×

TROTE | Em 2016 novos casos de trotes violentos: entenda mais sobre o sentido dos trotes universitários

sexta-feira 19 de fevereiro de 2016 | 00:00

Mal começaram as aulas em 2016 e não param de surgir novos casos impactantes de trotes violentos por todo o país. Na última segunda-feira (15), na Fama (Faculdade da Amazônia), localizada em Vilhena (RO), os veteranos de Agronomia passaram uma mistura de larvicida e creolina nas peles dos ingressantes do curso, dizendo que quem não participasse da atividade não poderia participar das festas universitárias. Aos menos 5 estudantes tiveram queimaduras sérias, como se vê na foto acima.

Em Maringá (PR), um ingressante em Medicina Veterinária da Unicesumar teve um copo de vidro quebrado em sua cabeça na última terça-feira (16). Após o ingressante aceitar que pintassem seus braços e negar que pintassem seu rosto, um veterano encheu a mão de tinta e deu um tapa em sua cara. Ao se levantar, outro estudante o atingiu com um copo de vidro, gerando cortes profundos em seu rosto.

Esses atos de barbárie que viraram notícia estão longe de serem os únicos casos do ano, apenas foram alguns dos que ganharam mídia. Relatos como estes estão longe de ser novidade. Em rápida pesquisa encontramos casos muito parecidos de queimaduras, como em 2010 na Unifeub, em Barretos, também com o uso de creolina. Também ingressantes apanharam tendo que ser hospitalizados após recusarem sofrer trote na Uniara, em Araraquara, em 2000.

Além destes casos parecidos, há relatos de tantos outros, como o garoto que teve que carregar peso de 7 kg preso a seus genitais na Unesp de Guaratinguetá em 1993, o estudante que teve que deitar sobre um formigueiro na UFU em 2006, até o emblemático caso do ingressante de medicina Edson Tsung Chi Hsueh na USP encontrado morto na piscina após o churrasco de recepção em 1999.

Por que essas práticas se mantêm ano após ano?

Na história do Brasil estudar é um privilégio de restritas camadas da sociedade. O acesso ao ensino superior segue a lógica da meritocracia (apenas pode estudar quem “merece” – apenas os melhores colocados nos exames). Esta lógica é avessa a pensar o ensino superior público como um direito. Não basta ter um diploma que comprove o domínio dos conteúdos do ensino básico, é preciso passar por um funil. E é pelo funil chamado de vestibular que a classe trabalhadora brasileira historicamente é barrada de ter acesso às universidades.

As propagandas dos principais cursinhos pré-vestibulares estampam em outdoors rostos pintados. A foto de estudantes passando por trotes aparece como símbolo da vitória, emblema dos vencedores, aqueles poucos que passaram pelo filtro do vestibular das principais universidades do país. O trote se consagrou como ritual que representa a passagem pelo filtro social excludente que é o vestibular, tendendo a ser mais cruel quanto mais prestígio o curso possui. Neste sistema meritocrático, a alegria de um significa a tristeza de milhares que foram impedidos de estudar. Combater o trote é parte da luta pelo fim do vestibular e estatização das universidades privadas, programa que acabaria com a necessidade de “coroar os iluminados” através do trote.

Além de ritual de coroamento baseado na exclusão, o trote possui também um sentido pedagógico. Assim como o trote do cavalo, que é um ritmo da passada mais rápido que o passo ordinário e mais lento que o galope, em geral ensinado a golpes e a esporadas, o trote universitário também pretende ensinar o ingressante a andar em certo ritmo, a agir de acordo com as lógicas pré-estabelecidas, seguir uma hierarquia, colocando-os na condição de “bixos” a serem domesticados.

Ainda que as universidades estejam tomando medidas punitivas aos trotes, uma vez os casos escandalosos que ganham a mídia sujam a imagem das instituições, a verdade é que os trotes possuem um papel funcional à estrutura antidemocrática pela qual estas universidades são geridas. Assim como os
Reitores punem os lutadores, os estudantes ingressantes aprendem acima de tudo a não ter voz, aprendem a ter postura obediente, e a respeitar as regras impostas para não ser punidos. Muitos dos regimentos universitários são herdados da ditadura militar, e são utilizados para punir estudantes que lutam por uma universidade de qualidade aberta à população, por permanência estudantil aos estudantes pobres, por contratação de professores. O trote reproduz esta estrutura de poder da universidade.

Em uma sociedade machista, racista, misógina, lgbtfóbica, o ambiente do trote, em que tal tipo de hierarquia entre veterano e “bixo” não só é permitida como “tradicional”, o campo para as opressões fica aberto, e ano após ano os veteranos se aproveitam da condição de poder, e os casos de abusos deste tipo se reproduzam. O trote é também, desta forma, uma tradição que guarda a reprodução das opressões na universidade, é a porta de entrada que já delimita padrões de atitude às mulheres, aos negros, aos lgbts.

Em suma, o trote está em plena consonância a uma universidade excludente e com uma estrutura de poder antidemocrática, não há nenhuma contradição entre a manutenção dos trotes e a manutenção do projeto de universidade que aí está. Combater o trote é parte da luta pelo fim do vestibular e de fim da estrutura de poder da universidade.

Trotes leves X trotes violentos

É comum que veteranos dividam o trote por intensidades, o trote leve (que seria saudável) e o trote violento. É no terreno da chamada “brincadeira saudável de integração” que se dão apelidos constrangedores, e se criam uma série de coerções. O problema do chamado “trote leve” é que em geral o próprio veterano é o árbitro que decide o que é violento ou não. O fato de o ingressante poder recusar em aceitas as “brincadeiras” em geral também é complexo, uma vez existam uma série de pressões sociais que levam o estudante a temer não conseguir se integrar sem passar por essas atividades.

Como pudemos ver no caso de Maringá da última terça-feira, é comum que agressões ocorram em meio aos trotes considerados como leves (como a pintura do rosto), quando o ingressante se nega a aceitar uma ordem. O ambiente hierárquico se estabelece de tal forma que a negativa a uma “brincadeira” pode ser fatal.

Na tradição que os veteranos decidem reproduzir em muitos cursos, a integração é sinônimo de trotes. No entanto, vemos vários exemplos de formas de integração que podem se dar sem a necessidade dos trotes, como os exemplos que descrevemos aqui, aqui, e aqui.




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias