trabalhadora - as mulheres, negros e LGBTs?

Denise Pimenta: Durante eventos críticos como epidemias, pandemias, guerras e os ditos “desastres naturais”, é comum que se diga que todos são atingidos. Em um primeiro momento, no caso das epidemias e pandemias, por conta da abrangência geográfica e algumas vezes por causa da alta mortandade que causam, é comum que se diga que são ”democráticas”, no sentido de atingir a todas e todos, sem fazer qualquer seleção.

No entanto, esta é uma explicação falaciosa, nenhum fenômeno atinge do mesmo modo os diferentes grupos da população, nem no Brasil nem no mundo.

Recentemente, tenho lido muitas reportagens sobre o fato do vírus do covid-19, no Brasil, ser muito mais letal em homens negros do que em qualquer outro grupo da sociedade. Esta informação, mesmo sem muitos dados numéricos/estatísticos, já diz muito. Pelo que acompanhei, estes homens negros adultos apresentam comorbidades, ou seja, quando duas ou mais doenças se associam, complicando a saúde de um determinado indivíduo. Desta maneira, muitos homens negros quando atingidos pelo vírus do novo coronavírus, encontram-se mais frágeis e propensos a adoecerem severamente, pois já são diabéticos, obesos e possuem quadros de pressão alta e problemas cardíacos. Geralmente, mesmo não sendo uma pesquisadora da área da saúde, posso supor que este homem provavelmente more em uma região periférica, não tenha acesso a uma alimentação equilibrada - rica em frutas e verduras – e possivelmente tenha um trabalho precário e sem a segurança dos direitos trabalhistas, o que o leva a trabalhar muito mais, muitas vezes em vários “bicos”, expondo-o a uma grande carga de estresse e estafa, sempre andando na corda-bamba da instabilidade financeira e da precariedade do sistema de seguridade social que o rodeia.

Ao mesmo tempo, também temos lido que, na cidade de São Paulo, a Zona Oeste, aquela mais rica, que inclui o bairro do Morumbi, é a mais afetada no que tange ao número de infectados, no entanto, é nas zonas periféricas onde há a maior concentração de mortes. O que nos explica que, mesmo que a classe média e alta possa ter estado mais sujeita à contaminação, em um primeiro momento por conta de sua ampla circulação internacional, estas mesmas pessoas são menos susceptíveis à morte na medida em que se encontram em condições de saúde, financeiras e de isolamento social muito mais vantajosas do que aquelas pessoas que vivem nas periferias de São Paulo e das demais cidades do país.

O caso de dona Cleonice Gonçalves, 63 anos, primeira morta pelo vírus no estado do Rio de Janeiro é exemplar sobre esta situação. Trabalhando há 20 anos como empregada doméstica para uma família no bairro do Leblon, Zona Sul da cidade e o metro quadrado mais caro do país, dormia quatro dias da semana na casa dos patrões. À época do Carnaval no Brasil, sua patroa viajou a passeio pela Itália, lugar que já enfrentava a pandemia. Concomitante com o retorno da patroa ao país, Cleonice Gonçalves retornou a suas atividades, tendo contato íntimo e direto com sua empregadora, esta que suspeitava de estar contaminada com o vírus do covid-19, porém, não dispensou sua funcionária até o momento em que dona Cleo adoeceu. A patroa nem mesmo chegou a alertar Cleonice sobre a capacidade de alta transmissão do vírus e também de possíveis riscos para a saúde da empregada. Cleonice Gonçalves adoeceu no Leblon, morreu em Miguel Pereira.

Muitas outras mulheres jovens e adultas, assim como dona Cleo, continuam a trabalhar como diaristas e empregadas domésticas, além de auxiliares e técnicas de enfermagem e também cozinheiras e merendeiras. A partir disso, mesmo que estas não sejam o grupo de risco e nem mesmo as que mais adoeçam pelo novo coronavírus, como foi o caso de Cleonice Gonçalves; de todo modo, mulheres serão as mais afetadas pela pandemia, pois são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico do cuidado e também em hospitais e centros de tratamento, o que abarca as faxineiras responsáveis pela limpeza dos centros de saúde e prédios públicos e privados. Terão assim suas responsabilidades e cobranças duplicadas, passarão pelo fardo extremo, tendo afetadas as saúdes física e mental. Além disso, muitas que estão em situação de isolamento, também enfrentarão e enfrentam o aumento da violência doméstica em suas residências.

Muitas destas mulheres serão demitidas de seus trabalhos sem qualquer garantia trabalhista, tendo que buscar estratégias de sobrevivência na medida em que são arrimos de família e chefes-de-família. É importante que a questão do cuidado não seja romantizada e que o peso sobre as mulheres seja reconhecido, inclusive enquanto violência. E, o grupo de mulheres mais afetado pela pandemia, que é o grupo mais afetado de uma forma geral em todo o país, é o grupo das mulheres negras, periféricas e pobres, ou seja, a base da pirâmide social.

Algumas destas mulheres são transexuais e também pertencentes à minoria LGBTQI+, um grupo já vulnerável, que durante um momento de suspensão e exceção como uma pandemia, tornam-se seus membros ainda mais vulneráveis e ameaçados, vivendo com famílias abusivas ou mesmo tendo perdido sua forma de sustento como as travestis trabalhadoras do sexo.

Além disso, também temos outros grupos vulneráveis que correm riscos, não apenas por conta de sua saúde, mas também pela invasão de suas terras como os indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Assim, povos tradicionais já tão vulneráveis no que tange direitos sociais, encontram-se ainda mais ameaçados durante esta pandemia.

Por tudo isso, a pandemia do covid-19 não é “democrática”, antes, é seletiva. Sendo assim, não ameaça e mata a todas e todos, pelo contrário, tem gênero, raça e classe, no caso do Brasil: mulheres negras pobres/periféricas, as mesmas que sustentam o país nos termos de cuidado como empregadas domésticas e no trabalho da área da saúde, geralmente nas posições mais essenciais, porém precarizadas.

IdE: Em sua pesquisa sobre a crise do ebola em Serra Leoa, na África, entre 2013 e 2016, você identificou como recaiu majoritariamente sobre as mulheres o cuidado com os doentes, o que significou também um aumento do número de mulheres afetadas, se comparado ao número de homens que contraíram a doença. Aqui em nosso país, sabemos que a maioria das trabalhadoras da saúde são também mulheres, e que em tempos normais já lhes são negados muitos direitos, como o direito à maternidade e não só a elas mas também a trabalhadoras de outros setores. Numa situação de crise como essa onde se fecham as escolas à fim de evitar a disseminação do vírus, que medidas você acha que caberiam ao Estado em relação ao atendimento aos filhos e filhas dessas trabalhadoras que como temos visto trabalham em jornadas ainda mais extenuantes para enfrentar a crise, sendo a linha de frente dessa guerra e sem uma valorização profissional, como realmente mereciam? Acha que medidas como redução das jornadas de trabalho, em especial das que são mães, combinado à contratação de mais trabalhadores e trabalhadoras da saúde, inclusive em combate ao desemprego, poderia ajudar também?

DP: A reflexão que esta questão traz é de suma importância, mas confesso que não tenho respostas. Explico-me melhor. Há uma gama de pesquisadores que buscam sugerir respostas ao fenômeno social que ocorre, propor soluções e indicar como os Estados deveriam agir. Realmente não é o meu caso, busco muito mais apontar e analisar o presente histórico e também entender a raiz do que aí se encontra em nossa sociedade. Geralmente, este tipo de estudo é usado para a construção de políticas públicas, apontando as diferenças e desigualdades sociais, mas não necessariamente sugerem quais são as tomadas de decisões mais apropriadas, isso se daria em um outro momento com uma equipe interdisciplinar de pesquisadores das mais diversas áreas. Diria que eu estou muito mais para quem faz o diagnóstico do que para quem vai construir as melhores maneiras da implementação de alguma prática e política pública. E, digo isso, pois vivemos um momento em que há excesso de opiniões e escassez de análises densas e cuidadosas.

Porém, vou me arriscar a dizer a redução da carga horária das trabalhadoras da saúde e contratação de novos trabalhadores pode ser uma atitude arriscada, e, explico meu ponto. Obviamente como uma feminista, luto para assegurar os direitos das trabalhadoras e que, sobretudo neste momento da pandemia, possam receber seus salários em dia, tendo assegurado seus direitos trabalhistas e que a redução da carga horária, sem levar à redução do salário, seja um direito para que estas mulheres possam cuidar de seus filhos e famílias. No entanto, devemos lembrar que no ano 2019, o Ministério do Trabalho deixou de existir, passando a ser apenas uma secretaria do Ministério da Economia, assim, creio que mudanças em contratos de trabalho podem ser perigosas, colocando muitas trabalhadoras desassistidas no que tange aos direitos e leis trabalhistas . Pelo contrário, vejo que a redução da carga horária de uma trabalhadora da saúde estará atrelada à redução salarial e que, futuramente, muitas delas não conseguiriam recuperar suas posições e salários anteriores. De outro lado, novas trabalhadoras seriam contratadas sem garantias trabalhistas, sendo sujeitas a todo tipo de abuso. O que quero dizer é que, obviamente sou a favor desta medida, mas creio firmemente que ela não é a solução, mesmo que possa ser uma medida a curto prazo. Devemos estar muito atentos a toda forma de edital público, contratação e redução da carga horária em momentos de suspensão e exceção como a pandemia do covid-19 na medida em que em momentos como este, no Brasil, com um governo liberal politicamente (e conservador nos costumes), não será agora que os direitos das trabalhadoras serão assegurados, pelo contrário.

Ou seja, para além do que eu acredito que deva ser feito, estou imensamente preocupada com o que pode ocorrer com as trabalhadoras da saúde que aí já estão. Não acho, infelizmente, que direitos surgirão, então, fico atenta para que aqueles que restaram, sejam garantidos. Entendo a urgência da contratação de novas profissionais, no entanto, temo imensamente a possibilidade da precarização das condições que estas enfrentarão e também daquela que pode recair sobre as antigas trabalhadoras. Não quero dizer que devemos ficar imobilizados, mas que é necessário atenção frente a todas as medidas de promoção e corte de empregos. Infelizmente, duvido da possibilidade da geração de trabalho, garantido a seguridade social, neste momento e com a proposta política que se estabeleceu no país.

Penso que mais do que propostas, ou além da importância destas, devemos estar atentos para que se garanta a segurança física, mental e a justiça para as profissionais da saúde que enfrentam este momento. E, caso ocorra a promoção de novos empregos, que estes não sejam precarizados. E, sempre lembrando que os trabalhos da ponta na área da saúde são principalmente preenchido por mulheres pretas e pardas e periféricas. Ou seja, técnicas e auxiliares de enfermagem possuem, talvez, o trabalho mais árduo e arriscado nesta pandemia, juntamente com coveiras e coveiros, mas não são as profissionais melhores assistidas. Assim, da segurança física, trabalhista e financeira necessária a estas mulheres para agir na “linha de frente” na pandemia, garantindo que possam voltar seguras para casa e não colocar seus filhos e filhas em risco e que possam, sobretudo, dispender tempo neste cuidado é uma luta diária de nós feministas, mas não é uma realidade concreta no país e que, ao meu ver, partindo de uma análise realista (e não pessimista) não se dará agora. Porém, sempre será um horizonte de luta e proposta.

IdE: Ainda sobre o direito a maternidade, vivenciamos aqui um processo contraditório em relação aos que têm direito de realizar a quarentena para evitar a disseminação do vírus, em especial porque apesar dos estudantes terem sido liberados das aulas, só algumas poucas categorias de trabalhadores tiveram esse direito, sendo hoje muitos os trabalhadores e trabalhadoras de setores não essenciais os que seguem trabalhando e sem as devidas proteções, como álcool gel, máscaras, medidas anti-aglomeração, mas especialmente os testes massivos para separar os doentes dos saudáveis e controlar racionalmente o isolamento. Como consequência dessa contradição, as crianças e adolescentes estão em casa, mas não seus responsáveis e em especial as mães, principalmente dos setores mais precários de trabalhadores. entendemos que responder essa contradição implicaria que o Estado assumisse um papel distinto do que cumpre no cuidado das crianças e dos doentes que hoje recaí sobre as mulheres, ao mesmo tempo que destoa do direito que tem as mulheres trabalhadoras à maternidade - ainda mais pensando na realidade de um país que não nos permite escolher sobre sermos ou não mães, o que se aprofunda em tempos de crise. Poderia comentar essa sobre realidade?

DP: A falta de assistência do Estado brasileiro às mulheres que são mães é uma das faces da moeda, sendo a outra a criminalização do aborto daquelas que não podem ou não desejam ser mães. E, esta moeda é aquela do controle dos corpos e das decisões das mulheres brasileiras. Ao mesmo tempo em que vivemos em um país em que o aborto não é permitido e que além de criminalizar a mulher, a culpabiliza moralmente pelo ato; por outro lado, as mulheres mães e responsáveis pela criação e educação de crianças e adolescentes são desassistidas pelo Estado. Ou seja, além de serem abandonadas por seus companheiros, que as culpam por uma gravidez não planejada, também são abandonadas pelo Estado, este que não garante assistência à mulher e a suas filhas e filhos, mas que as obriga a seguir sozinhas com estas gravidezes ou, por necessidade, enfrentar abortos arriscados tanto legalmente como fisicamente.

É importante lembrar que as creches, que não garantem vagas a todas as crianças, foi um direito adquirido a partir da luta da sociedade civil. Assim, mulheres jovens, em sua maioria negras e periféricas, muito cedo se veem com mais um filho para criar, sem qualquer apoio dos pais das crianças e mesmo do Estado, que, hoje em dia, precarizou e dificultou a assistência social (através das bolsas) a estas mulheres e família.

E, o que isso teria que ver com uma doença? Na verdade, tudo a ver. Para se ter um exemplo, no caso do câncer de mama, 70% das mulheres, durante tratamento, são abandonadas por seus companheiros, que muitas vezes abandonam também seus próprios filhos. No caso de uma epidemia, podemos pensar o caso do zika vírus em que inúmeras mulheres gestantes e lactantes, mães de crianças com microcefalia, foram abandonadas por maridos e namorados.

Ainda assim, o que teria a ver a questão da maternidade e da descriminalização do aborto com o coronavírus? Eu diria: muito! Se pensarmos que as mulheres, enquanto trabalhadoras da área da saúde ou como donas de casa, são as primeiras responsáveis pelo cuidado que garante a sobrevivência da família e da comunidade durante uma pandemia, percebemos que possuem o peso e a responsabilização do cuidado para com os outros, principalmente em relação aos filhos e familiares, no entanto, não possuem auxilio financeiro do Estado e também dos pais das crianças.

A partir disso, podemos perceber que as mulheres que são responsabilizadas pelo cuidado - e estão, por isso mesmo - relacionadas diretamente com o risco e com o perigo, não possuem qualquer direito sobre seus próprios corpos, sendo estes muitas vezes submetidos à vontade e decisões de homens e do Estado.

Portanto, responsáveis por gerir e administrar o cuidado, garantir a segurança a alimentar das famílias e comunidades, promover o abastecimento de água quando de situações sanitárias precárias, às mulheres não é permitido gerir seus corpos e direitos reprodutivos.

Portanto, creio a urgência de análises a partir do feminismo interseccional é urgente e imprescindível para compreender o lugar de importância desta mulher e muito mais, entendermos que, apesar de sua posição imprescindível, ainda hoje são subalternizadas e submetidas, o que não significa que não tenham agencia, visto que o trabalho do cuidado é pleno de agência.

IdE: Na sua entrevista à USP você comenta também sobre os impactos das crises econômicas que se aprofundam com situações como as pandêmicas, em especial sobre o operariado. Aqui no Brasil, em 2016, após o golpe institucional vimos ser aprovada a PEC do teto dos gastos que limitou os investimentos e a manutenção em áreas essenciais como a educação e saúde, que combinada ao processo histórico de privatização e desmonte do SUS agora cobra um preço, com estruturas insuficientes, onde faltam desde EPIs aos trabalhadores, mas também respiradores e leitos de UTI. Também foi aprovada ano passado uma Reforma da Previdência que condena todos os trabalhadores a se aposentarem com praticamente 70 anos - para os que conseguirem chegar nessa idade trabalhando, mas que também recaí com ainda mais peso sobre os ombros das mulheres e das mulheres negras, que além das duplas e triplas jornadas de trabalho, têm as vidas roubadas pela precarização do trabalho, como através da terceirização, por exemplo. Como você vê esse processo em nosso país, à luz da aprovação de tantas medidas anti-trabalhistas que recaíram sobre os ombros dos trabalhadores brasileiros nos últimos anos?

DP: De imediato, como mulher e feminista, penso: tudo isso é desgastante e desesperanço. No entanto, mesmo muito cansada, muito menos é claro que as mulheres trabalhadoras da base da pirâmide social, consigo, às vezes (não sempre, porque a situação do país nos consome, sobremaneira), produzir alguma análise, até para mim mesma como cidadã brasileira, envergonhada e amedrontada com o que aí se desenrola. Entrei na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), para cursar Ciências Sociais, em 2003. No mesmo ano, subia ao poder um projeto à esquerda, um metalúrgico virava presidente. Estávamos todos em efervescência, mesmo aqueles que teciam muitas críticas ao Partido dos Trabalhadores, sabiam que a subida de Luiz Inácio Lula da Silva era uma mudança de perspectiva no âmbito nacional e também internacional. Vimos muita coisa mudar, muitos projetos sociais ganharem o cenário como Bolsa Família, Luz para Todos, Fome Zero e etc. Durante os dois mandatos de Lula, vimos muita coisa mudar para melhorar, mas, em contrapartida, vimos muita coisa permanecer. Gosto muito da crítica feita por Frei Beto quando diz que o PT no poder falhou em fornecer à população “apenas” poder de consumo, mas não acesso a uma formação cidadã crítica.

Ao mesmo tempo, consigo, recuperando o filósofo alemão Karl Marx, pensar com mais calma sobre a conjuntura política a partir da história. Ou seja, a história não se dá em uma linha reta, ao contrário, é espiralada. Assim, ela se repete, não dá mesma forma, mas com elementos muito parecidos. Portanto, consigo visualizar durante a história (em todo o mundo), ondas conservadoras que se seguem às ondas progressistas, tendo o liberalismo sempre à espreita. Deste modo, o liberalismo político e econômico e conservadorismo nos costumes que enfrentamos hoje no Brasil, ocorre também inúmeros outros países do mundo como por exemplo Estados Unidos, Turquia, Filipinas e etc. O Brasil não é uma ilha liberal-conservadora no mundo, pelo contrário. Após a onda progressista à esquerda vivida na América Latina na primeira década dos anos 2000, agora vivemos uma onda liberal-conservadora tomando vários países. Muitos jovens no Brasil, contrários às políticas sociais, nem mesmo sabem o que existia antes do Partido dos Trabalhadores. Enfim, o que quero dizer é que o que acontece no Brasil é complexo, mas não é apenas aqui. E, precisamos ser racionais na medida em que o movimento é mundial, não uma falha ou defasagem brasileira. O Brasil não é nem o pior nem o melhor país do mundo, vive a corrente e a turbulência da história como os outros, no entanto, por sua dimensão e importância, apresenta relevo.

Assim, o desmantelamento da seguridade social (sistema público de saúde, previdência social e direitos trabalhistas) passa por uma ameaça em muitos lugares do mundo. O que esta pandemia veio descortinar é que o sistema neoliberal não tem estrutura para lidar com eventos críticos de grande dimensão na medida em que estes precisão do suporte estatal. Acredito que a fotografia da incompetência do sistema neoliberal para lidar com a crise do coronavírus é o próprio Estados Unidos, seguido de perto pelo Brasil. Porém, infelizmente, não creio em derrocada do capitalismo e do liberalismo após a pandemia, como sabemos o capitalismo é um camaleão histórico, se recupera muito mais rápido que uma população inteira contaminada por covid-19.

IdE: Você cita que em sua passagem por Serra Leoa durante a epidemia do ebola, um dos desdobramentos em relação aos direitos democráticos, foi uma maior militarização do Estado para responder ao problema de saúde pública. Aqui também vemos um processo de avanço do autoritarismo por parte dos políticos, como por exemplo para impor o isolamento, ainda mais frente a ausência de mecanismos mais efetivos para contenção da pandemia como seriam os testes para toda população. Um exemplo disso e a postura do governador João Doria, que disse que caso não aumentasse a adesão à quarentena poderia passar à impor voz de prisão aos que que desrespeitassem a orientação de ficar em casa. Além de autoritária, entendemos essa medida como contraditória, entre muitos elementos pela realidade estrutural das periferias que condiciona famílias inteiras, majoritariamente negras e geridas por mulheres, à viverem aglomeradas nas favelas, muitas vezes concentrando 10 pessoas em casas de um ou dois cômodos, o que leva também a serem periféricos e precarizados os setores que menos têm condições de “respeitar” a quarentena e que além de se verem obrigados a seguir trabalhando para sobreviver, serão os mais atingidos por medidas repressivas como a que ameaçou recorrer Doria, e já recorre Wilson Witzel no Rio de Janeiro por exemplo. Partindo da realidade de que são os setores mais pobres e entre os eles os negros, os que mais sofrem com a repressão policial, em especial nas periferias e favelas, além de serem também esses setores que menos têm condições de permanecer em isolamento, você poderia comentar sobre esse iminente processo de maior repressão e militarização aqui no Brasil?

DP: A militarização do aparato da saúde é uma realidade em todos os lugares do mundo que lidam com eventos críticos como pandemias, guerras e “desastres ambientais”, da Serra Leoa ao Brasil. Podemos reparar na própria linguagem militarizada da área da saúde: “combate ao vírus”, “exército de médicos”, “a guerra da pandemia”, “vencer a batalha contra o vírus”.

O exército e seu aparato militar são convocados durante durante crises sanitárias para agir ao lado da equipe da saúde, dois braços do Estado que estão mais próximos do que muitos imaginam.

Obviamente, em um primeiro momento, o exército e a polícia são convocados para assegurar transporte de carga e agentes de saúde, pensar o acesso e a distribuição (logístoca) de medicamentos e cuidados em áreas distantes e difíceis de chegar. Mas também tem a função do controle das pessoas nas ruas, buscando o respeito a quarentenas e “lockdowns”. A princípio, nada parece exatamente incorreto. No entanto, sabemos do histórico brasileiro – e não apenas no Brasil – das medidas tomadas pelo aparato policial no controle de doenças e também na distribuição de remédios e aconselhamento de medidas preventivas, ou seja, a violência é uma possibilidade iminente. A exemplo disso, voltemos à Revolta da Vacina (1904) ocorrida nos morros do Rio de Janeiro. Obviamente que a imunização da população é necessária, mas sabemos que as regiões de maior risco são aquelas periféricas, exatamente lugar de residência e vivência de pobres e negros, bem sabemos que a força e violência são realidade no contato diário da polícia com a população da favela, esta última sempre prejudicada, o que não significa que policiais também não o sejam, muitos deles também são moradores das comunidades. A assistência do Estado, durante uma pandemia, chega de maneira muito mais dura em regiões periféricas e favelas do que nas regiões centrais e nobres das cidades ou não chega, como estamos vendo em várias cidades. Assim, muitas organizações comunitárias assumem as funções de um Estado ausente, o que é possível de ver com os comitês de crise do Complexo do Alemão (RJ) e de Paraisópolis (SP), além da constante atividade em várias outras comunidades do Brasil.

Muito da violência submetida a estas comunidades é apoiada por muitas pessoas brancas da classe média na medida em que acham que é a única forma encontrada, pois supõem que as e os moradores de favelas não contribuem para o isolamento social. O que, de modo geral, não é uma realidade na medida em que existem várias ações dentro destas. No entanto, a maioria da população a favor da opressão nas favelas e comunidades periféricas não compreende como as pessoas vivem nestas regiões mais pobres, ou seja, como a falta de estrutura sanitária e falta de espaço afeta sobremaneira as condições adequadas para o distanciamento social. Veementemente, afirmo que a pandemia descortina outra grande desigualdade social no país que é a distribuição do espaço nas cidades. Enquanto, de um lado, possuímos familiares de duas a três pessoas habitando grandes casas e apartamentos; em outras tantas regiões das cidades, famílias estendidas se amontoam em pequenas casas e “barracos”. E, muitas vezes, as mulheres, muitas vezes abandonadas por seus maridos, são culpabilizadas - pela sociedade envolvente - de ter filhos demais, “pobre tem muito filho”. Aqui poderíamos passar dias conversando sobre a relação entre pandemia, espaço e desigualdade de gênero, tocando em temas como aborto, maternidade solo, planejamento familiar e “ligamento de trompas” (mais uma vez, homens exercendo poder sobre os corpos das femininos).

Por fim, posso dizer que as primeiras pessoas a serem afetadas com a militarização da saúde, e violência que pode ser imposta por ela nas favelas, é o homem jovem negro, assim como tem acontecido nos Estados Unidos.

Em momentos de suspensão, é mais que necessário estarmos atentos às medidas opressivas sobre as minorias de direitos e a democracia como um todo, pois, sem dúvida, ela está em um lugar de fragilidade.

IdE: Agora sobre a situação internacional em relação à pandemia, vemos assim como aqui no Brasil, se expressarem contradições que mostram como dentro da lógica capitalista algumas vidas valem mais que as outras, partindo do exemplo de uma notícia que rodou o mundo nas últimas semanas, num programa transmitido dia 1º de abril, um médico do hospital Cochin em Paris, Jean-Paul Mira, propôs o seguinte em relação a possíveis vacinas contra o novo coronavírus: "Por que não realizar estudos na África, onde não há máscara, tratamento nem reanimação?", posição que repudiamos veementemente no Esquerda Diário e pelo Quilombo Vermelho - nossa agrupação de negros e negras, pelo seu caráter extremamente racista e que perpetua uma lógica criminosa de opressão e exploração históricas sob o continente africano, que vive até hoje de forma mais intensa cada barbárie capitalista, como as epidemias e desastres naturais, à luz das consequências profundamente atuais dos processos de escravização, espólio, colonização e guerras provocadas pelos países imperialistas na partilha da Àfrica. Você esteve em Serra Leoa durante o Ebola e sua pesquisa escancara essas contradições. À luz do que se pode analisar hoje sobre a crise do novo coronavírus, você poderia comentar um pouco sobre as consequências que já são visíveis e como devem ser os impactos dessa pandemia no continente africano, pensando também como os demais países poderiam intervir e frear o impacto dessa crise lá?

DP: Como já falei, tenho realmente muitas dificuldades em formular este tipo de resposta, porque, para mim, sempre soa de alguma forma como sendo especulação, tendendo à catastrofização ou a otimismos esperançosos vazios. Então, vou me pautar no pouco que conheço sobre a África, vamos lembrar que estamos falando de um continente de 54 países, inúmeras línguas e etnias diferentes, que enfrentam momentos tensos e densos das mais diversas formas, utilizando estratégias e táticas de sobrevivência, às vezes, muito diferentes daquilo que conhecemos.

Começo pelo fim: “como demais países poderiam intervir e frear o impacto dessa crise lá?”. Como poderiam? De várias formas. Porém, aposto mais em perguntarmos: esta intervenção vai acontecer? Lembremos que todas as organizações de ajuda humanitária internacionais que são responsáveis pelas doações de remessas para o continente estão, neste momento, primeiramente, voltados para seus países. Nem todas as organizações humanitárias se retiraram dos países africanos, mas suas verbas estão sendo destinadas prioritariamente para os cuidados da pandemia em seus próprios países.

Sobre a sugestão dos testes de vacinas em países africanos, isso não é novo. Os próprios africanos dizem com indignação “A África é o laboratório do mundo”. Mas, acrescento, não só ela, de forma geral países periféricos historicamente cumprem esta função em estudos tão colonizadores como no passado. Esta semana, li as mesmas intenções laboratoriais para a Índia.

No entanto, como antropóloga, que viveu nove meses na Serra Leoa, evitarei falar apenas dos riscos e da África como lugar da “falta”. Pode parecer a muitos que o continente está abandonado, porém, há muito conhecimento na região para driblar eventos críticos. Talvez, para além do olhar tutelar, devamos entender africanos como agentes com grande capacidade de improvisação e transformação. Obviamente que não busco romantizar a situação, preocupo-me imensamente com a quantidade de apenas um respirador para toda a Serra Leoa, por outro lado, enquanto europeus e americanos (continente americano) relembram a II Guerra como o último grande evento crítico, o continente africano possui a vivência e o conhecimento recente de como lidar com epidemias e guerras. Não quero ser otimista (nem pessimista), apenas indicar que faltam por lá respiradores e também equipamentos, mas, de forma feral, podem contar com uma ideia de grupo e comunidade mais forte e viva do que a nossa nas cidades do Brasil.

Como diz o sábio Ailton Krenak, existem grupos que enfrentam o “fim do mundo” desde sempre. Talvez, estejamos assustados e tecendo tantas especulações sobre nós mesmos e sobre os outros, porque é a primeira vez que o “fim do mundo” nos atingiu. Talvez, seja a hora de aprender com estes povos outros!


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