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SOBRE A LIMINAR QUE AUTORIZA A "CURA GAY" | Em 1935, Freud já dizia que a homossexualidade não era “doença” e não devia ser “curada”

segunda-feira 18 de setembro de 2017 | Edição do dia

Causou uma imensa revolta em psicólogos, LGBTs e qualquer pessoa progressista no país a absurda decisão judicial que autoriza psicológos a tentarem “curar” a homossexualidade de seus pacientes com as chamadas “terapias de reversão”, mesmo contra a resolução do Conselho Federal de Psicologia que proibia essa prática.

Veja também: Revogação imediata da decisão judicial que permite tratar LGBTs como doentes

Trazemos aqui uma carta de 1935, escrita por Sigmund Freud, pai da psicanálise – e, portanto, da psicologia moderna – em resposta à carta de uma mãe que apela à ajuda da análise para que seu filho seja “curado”. Reproduzimos abaixo a carta na íntegra, seguida de um breve comentário:

9 de abril de 1935

Professor Dr. Freud

Cara Senhoa [NOME APAGADO]

Eu posso deduzir a partir de sua carta que seu filho é homossexual. Me impressiona muito o fato de que você mesma não mencione esse termo em seu relato sobre ele. Poderia perguntar por que o evita? A homossexualidade seguramente não é uma vantagem, mas não é nada de que se deva ter vergonha, nenhum vício, nenhuma degradação, não pode ser classificada como uma doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual produzida por uma certa interrupção do desenvolvimento sexual. Muitos indivíduos altamente respeitáveis da antiguidade e dos tempos modernos foram homossexuais, alguns dos maiores homens entre eles (Platão. Michelangelo, Leonardo da Vinci, etc.). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime e uma crueldade também. Se você não acredita em mim, leia os livros de Havelock Ellis.

Ao me perguntar se eu posso ajudar você quer saber, eu suponho, se eu posso abolir a homossexualidade e fazer com que a heterossexualidade normal tome seu lugar. A resposta é, de um modo geral, que não podemos prometer alcançar isso. Em um certo número de casos somos bem sucedidos em desenvolver os embriões frustrados de tendências heterossexuais, que estão presentes em todo homossexual; na maior parte dos casos não é mais possível. É uma questão de como é e que idade tem o indivíduo. O resultado do tratamento não pode ser previsto.

O que a análise pode fazer por seu filho está em outro caminho. Se ele está infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer a ele harmonia, paz de espírito, plena eficiência, permaneça ele um homossexual ou não. Se você decidir que ele deva se analisar comigo – o que não espero que você faça – ele deve vir a Viena. Eu não tenho intenção de sair daqui. Contudo, não me negligencie sua resposta.

Sinceramente, com os melhores votos,

Freud.

P.S. Eu não encontrei dificuldade em compreender sua caligrafia. Espero que você não ache minha letra e meu inglês uma tarefa mais difícil.

fac-símile da carta de Freud. (a carta foi traduzida da versão original em inglês que pode ser lida aqui.

A carta foi tornada pública ao ser enviada anonimamente ao sexólogo americano Alfred Charles Kinsey em dezembro de 1949, acompanhada do seguinte bilhete:

“Caro Dr. Kinsey: envio aqui uma carta de um Grandioso e Bom homem que você pode guardar. De uma mãe agradecida.”

Veja também: 12 grandes personalidades LGBT que seriam "doentes" segundo a Justiça Federal do DF

Não é possível aqui desenvolver toda a posição de Freud sobre a homossexualidade (pode-se ler um pouquinho mais aqui), e por essa carta podemos perceber já que há muitas concepções que estão francamente equivocadas (o que é de se esperar, considerando que a carta foi escrita em 1935).

Contudo, cabe destacar que há quase cem anos Freud já rejeitava como absurda a noção de que a homossexualidade fosse uma doença ou que merecesse algum tipo de “tratamento” ou “cura”. Pelo contrário, Freud enfrentou grande parte das ideias hegemônicas sobre a sexualidade vigentes na popular pseudo-ciência da “sexologia” do século XIX, e foi por isso duramente criticado.

Naquele período, os sexólgos classificavam os homossexuais, bem como todos os que tivesse um comportamento sexual “desviante” da norma heterossexual, monogâmica e de acordo com os preceitos morais burgueses da época como uma vítima de uma “degeneração” que os levava a tais comportamentos. Freud, em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, não apenas combateu energicamente essa noção, mas ainda enfiou o dedo na ferida mais a fundo: é nesse texto que estão desenvolvidas pela primeira vez suas concepções fundamentais de que as crianças possuem sexualidade desde a mais tenra idade (ideia que gerava arroubos de ira aos moralistas e puritanos da época, bem como certamente a certos “psicólogos” e moralistas como MBL, Bolsonaros, defensores do Escola Sem Partido de hoje).

Além disso, Freud afirmava que todas as crianças possuem uma sexualidade “perversa polimorfa”, ou seja, que estão disponíveis e abertas para todas as formas de sexualidade, e que é o desenvolvimento psíquico posterior (o atravessamento do chamado “Complexo de Édipo”, como Freud desenvolveria depois) que leva à interdição de certas vias de satisfação sexual e à condução à heterossexualidade. Assim, Freud é o primeiro e demonstrar que a bissexualidade seria efetivamente a forma “inata” da sexualidade humana. O que lhe cabe de conservador e se mostra no texto – e que caberá ao desenvolvimento posterior da psicanálise resolver – é a noção de que há um desenvolvimento “normal” da sexualidade, e que as demais formas seriam algum tipo de interrupção ou fixação em determinado estágio do desenvolvimento.

Contudo, em nenhum momento, como fica claro na própria carta, isso leva Freud a considerar que a homossexualidade seria uma “degeneração”, “doença” ou que em qualquer forma necessitária de cura. Nisso, aliás, ele estava acompanhado por outros nomes importantes do estudo da sexualidade em sua época, como o citado Havelock Ellis ou Magnus Hirschfield. Tal concepção de Freud, evidentemente, poderia ser ampliada para as questões da identidade de gênero, que ainda hoje sofrem a patologização por parte da medicina. Vale lembrar que apenas em 1990 a Organização Mundial de Saúde deixou de considerar a homossexualidade como um “transtorno psíquico”, como fazem ainda hoje com as identidades trans.

Em tempos sombrios que o judiciário e seu poder arbitrário cumprem o nefasto papel de impor tamanho retrocesso ao permitir que psicólogos queiram “reeducar” a sexualidade de seus pacientes, abrindo a porta para abusos imensos contra a população LGBT, é fundamental mostrarmos que não há absolutamente nada no campo do conhecimento psicológico que corrobore essas atitudes monstruosas. E que o que cabe aos psicólogos é lutar pela plena liberdade de todos, combatendo qualquer tipo de restrição, de criminalização ou de "doutrinação psíquica".

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