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SEMANÁRIO

Economia política da reprodução social II: patriarcado e capitalismo

Ariane Díaz

Tradução de Lina Hamdan; imagem de Juan Atacho.

Economia política da reprodução social II: patriarcado e capitalismo

Ariane Díaz

No mercado de trabalho, diz Vogel, o capitalista deve oferecer salários que sejam equivalentes ao valor da força de trabalho do trabalhador e, contrariamente à visão de um capitalismo que nos “engana”, essa troca é “igualitária”. É claro que a igualdade no mercado "caminha de mãos dadas com a exploração na produção", mas também pressupõe que "a igualdade das pessoas não é, então, um princípio abstrato ou uma falsa ideologia, mas uma tendência complexa com raízes na articulação das esferas de produção e circulação”.

No entanto, é precisamente a falta de igualdade o que “representa uma característica específica da opressão das mulheres (e de outros grupos) nas sociedades capitalistas” [1].

Como dissemos em artigo anterior, com Vogel, que o modo de produção é o que determina o de reprodução, mas que isso não significa que ambos aspectos possam se sobrepor como uma grande cadeia de produção de mais-valia. No entanto, existe o perigo inverso, que é separar de tal modo os dois aspectos, que acabamos com duas lógicas ou modos de produção diferentes, o capitalista e o patriarcal, cruzados em um determinado momento histórico.

Esse será outro dos eixos do livro de Vogel e é para abordar esse problema que a autora retoma as conceituações do marxismo ao redor da opressão das mulheres, ligando-as à luta pelo socialismo e ao debate de estratégias, e em resposta ao que ela chama de posições "dualistas", aquelas que pressupunham que a luta dos sexos era tão motora da história quanto a luta de classes [2].

Este também é um debate político tanto passado quanto atual, pois essa era a tendência em que se viam inscritas uma série de referências contemporâneas do “feminismo socialista”, que, buscando um quadro alternativo para a caracterização da opressão das mulheres (o patriarcado, a autoridade etc.), recaíam nas debilidades que haviam caracterizado a ala reformista do movimento socialista do século XIX em relação ao problema da opressão das mulheres [3].

Vogel considera que, em parte, esse problema surge das ambiguidades presentes naquele que foi e é um clássico marxista sobre esse problema, o livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado [4]

Ali, apoiando-se – ainda que não sem críticas – nos estudos antropológicos de Morgan e nas notas deixadas sobre eles por Marx, Engels percorre através das sociedades primitivas e modernas, buscando a relação entre as formas de produção e as formas de organização familiar, dando um lugar destacado ao problema da opressão da mulher, abordado desde o ponto de vista dessa “teoria materialista da história”.

O livro de Engels será, para a autora, a fonte da teoria da reprodução social na medida em que, diferentemente dos desenvolvimentos até então populares do socialista Bebel, enfoca o fenômeno social que dá origem à posição das mulheres em uma dada sociedade e, portanto, sob as condições nas quais essa posição pode ser modificada. Mas, ao mesmo tempo, é também uma fonte de posições dualistas na medida em que, segundo sua leitura, Engels atribui à divisão sexual do trabalho na família um caráter historicamente inflexível baseado na biologia, deixando-a num “limbo teórico” [5]. Se, para Vogel, Engels ainda conseguia manter ambas as perspectivas juntas, seriam as leituras sociais-democratas subsequentes que acabariam se transformando em uma visão definitivamente dualista.

Lógica e história

O livro de Engels foi amplamente reconhecido – até mesmo entre as feministas não marxistas – por colocar o problema da opressão das mulheres no nível teórico da produção social e o surgimento das classes no centro das preocupações do materialismo histórico. Ele também tem sido alvo de várias críticas, incluindo muitos referentes às hipóteses antropológicas que realiza na obra, na medida em que desenvolvimentos posteriores teriam-nas negado. Já analisamos essas afirmações e críticas [6]; vamos nos concentrar aqui nas críticas que Vogel faz sobre seus presupostos teóricos. Os três problemas mais importantes que a autora aponta são:

• A ideia de Engels de um “matriarcado originário” que foi modificado pelo surgimento de novos meios de produção que permitiam a geração de excedentes, implicaria uma visão do desenvolvimento histórico como um processo evolutivo e automático de avanço das forças produtivas;

• ao contrário de Marx, que coloca no centro as relações sociais, Engels se concentra na propriedade (o que são “restos de utopismo”) e não na exploração como objeto da luta de classes, ao mesmo tempo em que, em seu desenvolvimento, fica vaga a distinção entre riqueza como “acumulação de coisas” e propriedade privada como relação social: assim, Engels “não vincula claramente o desenvolvimento de uma esfera especial associada à reprodução da força de trabalho ao surgimento de classes” [7].

• A ênfase de Engels na importância estratégica dos direitos democráticos deixaria em aberto a questão da relação entre a revolução socialista, a libertação das mulheres e a luta pela igualdade de direitos, sugerindo que “o programa socialista para a libertação das mulheres consiste em em dois objetivos distintos: igualdade de direitos com os homens na sociedade ainda capitalista, a curto prazo; e libertação total baseada em uma forma superior de família em um distante milênio revolucionário ” [8].

Nossa impressão é que Vogel, para discutir corretamente com o dualismo e suas derivações políticas, força as críticas a Engels. Primeiro, porque em sua própria retomada, a autora irá relativizar algumas delas. A própria Vogel diz que a propriedade privada é entendida por Engels como uma relação social (embora pareça que faz isso brevemente), e que a ênfase dada ao avanço das “forças produtivas” foi um avanço contra o idealismo anterior de Bebel – deve-se acrescentar também que as forças produtivas tampouco são para o marxismo “coisas” ou simples tecnologia, mas também parte das relações sociais.

Visto de outro modo, é difícil sustentar que Engels não dê importância ao surgimento de uma “esfera especial” relacionada à “força de trabalho” em uma sociedade que estava se tornando classista a partir de conseguir algum tipo de excedente. Engels menciona explicitamente essa separação público-privado em detrimento das mulheres, ainda que não possuam, então, as formas características da sociedade capitalista, em que produção e reprodução se separarão espacial e temporalmente.

Pode ser pensado, e provavelmente é nesse sentido que vai Vogel, que ao estender isso como característica de todas as sociedades de classes prévias, se perde a especificidade de que na sociedade capitalista o fundamento econômico já não são as relações de parentesco, mas as necessidades de reprodução, o qual marca uma mudança histórica (com a qual concordamos). Contudo, o parentesco era o laço social que regia a economia política das sociedades primitivas; analisá-las não implica, necessariamente, em uma naturalização da “família” como algo imutável. De fato, ela mesma menciona que, desde o livro A Ideologia Alemã, Marx e Engels deram como “abolida” a família para a classe operária na medida em que já não tem propriedade, mesmo que usemos os mesmo termos como “família trabalhadora” [9].

Aqui pode-se colocar um conhecido problema metodológico colocado para O Capital: é um livro histórico ou segue uma ordem lógica independentemente de como se desenvolveu essa forma social concretamente? Se é correto, como aponta Vogel, não extrapolar para outras sociedades as categorias de uma própria, também é verdade que, para Marx, as formas mais complexas de sociedade, como o capitalismo, podem permitir “descobrir” traços dessas características em processos históricos prévios. O livro de Engels é um comentário a um estudo antropológico, não a tentativa de dar conta do funcionamento da sociedade capitalista como o é O Capital. Que as formas ali analisadas não possuam todos os elementos que serão colocados posteriormente é talvez uma precaução metodológica adequada neste caso.

Entretanto, a derivação política que isso teria para visões dualistas – de que a emancipação das mulheres seria levantada para mais tarde – não surge necessariamente daí. A própria Vogel assinala que, concretamente, quando houveram discussões sobre a incorporação ou não de mulheres ao trabalho assalariado no movimento operário contemporâneo a Marx e Engels, ainda enfrentando a oposição de sindicatos (masculinos), ambos sempre sustentaram que isso era necessário. Por sua vez, contra essas posições reformistas, a visão leninista – tomada da política em relação às nacionalidades oprimidas – é definida como o eixo da tradição revolucionária de que a opressão das mulheres tinha duas raízes: como grupo social, sofrem desigualdade política, e estão presas ao trabalho doméstico. Sua libertação, portanto, também deveria ter duas caras: a libertação política era apenas o primeiro passo e, portanto, o programa da Revolução Russa tinha muito a ver com o aspecto do trabalho reprodutivo [10]. Mas o pontapé dessa tradição, diz Vogel, é o AntiDühring, de Engels, no qual se encontra a primeira formulação programática a esse respeito: não apenas a “associação de homens livres”, mas também “a transformação do trabalho doméstico privado em indústria pública” [11].

É claro que posições teóricas corretas não garantem práticas corretas, e uma política correta pode ter bases teóricas fracas ou insuficientes. Mas, mais do que as ambigüidades de Engels, é provável que o que estava em jogo neste abandono da estrutura unitária da “reprodução social” por parte de certas referências feministas com quem Vogel discute, tinha a ver com uma realidade mais próxima: a decepção com o que aconteceu na URSS. Vogel argumenta que o legado da Revolução Russa estava incompleto: o bloqueio da libertação das mulheres, que entre as socialistas era geralmente justificado pelo atraso inicial do qual se partiu ou por prioridades políticas erradas, respondia, em sua leitura, a visões majoritárias muito semelhantes às da Social-Democracia da Segunda Internacional, que Lênin ou Zetkin não puderam acabar de desmantelar. Mas ela mesma não explica a mudança entre as medidas tomadas nos primeiros anos do processo e a mudança que o stalinismo significou, que reverteu a enorme radicalidade das medidas iniciais.

É aqui que se nota a falta da análise de Trotski que Vogel não menciona, apesar de ser uma das poucas teóricas da reprodução social a destacar o que foi alcançado na Revolução Russa como eixo da tradição marxista. É precisamente a teoria da revolução permanente de Trotski que tenta explicar a mecânica da revolução operária: primeiro, é possível que a classe trabalhadora execute, com seus próprios métodos, tarefas históricas democráticas que a burguesia tenha deixado pendente – junto com aquelas que correspondem à sua classe, as tarefas socialistas; mas, além disso, que uma vez tomado o poder, as revoluções da economia, da técnica, da ciência, da família, dos costumes “se desenvolvem em uma ação recíproca complexa que não permite à sociedade alcançar o equilíbrio” [12].

De fato, uma revolução dos trabalhadores não supõe resolver automaticamente um problema milenar como o da opressão das mulheres, mas tampouco implica colocá-lo em um horizonte indefinido em que as condições materiais estejam maduras. Foi para “estabilizar” as condições internas a seu favor que o stalinismo cortou os avanços que a revolução havia permitido nesse terreno – assim como na política frente às nacionalidades, mencionada por Vogel –, trazendo de volta todos os pressupostos e preconceitos tradicionais sobre o lugar que as mulheres deveriam ter na sociedade, especialmente como mães de uma força de trabalho da qual a “pátria socialista” precisava [13]. A decepção com as ilusões geradas pela revolução em vista aos resultados obtidos, bem como a falta de ferramentas para entender esse desenvolvimento e, eventualmente, combatê-lo, foi o que gerou, em nível internacional, em alguns casos, a opção por outras vertentes, como foi o caso da Nueva Izquierda, mas, em outros, a recaída no reformismo ou mesmo no liberalismo. Provavelmente também nesse desapontamento estavam as causas da recaída no dualismo e, eventualmente, o abandono do argumento materialista unitário, que Vogel viu em algumas das abordagens das feministas socialistas contemporâneas a ela.

Moderno ou tradicional?

Pode-se argumentar que o capitalismo eliminou a base material das formas patriarcais anteriores. Encontrar quais são as novas e em o que é baseada a opressão das mulheres atualmente é a contribuição feita pela Vogel e que discutimos no primeiro artigo. Mas não há dúvida de que, no capitalismo, persistem preconceitos daquele patriarcado tradicional que o sistema mantém e utiliza a seu favor. Destacar que suas bases materiais são diferentes, como as da “família trabalhadora”, não significa que não possamos encontrar elementos comuns: a figura do pai como eixo da autoridade familiar, tarefas associadas à “natureza” das mulheres como reprodutoras de vida, os cuidados, etc. Ainda é necessário explicar, então, a relação entre ideologias anteriores ao surgimento do capitalismo, como o patriarcado e o novo modo de produção.

Na mesma Vogel, existe um elemento que poderia ser a base para uma hipótese específica – a contradição intrínseca entre obter maior massa de mais-valia e continuar a se beneficiar do trabalho não remunerado e o efeito “equalizador” do mercado em circulação – que, no entanto, ela não executa, mas Martha Giménez faz [14]. Como Vogel e outros autores do SRT reconhecem, o capitalismo, em princípio, não faz diferença quando se trata de explorar a força de trabalho – homens, mulheres, crianças, negros, brancos –, precisamente porque sua especificidade é “abstrair” empregos concretos em “gelatina de trabalho”. Mas isso implica a manutenção de que os trabalhadores são legalmente livres e iguais, pelo menos para competir no mercado de trabalho trocando suas “mercadorias” particulares, a força de trabalho. E há um problema: o que justificaria socialmente, então, pagar menos às mulheres, precarizar mais ou fazer um duplo dia cair sobre elas?

De maneira compensatório, é o que vem para cobrir a ideologia criada em torno da família, que usa os preconceitos anteriores e acrescenta outros. Assim, amor materno, maior sensibilidade feminina, dedicação, etc., são construções que dependem da tradição, mas são, nesse sentido, “modernas”. Pode-se misturar o discurso religioso em que uma mulher teria sido uma mãe sem o intermédio do sexo com o empreendedorismo cool que permite que suas funcionárias congelem seus óvulos para “respeitar” seu “desejo de ser mãe” quando seja conveniente à empresa, como faz a Amazon. Um ponto semelhante é levantado por Artous em Los orígenes de la opresión de la mujer: “Parece que a burguesia, portadora de uma ideologia igualitária entre os indivíduos, foi forçada a produzir uma teoria sobre a natureza feminina para justificar a opressão em favor da diferença entre homem e mulher” [15]. Uma operação semelhante poderia ser pensada para outras formas de opressão, como o racismo.

Para além de a situação ter mudado desde as primeiras análises dos fundadores do marxismo até a Revolução Russa, ou do contexto em que Vogel escreve hoje – com um aumento significativo de mulheres no mercado de trabalho –, para marxistas revolucionários, sempre se tratou disso, e esse trabalho de Vogel, contra visões dualistas, é uma contribuição, no sentido de não dividir as demandas que buscam o fim da exploração com as demandas que querem acabar com todos os tipos de opressão. Isso supõe um debate político e programático que no marxismo costuma ser chamado de problema de hegemonia. Reconhecer as determinações e especificidades da produção e da reprodução sob o sistema capitalista deve, em qualquer caso, ser capaz de articular essas demandas de modo a não aprofundar as divisões das quais o próprio capitalismo se beneficia, mas, pelo contrário, fortalecer a luta contra o sistema que os provoca e sustenta. São bases teóricas, nesse sentido, de um debate mais amplo sobre a estratégia revolucionária (seus centros de gravidade, seus aliados e inimigos). A rediscutibilidade das ideias que atravessam essa tradição é parte da sua atualização no calor das novas situações, desafios e debates reabertos hoje, com os quais procuramos contribuir a partir destas páginas e que, sem dúvida, exigirão novos capítulos.


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FOOTNOTES

[1Todas as traduções do inglês constantes deste artigo foram feitas a partir das traduções do espanhol elaboradas pela autora. Cf.: Lise Vogel, Susan Ferguson e David McNally, Marxism and the oppression of women [Marxismo e a opressão da mulher], Chicago, Haymarket, 2013, neste caso, p. 19.

[2Idem, p. 135.

[3Idem, p. 28; 137.

[4Cf. Ariane, Díaz, “O marxismo e a opressão à mulher”, Esquerda Diário, 2 de jun. 2017, em https://www.esquerdadiario.com.br/O-marxismo-e-a-opressao-a-mulher

[5Vogel, Ferguson e McNally, Marxism and the oppression of women [Marxismo e a opressão da mulher, Chicago, Haymarket, 2013, p. 138; 136.

[6Cf.: Ariane Díaz, “O marxismo e a opressão à mulher”, Esquerda Diário, 2 de jun. 2017, em https://www.esquerdadiario.com.br/O-marxismo-e-a-opressao-a-mulher

[7Vogel, Ferguson e McNally, Marxism and the oppression of women [Marxismo e a opressão da mulher], Chicago, Haymarket, 2013, p. 86; 91; 90.

[8Idem, p. 90.

[9Idem, p. 51. – É interessante tomar aqui um elemento que Arruzza acrescenta (Las sin parte, Barcelona, ​​Sylone, 2010) quando aponta que, nas sociedades primitivas, a afirmação progressista da “propriedade individual” é feita contra a propriedade coletiva da organização gentílica, isto é, aparece como um elemento de constituição de uma classe diferenciada do coletivo. O que Arruzza vai criticar, no entanto, em Engels, é que "ele recorre a um suposto instinto dos homens de perpetuar sua própria herança e, conseqüentemente, de controlar a função reprodutiva das mulheres", em vez de apontar que é a necessidade de controlar essa função reprodutiva da força de trabalho que estabelece essas normas. Além do fato de que o objetivo de Engels era, justamente, apontar que a sujeição das mulheres é motivada por mudanças econômicas e sociais e não por algum "instinto masculino", deve-se dizer que a capacidade de herdar a propriedade individual é uma marca de classe na medida em que permite sua perpetuação como tal; por isso, por exemplo, um dos problemas para a casta burocrática que surgiu na URSS era o de que, por lei, eles não podiam herdar seus privilégios e, portanto, tornar-se uma nova classe opressiva. É que a propriedade privada é, efetivamente, uma relação social na medida em que supõe a privação de propriedade para outros e a perpetuação da própria.

[10Vogel, Ferguson e McNally, Marxism and the oppression of women [Marxismo e a opressão da mulher], Chicago, Haymarket, 2013, p. 123 a 126.

[11Idem, p. 78.

[12Cf.: o prefácio de A Revolução Permanente, Iskra, 2008.

[13Cf.: Wendy Goldman, Mulher Estado e Revolução, Edições ISKRA / Boitempo Editorial, 2014.

[14Cf.: Martha Giménez, Marx, women and capitalist social reproduction, Leiden-Londres, Brill, 2019.

[15Antoine Artous, Los orígenes de la opresión de la mujer, Barcelona, Fontamara, 1982, p. 56.
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