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COLUNA | Economia política doméstica

Boa parte das necessidades dos trabalhadores não é satisfeita no mercado, mas privadamente, através do trabalho doméstico. Esta é uma das principais formas como o capitalismo se aproveita do machismo para potencializar a exploração de toda a classe trabalhadora.

sexta-feira 5 de março de 2021 | Edição do dia

Os economistas políticos clássicos, Adam Smith e David Ricardo, já admitiam o fato de que o lucro é uma “dedução” do valor que gerado pelo trabalho. Mas foi Marx quem descobriu a diferença entre o valor do trabalho e o da força de trabalho, descoberta esta que Engels, não descabidamente, compara à do oxigênio pelo químico Lavoisier.

O que o trabalhador vende não é o seu trabalho propriamente dito, e sim a sua força de trabalho, e o comprador desta, o capitalista, aufere lucro mesmo quando paga pelo uso desta força o seu devido valor. Qual é o valor da força de trabalho? É o das várias mercadorias que o trabalhador precisa consumir para reproduzir sua existência a um dado nível de vida e para sustentar seus dependentes, a fim de que sua prole o substitua quando sua capacidade de trabalhar tiver sido, enfim, esgotada pelo capital. O salário, portanto, não é determinado apenas por critérios fisiológicos, mas também histórico-morais. Aumentos salariais ou direitos conquistados são, na prática, um reconhecimento de novas necessidades que o valor da força de trabalho deve poder satisfazer. Rebaixamentos salariais e privações de direitos representam, em contrapartida, uma recusa do capital a satisfazer qualquer necessidade além do estritamente indispensável para que o trabalhador possa continuar sendo explorado. O valor da força de trabalho varia ainda conforme o grau de qualificação do trabalhador.

Mas o que interessa ao capitalista não é o valor (de troca) da força de trabalho, e sim o seu valor de uso. A força de trabalho é a única mercadoria que, ao ser consumida, transforma-se em trabalho, em substância de valor. Tendo pago o valor da força de trabalho, o capitalista adquire o direito de dispor do valor de uso desta mercadoria e pode, por isso, usá-la para gerar um valor maior do que o da própria força de trabalho, ou seja, para produzir mais-valia.

Nem tudo que os trabalhadores consomem é, contudo, adquirido no mercado. Boa parte das necessidades destes é satisfeita privadamente, através do trabalho doméstico. Esta é uma das principais formas como o capitalismo se aproveita do machismo, uma opressão que precede em milênios o próprio capitalismo, para aumentar a extração de mais-valia. A sociedade patriarcal relega às mulheres tarefas como a cozinha, a limpeza, o cuidado dos filhos, etc. Estes trabalhos não produzem mais-valia, na medida em que não são diretamente subsumidos ao capital. Porém, a responsabilização das mulheres pela realização dessas tarefas no âmbito privado permite aos capitalistas pagarem salários menores do que se os trabalhadores tivessem de satisfazer essas mesmas necessidades através do mercado e, assim, potencializa a exploração do trabalho assalariado.

Nos primeiros anos da crise capitalista mundial, Nancy Fraser constatava o contraste agudo entre a capacidade relativa do movimento feminista de transformar a cultura e a incapacidade relativa deste movimento de transformar as instituições (“Feminism, capitalism and the cunning of history”, New Left Review 56, mar/abr 2009). Desde então, o movimento de mulheres demonstrou sua força sucessivas vezes, lutando por direitos como o aborto legal, seguro e gratuito, contra a violência de gênero e contra os ataques dos capitalistas, nos mais distintos países. Mas a extrema direita também se fortaleceu, como no Brasil de Bolsonaro e Damares Alves. Em maior ou menor medida, isto se explica pela seguinte contradição: o capital tirou a mulher do confinamento doméstico ao inseri-la no mercado de trabalho, a tal ponto que o proletariado é, hoje, mais feminino do que em toda a sua história. No entanto, o capitalismo é incapaz de socializar a reprodução da força de trabalho que as mulheres realizam no âmbito doméstico gratuitamente e de maneira tão funcional para a produção capitalista.

É por isto que as mulheres trabalhadoras são quem mais sofre as consequências das privatizações, da precarização dos serviços públicos e das medidas de austeridade e ajuste fiscal de modo geral, assim como os efeitos da pandemia, que intensificou esse trabalho de reprodução na esfera doméstica. E é por isso que a construção de uma ampla rede de restaurantes, lavanderias e creches públicas era um ponto programático tão importante para os bolcheviques, a fim de que as mulheres possam se libertar do que Lênin descrevera como o trabalho mais improdutivo, embrutecedor, degradante e banal que faz a mulher, presa à cozinha e ao berçário.

A socialização do trabalho doméstico não poderá ser conquistada por nada menos que uma revolução como a Russa, que foi deflagrada pela greve das operárias têxteis de Petrogrado contra a guerra imperialista e por pão para os trabalhadores, não coincidentemente, no 08 de março de 1917, segundo o calendário ocidental: o dia internacional da mulher. Mais de cem anos de crises, guerras e revoluções transcorreu desde então, e absolutamente nada indica que a luta das mulheres não possa abrir novamente o caminho à conquista do poder pela classe trabalhadora e, por esta via, a uma nova sociedade, sem exploração nem opressão.




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