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“É negro”: classe trabalhadora, racismo e crise capitalista

Flávia Telles

Amanda Cinti

“É negro”: classe trabalhadora, racismo e crise capitalista

Flávia Telles

Diante de mais um 20 de novembro no país governado pela extrema direita de Bolsonaro e Mourão, onde querem substituir Zumbi pela princesa Isabel, esse artigo busca retomar a força da presença da identidade negra no interior da classe trabalhadora brasileira, um motor para a luta decidida pela emancipação em nossos tempos atuais de crise capitalista.

“Tudo o que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro”, foi assim que o alemão Robert Avé-Lallemant descreveu a cidade de Salvador em 1857. [1] O que é um relato europeu de um olhar que vê o exótico, se transforma num retrato fatídico de que o que movia aquela cidade, e podemos dizer o país, nesse período era o trabalho das massas negras e então escravizadas.

A relação entre classe trabalhadora e os escravizados negros africanos esteve presente então desde o início da colonização. Quando olhamos para os fortes exemplos da luta negra dos escravizados africanos, encontramos experiências como Quilombo dos Palmares, Quilombo dos Quariterê, Revolta dos Búzios, Revolução Pernambucana, Revolta das Carrancas, Revolta dos Malês, Balaiada, Revolta de Queimado, Greve Negra na Bahia, Revolta de Canta Galo, que vão percorrer os séculos. Isso sem falar nos planos de insurreição que eram descobertos, como em Campinas em 1832, como o plano de fuga de escravizados de 15 fazendas.

Alguns desses exemplos são capazes de explicitar mais fortemente essa relação entre classe trabalhadora e escravidão. Como o fato de que se olharmos para as primeiras greves no Brasil, encontramos experiências como a Revolta do Engenho Santana [2], que parou a produção por dois anos, e diante da repressão dos senhores, organizaram uma carta de reivindicações para negociar a volta ao trabalho, reivindicando, por exemplo, diminuição da jornada.

“Meu Senhor, nós queremos paz e não queremos guerra; se meu Senhor também quiser a nossa paz há de de ser nesta conformidade, se quiser estar pelo que nós quisermos a saber: Em cada semana nos há de dar os dias de sexta-feira e de sábado para trabalharmos para nós não tirando um destes dias por causa do dia santo. Para podermos viver nos há de dar rede, tarrafa e canoas...” [3]

Outro forte exemplo é a greve negra da Bahia de 1857 em que os negros de ganho, como eram conhecidos os escravos que percorriam as cidades fazendo serviços de transporte de pessoas e mercadorias, pararam Salvador contra os altos impostos e o controle policial.

“Ontem esteve a cidade deserta de ganhadores e carregadores de cadeiras. Não se achava quem se prestasse para conduzir objeto algum. Da alfândega nenhum objeto saiu, a não ser objeto mui portátil, ou que fosse tirado por escravos da pessoa interessada. [...] Os pretos ocultaram-se; e se os senhores não intervierem nisso, ordenando-lhes que obedeçam a Lei, o mal continuará, porque, segundo ouvimos, eles estão nessa disposição.” [4]

Essas experiências e uma visão marxista da luta negra, nos habilita a falar que todas elas são expressões da luta de classes em seu tempo, em que a dinâmica de classe fundamental que existia era entre senhor de engenho e escravo. É essa dinâmica que vai marcar a formação da poderosa classe trabalhadora brasileira, percorrendo os anos subsequentes, mesmo pós-abolição e deixando marcas que vão se desenvolver até os dias atuais.

Uma das tentativas da elite colonial pós-abolição foi tentar apagar a força da luta dos negros na construção da nova sociedade do trabalho livre assalariado que se desenvolveu sobretudo pós 1888. Nos novos centros urbanos foi deixado aos negros um papel marginal, seja na própria estrutura urbana, seja retirando os negros dos espaços mais centrais da classe trabalhadora brasileira em desenvolvimento, relegando os piores postos de trabalho e se apoiando na ideologia do branqueamento para garantir trabalho branco nos postos mais estratégicos, evitando seguir com a economia concentrada no trabalho negro.

É essa ideologia do branqueamento que marca por exemplo o quadro “A Redenção de Cam” de Modesto Brocos em 1895, poucos anos depois do fim da abolição, uma ideia de que pelas transformações das gerações é possível branquear a população; expressão do enorme medo que as elites brancas brasileiras sentiam da força e da luta das massas negras, que nunca se paralisaram contra a opressão escravocrata.

Com o fim da abolição se iniciou a imigração de um contingente importante de europeus também com objetivo de branquear a força de trabalho brasileira. O censo de 1893 da Cidade de São Paulo mostrou que 72% dos empregados do comércio, 79% dos trabalhadores das fábricas, 81% dos trabalhadores do setor de transportes e 86% dos artesãos eram estrangeiros. De acordo com os dados disponíveis, no começo do século 20, 92% dos trabalhadores industriais na cidade de São Paulo eram estrangeiros, sobretudo de origem italiana. No Rio de Janeiro, a participação de estrangeiros na indústria chegava a quase metade da mão de obra ocupada.

Mas mesmo a forte presença da mão de obra estrangeira e operação de “branqueamento” da população foi incapaz de apagar o peso negro no interior da classe trabalhadora brasileira, que tem forte presença nos dias atuais e nos leva ao dado de que hoje a população negra representa não só a maior parte da população (55,8%), mas também da força de trabalho brasileira (54,9%), segundo dados do IBGE de 2019. Além disso, em tempos de crise capitalista e pandemia, é justamente nessa parcela negra da classe que vai se fazer sentir os maiores efeitos das reformas e ataques que os patrões e governos despejam nos trabalhadores, vamos a um retrato dessa realidade.

Um breve retrato da classe trabalhadora negra e da pandemia

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018 do IBGE, o rendimento médio mensal da pessoa ocupada, ou seja, aquela que tem algum trabalho como fonte de renda, preta ou parda gira em torno dos R$1.608 contra os R$2.796 das pessoas brancas. E mesmo quando se leva em conta o nível de escolaridade essa desigualdade é mantida com algumas alterações, como nos maiores níveis escolares.

Um dado que mostra que mesmo com o fato de hoje os negros serem a maioria dos universitários nas universidades públicas, com 50,3% do total, o racismo se transforma em uma força material concreta que rebaixa os salários dos trabalhadores negros. Quando olhamos para a força de trabalho desocupada 64,2% são de pretos e pardos, na força subutilizada esse número chega a 66,1%, mostrando que são os negros a grande maioria do que chamamos de exército industrial de reserva.

Em 2018, enquanto 34,6% das pessoas ocupadas de raça branca estavam em ocupações informais, entre os negros esse percentual atingiu 47,3%. As Regiões Norte e Nordeste ainda apresentaram os piores resultados neste indicador, cujas proporções, em 2018, situaram-se próximas a 60%.

Essa realidade do mundo do trabalho, vai atingir fortemente as condições totais de vida, moradia e saúde dos negros, quando consideramos a linha de US$ 5,50 diários, a taxa de pobreza das pessoas brancas era 15,4%, e 32,9% entre as pretas ou pardas. Considerando a linha de US$ 1,90 diários, a diferença também foi expressiva: enquanto 3,6% das pessoas brancas tinham rendimentos inferiores a esse valor, 8,8% das pessoas pretas ou pardas situavam-se abaixo desse patamar.

Em 2018, também verificou-se maior proporção da população preta ou parda residindo em domicílios sem coleta de lixo (12,5%, contra 6,0% da população branca), sem abastecimento de água por rede geral (17,9%, contra 11,5% da população branca), e sem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial (42,8%, contra 26,5% da população branca), significando maiores exposições a doenças.

Alguns dados, como os que apresentamos no texto: Formação e anatomia da classe trabalhadora feminina e negra no Brasil, do Livro Mulheres Negras e Marxismo, também são capazes de nos mostrar a relação atual entre racismo, capitalismo e patriarcado, como fato de que entre as mulheres negras maiores de 16 anos, 97% compõe a classe trabalhadora. As mulheres negras também comandam 55% das famílias chefiadas por mulheres no país, ganham salários 40% inferiores às mulheres brancas e até 60% menores quando comparados aos trabalhadores brancos. Além de serem 70% das empregadas domésticas e terem forte presença no trabalho terceirizado, um mecanismo de divisão das condições de trabalho e que foi triplicado durante os anos de governos do PT.

São essas condições encontradas pela frente pela crise pandêmica de 2020 que acelerou a crise capitalista em curso e que é parte de produzir dados como esses. Os negros são os que mais morreram pela covid-19, em especial as mulheres, que foram expostas desde o início com o trabalho do cuidado, como vimos no retrato da primeira morte no Rio de Janeiro ser de uma mulher negra, empregada doméstica, ou no caso de Mirtes, mãe do menino Miguel em Recife, que ao deixar seu filho com a patroa para poder fazer as tarefas como doméstica, o encontrou morto.

Também são os que mais compõem a massa de desempregados atualmente, chegando a 72,9% dos desocupados. Mas aqui podemos dizer mais uma vez que a força negra no interior da classe operária brasileira se expressa. Se olharmos para os trabalhadores da linha de frente, como é a limpeza urbana, a limpeza em geral, os transportes e em especial os trabalhadores da saúde, vamos encontrar uma forte expressão de negros e mulheres no Brasil, em especial entre os mais precários e com mais baixos salários.

A limpeza urbana brasileira é fortemente composta pela população negra, chegando a 55% dos trabalhadores, na cidade do Rio de Janeiro esse número chega a quase 70% dos trabalhadores. [5] Além disso, na enfermagem, que são foi a linha de frente da crise arriscando suas próprias vidas, os negros chegam a 53% dos trabalhadores e as mulheres a 84,6%. [6] Portanto, durante todo esse período de forte negacionismo bolsonarista que nos levou a mais de 600 mil mortes, foram as mulheres negras a linha de frente do combate ao coronavírus.

Além disso, os trabalhos nos setores de serviços de entrega e de informação também revelam a força negra, como é o fato de que 71% dos entregadores de alimentos são negros, muitos deles jovens e que trabalham mais de 10 horas por dia. Já nos trabalhos como o de telemarketings vemos a presença de 64,1% de negros e negras, um dos empregos também mais expostos durante a pandemia.

Todos esses números ao mesmo tempo que são reveladores da precarização do trabalho, das péssimas condições de vida que são relegadas à população negra, e da enorme desigualdade racial que persiste no interior da classe trabalhadora brasileira, também revelam que a burguesia brasileira não conseguiu apagar e nem apaziguar as relações raciais e o peso dos negros na classe trabalhadora, que não ocupam um papel marginal, mas central na produção da vida material.

Luta negra e luta de classes na crise capitalista

Portanto, se no período escravista no Brasil é possível dizer que a luta negra foi praticamente um sinônimo da luta de classes, nos tempos atuais essa relação segue intrínseca. O racismo e o capitalismo nasceram juntos e se desenvolveram de forma tão combinada que faz com que não exista luta negra que não seja atrelada a luta contra a fome, o desemprego, a polícia, por melhores condições de moradia e de trabalho, além disso, qualquer demanda dos negros, só pode ser conquistada com luta, e essa luta é dos povos oprimidos e explorados.

A burguesia tentou, durante todos os anos subsequentes ao fim da escravidão, mas foi incapaz de apagar o peso negro da classe trabalhadora, e agora tenta de todas as formas cooptar a luta negra para que ela seja distanciada da luta de classes. Portanto, um dos maiores desafios para que a classe trabalhadora possa encontrar pela frente o caminho da luta de classes e enfrentamentos decisivos ao sistema capitalista, é justamente superar a enorme fragmentação que existe em seu interior e que se fortaleceu sobretudo após a restauração burguesa do fim do século XX.

O racismo é um elemento constituinte dessa fragmentação, seja nas relações sociais que se expressam a opressão racial, seja no fato de que os negros são os que mais são relegados à terceirização, informalidade e desemprego, dividindo os trabalhadores. Mais do que nunca, em tempos onde o Black Lives Matter sacudiu o mundo e a classe trabalhadora americana é preciso retomar a tradição que marca a classe trabalhadora brasileira, que é a tradição de Zumbi dos Palmares, que não só expressa a luta decidida pela liberdade, mas que traz em seu conteúdo a luta irreconciliável contra a metrópole em nome de sua emancipação.

Diante de uma crise que só tem a oferecer misérias profundas aos negros, mulheres, lgbts e a toda a classe trabalhadora é preciso buscar ferramentas para a mais profunda unidade entre os explorados e oprimidos, onde a luta contra a opressão também seja um motor para a superação das burocracias que nos fragmentam, retomando os sindicatos como ferramentas de auto-organização para lutar por igualdade salarial entre negros e brancos, homens e mulheres, o fim da terceirização do trabalho e a efetivação sem concurso desses trabalhadores, salários reajustados de acordo com a inflação, a divisão das horas de trabalho entre todos os trabalhadores, para ter empregos com plenos direitos para todos e uma série de demandas que podem responder à situação das massas negras.

É também por essa unidade que se torna necessário erguer um partido revolucionário e internacionalista da classe trabalhadora, que seja uma ferramenta para conduzir a luta decidida pelo mundo novo, esse que será livre de toda opressão e exploração, do racismo, do patriarcado e do capitalismo, e que na sua construção, como disse CLR James, revolucionário da IV Internacional, os negros terão um papel destacado.


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FOOTNOTES

[1REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Companhia das Letras, São Paulo, 2019, p.21.

[2Entrevista de João José Reis “Revoltas escravas e a greve negra na Bahia no século XIX”, disponível em https://www.esquerdadiario.com.br/Entrevista-Joao-Jose-Reis-Revoltas-escravas-e-a-greve-negra-na-Bahia-no-seculo-XIX.

[3SANTOS, D.J.Borges. Identidade Escrava: A Revolta de 1789 no Engenho de Santana.

[4REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Companhia das Letras, São Paulo, 2019, p.171.
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