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E se o controle dos trabalhadores sobre a economia fosse a única saída para a crise sanitária?

Em um contexto no qual as responsabilidades do governo no atual desastre sanitário já estão demonstradas, assim como seu desejo de colocar os lucros acima de nossas vidas, reorganizar, sob controle dos trabalhadores, a produção, a distribuição e os serviços podem ser a a única solução para realmente ter os meios para derrotar o vírus e evitar milhares de mortes.

segunda-feira 23 de março de 2020 | Edição do dia

Artigo originalmente escrito para o Revolution Permanente, por Daniela Cobet

A imagem dramática que se desenha à nossa frente

Hospitais saturados desde o início da crise, falta de máscaras, álcool gel, aventais, testes, aparelhos respiratórios ... Se acreditamos nas declarações de guerra contra o vírus feitas pelo governo, devemos concluir que nossos generais são totalmente incompetentes! São os soldados no front que dizem isso com mais clareza nos numerosos testemunhos que circulam nas redes sociais, onde os funcionários dos hospitais denunciam as deploráveis condições de segurança em que estão trabalhando e dizem que se sentem como “bucha de canhão". O escândalo das máscaras é certamente o exemplo mais edificante de uma preparação e gerenciamento catastróficos da crise sanitária. Já sabemos que em algumas semanas haverá conseqüências significativas, quando precisaremos da totalidade das equipes de saúde, já com poucos funcionários, para responder ao pico da epidemia e que muitos cuidadores ficarão eles mesmos doentes.

Nesse contexto, o Alto Reno hoje constitui uma espécie de antecipação, uma terrível projeção do futuro imediato, onde vemos os pacientes morrerem um após o outro na solidão total, onde os pacientes já são abertamente triados de acordo com a idade - não se intuba mais ninguém com mais de 75 anos de idade devido à falta de leitos de terapia intensiva e equipamentos de assistência respiratória. É de se esperar que nos próximos dias e semanas seja essa a situação na maior parte da França.

Como chegamos aí?

Antes de tudo, há um balanço de mais médio prazo: são várias décadas de políticas liberais que reduziram ao mínimo o sistema hospitalar francês. Segundo alguns dados, mais de 100.000 leitos foram excluídos em apenas 20 anos. São precisamente esses leitos, considerados supérfluos pelos gerentes que se sucederam no poder, de acordo com a lógica da "rentabilidade", que farão falta e serão a causa de muitas mortes. As palavras doces do atual governo em relação ao serviço público e, em particular, aos funcionários dos hospitais em meio à crise não mudam o fato de que ele continuou, ainda mais ferozmente que seus antecessores, o trabalho de estigmatização e sucateamento desse mesmo serviço público. Além disso, não é insignificante que, no exato momento da eclosão da crise sanitária na França, o governo estivesse impondo por decreto uma reforma previdenciária na qual uma das principais vítimas era precisamente os trabalhadores dos serviços públicos estratégicos, que dispunham de um regime especial.

Em uma análise de mais curto prazo, vemos que desde o início a resposta do Estado face à atual crise tem sido errática. Basta lembrar das declarações da senhora Buzyn, ministra da saúde da época, que descartou a possibilidade de que a epidemia que estava se desenvolvendo na China pudesse um dia afetar a França; suas declarações subsequentes de que o governo havia ignorado todos os seus avisos; à segurança arrogante com a qual o governo explicava que "a França não era a Itália" e elogiava as qualidades de um sistema de saúde que, no entanto, ajudara a destruir com cortes no orçamento; a manutenção totalmente irresponsável das eleições municipais ...

Sim, porque os verdadeiros irresponsáveis não são os que vão ao mercado de Belleville ou Barbès para comprar frutas e verduras a um preço acessível, mas aqueles que estão precisamente em posições de poder. Eles foram os que, ao contrário da grande maioria da população, possuíam todas as informações para antecipar a crise no plano científico, a chegada de uma nova epidemia por uma mutação de um coronavírus era uma certeza entre especialistas no assunto sendo a única pergunta "quando e onde". Eles também ignoraram os vários alertas que vieram da China e depois da Itália. Como apontar o dedo para o trabalhador pobre que resiste em ficar confinado em seu micro-apartamento precário na periferia quando o Presidente da República, há algumas semanas, ia ao teatro e incitava os franceses a não renunciar à nada, "sobretudo aos terraços, às salas de concerto, às festas noturnas. Sobretudo à liberdade” ? Ou mesmo quando o governo envia sistematicamente mensagens contraditórias pedindo ao mesmo tempo que permaneçam confinados em casa e trabalhem 7 horas por dia para não pôr em risco a economia e os lucros dos capitalistas?


Guerra ao vírus: palavras e ações

A realidade é que, por trás das grandes declarações de guerra usadas, acima de tudo, para dourar a pílula de um autoritarismo crescente e a quebra de nossos ganhos sociais, existe uma lacuna considerável entre a palavra e os atos do governo para combater a epidemia. Se a política para impedir o aumento do número de contaminados e evitar a saturação total dos hospitais é a de um confinamento cada vez mais rigoroso, é necessário limitar ao estritamente necessário os deslocamentos e a atividade dos funcionários, e isso assegurando condições máximas de segurança.

No entanto, o que vemos nos últimos dias é, pelo contrário, o aumento da pressão dos patrões, apoiados pelo governo, para retomar o trabalho em várias empresas cuja atividade não é essencial, e isso sem garantir às vezes mesmo o mínimo: luvas, máscaras, álcool gel. Foi assim que o ministro da Economia Bruno Lemaire multiplicou nos últimos dias os apelos para garantir a “continuidade econômica do nosso país”, apoiado pelo Ministro do Trabalho, Muriel Pénicaud, com seus apelos aos pequenos patrões da indústria da construção que escolheram não colocar em risco seus funcionários. Ao mesmo tempo, nada sério está sendo feito pelo governo para solucionar o mais rápido possível.a flagrante escassez de equipamentos médicos e hospitalares.

A realidade óbvia é que a prioridade do governo e dos empregadores continua sendo o lucro e não a nossa vida! Quando pensamos no fato de que os governos europeus consideraram, mais ou menos abertamente, adotar, a fim de evitar a paralisia da economia, uma estratégia conhecida como "imunidade coletiva", sabendo que isso poderia custar (e custará talvez) centenas de milhares de vidas, percebemos que, como diz Frédéric Lordon, aqueles que nos governam não são apenas incapazes, mas verdadeiros "idiotas", prontos para sacrificar uma parte significativa da população e, em particular, a classe trabalhadora, para manter seus lucros.

Guerra e economia de guerra

Como Philippe Batifoulier, Nicolas da Silva e Mehrdad Vahabi, do Centro de Pesquisa em Economia da Universidade de Paris-Nord, destacam brilhantemente em seu artigo publicado na Médiapart, além da retórica, há uma forte hesitação das autoridades em "mudar para uma economia de guerra" necessária para a luta contra a epidemia:

"Para combater uma ameaça vital (inimigo militar ou, neste caso, sanitário), a economia de guerra envolve a gestão administrativa e centralizada da economia. Embora os preços sejam a principal alavanca para alocação e coordenação de recursos em uma economia de mercado, a economia de guerra se baseia na nacionalização e no comando. [...] As falhas políticas e econômicas na gestão da crise decorrem da relutância do governo em mudar para uma economia de guerra. […] Ao se recusar a nacionalizar grandes empresas influentes na gestão dos riscos à saúde (como a indústria farmacêutica, os hospitais, etc.) e a administrar a alocação e produção de recursos, o país rapidamente encontrou uma escassez de materiais essenciais (máscaras protetoras e gel hidroalcoólico, leitos de hospitais equipados com equipamentos de assistência respiratória). "

A economia de guerra contra o Covid-19 deveria, portanto, não apenas representar uma restrição severa das atividades não essenciais para garantir a eficácia das medidas de confinamento, mas também trabalhar para reestruturar o sistema produtivo de acordo com as necessidades da guerra. Isso vai da “nacionalização das grandes empresas influentes na gestão dos riscos à saúde” à requisição de todos os estabelecimentos privados de saúde, mas também à conversão de certas indústrias para fins realmente úteis. Porque é óbvio que as fábricas de ponta, como as do setor aeronáutico ou automotivo, poderiam certamente construir dispositivos de assistência respiratória, assim como a indústria têxtil poderia começar a fazer máscaras e jalecos para as equipes de saúde.

Alguns patrões estão começando a dar, por si mesmos, pequenos passos nessa direção, como foi o caso da LVMH, que anunciou que suas fábricas de perfumes produziriam gel hidroalcoólico. Mas não podemos confiar na benevolência dos grandes patrões, para os quais cada gesto mínimo será apenas uma recompensa para manterem seus lucros surpreendentes às custas da saúde dos trabalhadores

Em um momento em que todos podem apreciar o valor social do nosso trabalho: tomar nosso trabalho em nossas mãos!

Nunca antes a utilidade e o valor social do trabalho manual realizado por milhões de proletários, na maioria das vezes desprezados, foi tão evidente. Durante grandes crises como a que estamos enfrentando, é sobre eles que repousa a marcha de toda a sociedade, "heróis" que arriscam suas vidas diariamente a serviço de toda a população. Nessa situação, os esforços feitos pelos trabalhadores de serviços essenciais, e pela classe trabalhadora em geral, dão a eles pleno direito de controle sobre a organização do trabalho e da economia.

É o que muitos funcionários parecem ter instintivamente entendido quando impuseram seu direito de interrupção da produção em muitas fábricas, seja porque sua produção não é essencial ou porque as condições mínimas de segurança não estavam garantidas. O direito de parar, quando resulta de uma ação coletiva e da correlação de força, constitui, assim, uma primeira forma de direito de veto dos funcionários à ditadura da patronal, que reina nas fábricas em tempos normais, ou, em outros termos, de uma expressão elementar do controle dos trabalhadores sobre a produção.

Mas, dada a amplitude da catástrofe e do fato de que parece que vai durar, não podemos parar por aí. Se amanhã as empresas impuserem o retorno ao trabalho, devem ser os trabalhadores, que correrem os riscos, a impor suas próprias condições, que decidam democraticamente em organismos que reúnam o conjunto dos trabalhadores, sindicalizados ou não, quem deve trabalhar, sob quais condições de segurança e para quê. Assim, os trabalhadores podem decidir retomar uma atividade com uma força de trabalho reduzida, a fim de garantir o distanciamento social dentro da empresa e preservar os funcionários mais expostos à doença (idosos ou com doenças crônicas), mas também para impor que o que seja produzido seja realmente útil no período atual.

Ao contrário dos patrões, que pensam apenas em seus lucros, os trabalhadores já demonstram sua força de vontade e disposição para ajudar a salvar vidas, na saúde, mas também em todos os serviços públicos essenciais. Se amanhã se tratar da questão de retorno ao trabalho em certas fábricas para produzir respiradores, construir hospitais, fazer máscaras, sob condições corretas de segurança, os trabalhadores certamente não deixarão de atender ao apelo. No entanto, enquanto for para encher os bolsos dos acionistas já ricos com riscos a suas vidas, o direito de não trabalhar permanecerá perfeitamente legítimo, tanto para preservar a saúde dos próprios trabalhadores quanto para combater o desenvolvimento exponencial da doença e a saturação do sistema hospitalar.

Controle dos trabalhadores e a questão democrática

Se os trabalhadores não assumirem uma posição central na situação, o confinamento promoverá o isolamento e a passividade e fortalecerá o governo, apesar de sua impopularidade e responsabilidades com relação à crise. Ele já demonstrou que pretende aproveitar a crise sanitária para impor, por meio de sua lei de "emergência do coronavírus", um regime cada vez mais autoritário, bem como o questionamento das conquistas históricas do movimento operário.

Mas se, pelo contrário, os trabalhadores tomam o seu destino em suas mãos nesta situação de vida e morte, podem começar a prenunciar uma saída de longo prazo para esse sistema capitalista que claramente se tornou um perigo para a humanidade e para o planeta, prenunciar um sistema social a serviço do bem-estar de todas e todos, democraticamente organizado pelos próprios trabalhadores.

Durante o movimento social contra a reforma previdenciária, brutalmente interrompido pela crise sanitária, os grevistas frequentemente evocavam a questão de qual sociedade deixariam para seus filhos. Pode ser que a situação atual, por mais dramática e inesperada que seja, como sempre são os períodos de grandes mudanças, nos coloque diante da possibilidade e do dever de começar a estabelecer, aqui e agora, os marcos de uma nova sociedade.




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