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Entrevista: O que vem a seguir para o Black Lives Matter após a condenação de Derek Chauvin?

Entrevista: O que vem a seguir para o Black Lives Matter após a condenação de Derek Chauvin?

Entrevistamos Tristan Taylor, fundador da organização antirracista Detroit Will Breathe - nascida com o movimento Black Lives Matter do ano passado - e membro do Left Voice. Taylor segue enfrentando acusações por ter participado ativamente dos protestos do ano passado. Em uma entrevista, nos mostra uma perspectiva realista do racismo estrutural nos Estados Unidos e um detalhado panorama das potencialidades e contradições que tem o movimento antirracista nos Estados Unidos para poder triunfar. Explica, também, as dificuldades que terá o movimento para enfrentar o governo democrata de Joe Biden - prestigiado pelas medidas “populares” que está tomando - e lutar pela independência de classe em seu seio. Finalmente nos conta dos apaixonantes debates no interior da esquerda e do BLM nos Estados Unidos e a necessidade de forjar uma força política que coloque esforços em unificar a classe trabalhadora e o movimento negro para travar uma só luta, a mesma luta, contra o racismo e o capitalismo.

Derek Chauvin foi declarado culpado. Como se alcançou isto e o que significa? O que vem agora?

O veredito de culpa de Dereck Chauvin é um resultado das movimentações massivas que ocorreram por todo o país e no mundo no verão passado em resposta ao assassinato de George Floyd. É a primeira vez na história de Minessota que uma agente da polícia foi declarado culpado do assassinato de um civil negro. Nos Estados Unidos, os policiais dificilmente enfrentam acusações, e muito menos são declarados culpados, por isso essa vitória é importante.

Para os leitores do Esquerda Diário ter uma ideia, no último 27 de abril foi publicado um relatório da Comissão Internacional de Investigação Sobre a Violência Policial Sistêmica contra Afroamericanos nos Estados Unidos. Entre as 44 pessoas negras que morreram ou foram feridas pela polícia e cujos casos entraram no foco da comissão estavam: George Floyd; Sean Bell, assassinado no dia de seu casamento em 2006 depois que a polícia disparou 50 tiros; Eric Garner, que morreu estrangulado em 2014 as gritos de “não consigo respirar”; Tamir Rice, o garoto de 12 anos que brincava com uma pistola de brinquedo que alvejaram segundos depois da chegada da polícia; Michael Brow, um jovem desarmado de 18 anos cujo assassinato incendiou o movimento Black Lives Matter; Freddie Gray, que morreu em 2015 depois enfrentar uma “viagem difícil” no camburão da polícia; e Breonna Taylor, assassinada enquanto dormia durante uma batida policial em sua casa em março de 2020 em Louisville, Kentucky. A análise do depoimento de familiares das vítimas, a comissão encontrou graves violações de direitos humanos, desde assassinato por gatilho fácil até mutilações causadas por disparos, incluindo a prática enraizada de utilizar infrações leves de trânsito para intimidar a comunidade negra ou os “check points” nos bairros negros, para intimidar também a juventude negra. A comissão também concluiu que existe um “alarmante padrão de uso desproporcional de força letal não só com armas de fogo, mas também com pistolas elétricas e uma cultura de impunidade onde, raramente, os agentes prestam contas”.

Lamentavelmente os casos que mencionei acima são os mais midiáticos e alcançaram visibilidade internacional graças à intensa mobilização popular, mas são milhares de casos de violência policial racista no país que passam despercebidos, ou como parte da “taxa normal” de assassinatos de negros pelas mãos da polícia. Um dos casos mais alarmantes da normalização de assassinatos racistas é o de Nathaniel Picket, em Sacramento, que foi assassinado por um policial em 2018 quando atravessava a rua rotineiramente e desarmado.

Por isso que Dereck Chauvin ter sido considerado culpado pelo assassinato de George Floyd nas três acusações que lhe imputavam é uma conquista que, claramente, arrancamos do Estado e é uma derrota de Trump, do partido republicano e dos grupos de ultra-direita que se mobilizaram aos gritos de “blues lives matter” quando, no verão passado, o movimento antirracista comoveu o país.

Entretanto, temos grandes desafios pela frente. Por hora, o movimento deixou as ruas, produto das grandes expectativas no novo governo de Joe Biden, que já está prometendo uma reforma policial em nome de George Floyd, e tentando expropriar as bandeiras do BLM. A gestão de Biden é claramente um governo de desvio, que pretende passivizar o movimento negro. Aqui nos Estados Unidos temos uma expressão que sintetiza muito bem o papel que representa o Partido Democrata na luta de classes: é o de coveiro dos movimentos sociais.

Ao mesmo tempo, um setor muito amplo que se mobilizou no ano passado não se sentiu completamente satisfeito com a declaração de culpa de apenas um policial, quando existem milhares de policiais que matam pessoas não brancas todos os dias e se trata de uma instituição racista por excelência. Basta apenas um exemplo: no dia que Dereck Chauvin foi condenado, Ma’Khia Bryant, uma garota negra de 16 anos foi morta a tiros por um policial em Ohio.

Acredito que a combinação de grandes expectativas do movimento de massas, da persistência da violência policial racista que não se extingue - como dizem os políticos do Partido Democrata - separando as “maçãs podres” e de setores de vanguarda ampla que não estão completamente satisfeitos com a condenação de apenas um policial pode dar lugar a que o movimento siga lutando contra o racismo e a violência policial. Nós queremos avançar mais. Conquistar a independência política do movimento em relação ao Partido Democrata e ajudar que a vanguarda identifique que a luta contra o racismo é a luta contra o capitalismo e que nesse caminho temos aliados e inimigos, e que temos que saber reconhecê-los.

O racismo é uma constante na história dos Estados Unidos. Como se relaciona com as instituições estatais?

O racismo impregna todos os aspectos da sociedade estadunidense, mas se reproduz e se executa através das instituições estatais que surgiram para disciplinar o movimento negro. No Sul, por exemplo, antes da polícia se organizar formalmente, em departamentos, havia patrulhas de caça a escravos. Seu único objetivo era reprimir os negros. Faziam isso perseguindo, apreendendo e retornando à escravidão os negros que haviam escapado, aterrorizando os escravizados para evitar revoltas, e embrutecendo-os através de punições extrajudiciais por infringir as normas das fazendas.

Portanto, não é de espantar que muitos membros ou admiradores da Ku Klux Klan sejam hoje policiais. De fato, historicamente há uma estreita relação entre a KKK e a polícia, e ambas as organizações trabalharam de mãos dadas para o fortalecimento da supremacia branca. Esta relação histórica se mantém, como ficou explícito depois da invasão ao Capitólio encorajada por Trump em 06 de janeiro passado, com a identificação de vários dos que participaram do ato como membros ativos e inativos da polícia.

Voltando no tempo e ao Sul, depois da Guerra Civil, essas patrulhas de caça de escravos se converteram em departamentos de polícia que faziam valer os chamados “códigos negros”, leis de fato que avalizavam a segregação em todos os níveis. Os negros libertos foram submetidos ao desemprego, à fome, ao endividamento impossíveis de pagar, ou presos de forma desproporcional, encaram fianças impagáveis e são super explorados como mão de obra nas penitenciárias.

Nos Estados Unidos de hoje, estas instituições estão desenhadas para se adaptar de maneira que continuem mantendo as práticas e políticas racistas, incluindo quando se veem obrigadas a fazer concessões ao movimento antirracista. Isto é parte do porquê as lutas antirracistas têm implicações revolucionárias. O Estado, vez ou outra, demonstra ser racista demais para se “reformar” completamente e se beneficia diretamente da harmonia entre racismo e capitalismo. Um exemplo concreto disso é o fato de que, mesmo as leis de Jim Crow [1] tenham sido proibidas pela Corte Suprema dos EUA em 1954, as escolas de todo o país, especialmente do Norte, estão muito segregadas. Isto se deve a que a mesma corte dos EUA também falhou em 1971 em limitar as formas legais pelas quais os distritos escolares poderiam ser forçados a integrar os negros. O mesmo ocorreu com as leis contra a discriminação, como a “ação afirmativa”. As instituições estatais criaram quase que imediatamente formas de limitar a aplicação de ação afirmativa para manter o racismo, já que a segregação é essencial para a sobrevivência do capitalismo. Nós queremos transmitir ao movimento estas lições históricas, porque o racismo permite aos capitalistas explorar a classe trabalhadora de conjunto em níveis mais profundos do que seria possível sem ele, mantém a classe trabalhadora dividida e justifica a espoliação imperialista nas semicolônias.

Quais são os debates estratégicos dentro da esquerda e do movimento BLM, especialmente sobre a relação entre a luta antirracista e a luta da classe trabalhadora?

Um dos principais debates que estamos tendo é sobre a questão do poder, como é e como consegui-lo, e isso está estreitamente relacionado à luta antirracista e à luta anticapitalista. É necessário um maior debate sobre a questão do poder, porque a esquerda e o movimento BLM não tem um entendimento claro sobre essa questão. Por exemplo, existe uma tendência dentro do movimento que se centra na perspectiva política e na prática do que, aqui nos Estados Unidos, chamamos de “mutual aid” (ajuda mútua). Primeiro é preciso dizer que a ideia de “mutual aid” tem sido utilizada pelas ONGs, que cresceram exponencialmente nos Estados Unidos durante a ofensiva neoliberal para amenizar as consequências sociais da destruição de qualquer traço de seguridade social. Nas mãos destas organizações, que organizam de maneira burocrática os movimentos e as comunidades que lutam por moradia, saúde, educação e até contra a violência policial racista, “mutual aid” significa gerenciar as migalhas que oferece o Estado para evitar que os pobres e, em particular, os não brancos morram de fome ou se rebelem, mediante um aparato assistencialista. Muitas dessas burocracias são parte dos tentáculos do Partido Democrata.

No entanto, à esquerda da burocracia dos movimentos sociais, um setor do movimento defende uma versão distinta de “mutual aid”. Esta perspectiva, que também se denomina “base building” (construção de base), coloca que é necessário construir organizações da classe trabalhadora, dos oprimidos e das comunidades, que se encarreguem de gerenciar programas alternativos aos do Estado para amenizar o sofrimento das massas. Alguns ativistas e organizações, incluindo autodenominados socialistas, opinam que se pode construir instituições completamente alternativas ao Estado capitalista através de organizações de ajuda mútua, e que tais instituições são centrais para o empoderamento da classe trabalhadora e dos oprimidos.

O problema com a perspectiva de ajuda mútua é que frequentemente se centra na política local dos bairros e das comunidades, e muito raramente se compromete com a luta que realmente desafia o Estado e os patrões diretamente. De fato, a maioria das organizações de ajuda mútua é em grande parte apolítica ou antipolíticas, já que não apresentam uma análise profunda das condições materiais que criam o racismo e a exploração, o caráter de classe dos partidos capitalistas e do governo, e não apresentam um programa sobre o que se precisa fazer para solucionar estas mazelas em última instância. Assim, estas organizações estão em grande medida ausentes da luta de classes, e não ajudam a classe trabalhadora e os oprimidos a descobrir, expressar e mobilizar seu poder coletivo no caminho de enfrentar o estado capitalista.

Existe outra tendência na esquerda e no movimento BLM que se diferencia em grande medida da perspectiva de ajuda mútua, que busca centrar-se em organizar os oprimidos e em descobrir seu poder coletivo na luta para enfrentar o estado e as organizações paramilitares que o Estado utiliza para perpetrar o racismo. Esta tendência explica que as forças repressivas do Estado, da polícia e outras forças de ordem, existem para proteger a propriedade privada dos capitalistas e para reprimir os que resistem ao capitalismo e ao racismo. O que compartilhamos com essa forma de entender o problema, é que opinamos que as mobilizações massivas e, às vezes, extremamente combativas, contra a brutalidade policial do verão passado foram um exemplo desse poder coletivo embrionário. Ao interromper o fluxo normal da sociedade, tomar o espaço público e se enfrentar diretamente com o Estado para exigir o fim da violência estatal e da desigualdade sistêmica, o movimento foi capaz de arrancar do estado a condenação de Dereck Chauvin. Entretanto, para eliminar todas as formas de exploração e opressão, a classe trabalhadora deve se colocar a frente, atuar como uma classe altamente concentrada e organizada desde os locais de trabalho e das comunidades, incluindo os setores mais oprimidos, que eu opino que tem um potencial disruptivo enorme. Com “os mais oprimidos” me refiro às frações da classe trabalhadora “racializadas” e que sofrem duplas cadeias de opressão do estado imperialista e racista.

Em última instância, a classe trabalhadora e os oprimidos - recentemente “descobertos” como essenciais diante da pandemia mundial - fazemos com que a economia funcione. Temos o poder não só de reter nosso trabalho dos capitalistas, causando-os perda de quantidades massivas de lucro, como também podemos tomar o controle da economia e dirigir as coisas coletivamente, eliminando a propriedade privada dos meio de produção. O problema é que a classe trabalhadora estadunidense está muito dividida e essa divisão se perpetua graças à ação da burocracia sindical por um lado, e às burocracias dos movimentos sociais por outro, que justamente sempre buscam administrar as lutas quando surgem e evitar sua radicalização. E o que é mais radical que a unidade política e na ação da classe trabalhadora com o movimento negro?

Quais são os debates dentro do movimento negro ante a nova administração Biden? Quais são as tarefas que tem pela frente os socialistas?

As massa se desmobilizaram em grande parte, sobretudo porque a administração Biden é capaz de dar a muitos uma sensação de estabilidade e fazer concessões. Isto fez com que setores de vanguarda do movimento, que ainda estão organizados e em muitos casos mobilizados com em Portland ou Minneapolis, estejam isolados das massas.

Um dos debates que estão acontecendo dentro do movimento em relação à administração Biden é sobre como identificar que tipo de administração será, e qual é a relação do movimento com ela. Não se pode dizer que Biden era um candidato popular entre a comunidade negra, além da filiação genérica ao Partido Democrata que a população afro-americana historicamente teve. A população negra, incluindo alguns setores da classe média, consideravam Biden problemático por seu histórico de apoio a políticas racistas. Dois dos exemplos de que mais se falava era sua oposição aos programas de transporte escolar destinados à dessegregação das escolas em Delaware, e seu papel na redação do projeto de lei de delitos de 1994 durante a era Clinton, que conduziu a um aumento significativo da taxa de encarceramento dos negros, especialmente os trabalhadores precários e desempregados. Suas declarações em torno da brutalidade policial durante a campanha eleitoral resultaram igualmente repudiáveis, concretamente seu comentário de que os policiais deveriam atirar nas pernas das pessoas. Não obstante, o governo Biden é considerado pelas massas negras em grande medida como um governo estável, sensato e competente, que tem dado mostras de estar disposto a fazer concessões e levar a cabo reformas limitadas, porém significativas.
Setores do movimento estão buscando ativamente uma relação crítica com a administração Biden. Liderados pelos democratas progressistas como o “Squad” [2] e acompanhados por organizações de esquerda como a DSA, uma ala do movimento - muitos deles ativistas de base genuínos em seu desejo de acabar com o racismo e a com a desigualdade - buscam pressionar a administração Biden para que se mova mais para a esquerda e conceda as demandas da comunidade negra, incluindo as demandas da classe trabalhadora de conjunto que beneficiam a comunidade negra. Alguns acreditam que uma estratégia eleitoral centrada na eleição de democratas progressistas para as próximas eleições de meio de mandato [em 2022, NdT] é a única maneira de forçar Biden à esquerda e avançar. Quem acredita nessa estratégia se opõe a que a classe trabalhadora e os oprimidos rompam com o Partido Democrata, ou qualquer intenção de minar a autoridade da administração Biden. Entretanto, o Partido Democrata, onde governa, tem reprimido duramente a vanguarda. São milhares de ativistas em todo o país enfrentando acusações federais graves, produto da repressão estatal. E são várias as leis antiprotestos aprovadas em várias cidades.

Existem setores significativos do movimentos que entendem a necessidade da independência política da classe trabalhadora e dos oprimidos em relação aos partidos defensores do capitalismo. Entendem que o governo Biden não representa seus interesses e demandas e que a única maneira de arrebatar nossas reivindicações é através da ação massiva e militante dirigida pela classe trabalhadora, desenvolvendo nossos próprios métodos de luta, como piquetes, fechamento de ruas, greves, mobilizações de rua. Os setores mais amplos farão uma experiência com este governo que já está mostrando sua verdadeira cara com sua política imperialista contra os imigrantes, mas é fundamental ser parte das lutas e estabelecer um diálogo fraternal no movimento. Ao mesmo tempo, os setores conscientes têm que ser parte de cada luta sem importar que não tenham nosso programa, sendo, porém, ao mesmo tempo, uma voz pela independência de classe e por um programa anticapitalista nessas mesmas lutas.

Visto que as massas se desmobilizaram bastante, a vanguarda está sob pressão para ser “pragmática” e abraçar o Partido Democrata e seus políticos para conseguir “mudança”. Por outro lado, alguns se enfrentaram com a pressão de aumentar o isolamento sem buscar um diálogo permanente com as pessoas, os trabalhadores nos locais de trabalho, nas organizações e nas comunidades. O papel dos socialistas é dialogar e debater com a vanguarda da luta sobre como construir uma organização e desenvolver um programa político que responda os desafios colocados para as massas e que exponha as limitações dos políticos capitalistas e seu verdadeiro caráter, os burocratas do movimento operário e os burocratas das organizações antirracistas e/ou da comunidade. Nós socialistas temos que explicar pacientemente à vanguarda negra por que é fundamental mover e comover a classe trabalhadora, inclusive quando lutamos contra o racismo, e porque é necessário desenvolver uma organização multirracial e internacionalista dedicada a revolução socialista. Nosso programa político para as massas tem que refletir seus interesses materiais e a necessidade da erradicação do capitalismo, algo que só se pode alcançar através de uma revolução socialista.


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FOOTNOTES

[1Se refere a leis e normas que garantiam a segregação racial nos EUA.

[2Grupo de cinco legisladoras e um legislador do congresso norte-americano que integram a “ala esquerda” do Partido Democrata, entre elas Alexandria Ocasio-Cortez.
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